Nota do Cimi: Lula barra absurdos do PL 2903, mas perde oportunidade de reafirmar direitos indígenas com veto integral

No dia 20 de outubro, presidente Lula publicou veto parcial do PL 2903/2023, que ataca frontalmente a Constituição Federal e os direitos dos povos indígenas

Cimi

O marco temporal é inconstitucional e os direitos dos povos indígenas a seus territórios são direitos originários e imprescritíveis. Esta é a primeira e principal confirmação que resulta do veto parcial do presidente Lula ao Projeto de Lei (PL) 2903/2023, aprovado pelo Senado Federal, que pretendia alterar o artigo 231 da Constituição Federal e tornar lei o marco temporal.

O Congresso Nacional, atual reduto do bolsonarismo e campo de força do setor ruralista, fica totalmente isolado na defesa do indefensável. Mas este não é o único aspecto que precisa atenção ao analisar o veto parcial que Lula publicou na sexta-feira, dia 20 de outubro, dando origem à Lei número 14.701/2023.

Lula vetou total ou parcialmente 24 de 33 artigos do projeto de lei, mas não aderiu à ideia de um veto integral ao projeto de lei, como era solicitado pelos povos indígenas e seus aliados, por ministérios do próprio governo e pelo Ministério Público Federal (MPF). Parece ter pesado para a decisão do presidente uma perspectiva tática e ilusória de manter algum canal aberto com o Congresso Nacional e o receio de abrir distância com o agronegócio e setores que integram seu próprio governo.

Entretanto, o veto integral tinha um sentido político e ético que não pode ser ignorado e que Lula deixou escapar. O PL 2903/2023, que tramitou na Câmara dos Deputados com o número PL 490/2007, representou ao longo dos últimos 16 anos uma das maiores e mais truculentas ofensivas do Poder Legislativo contra os direitos dos povos indígenas. Reuniu ao longo desses anos as piores teses anti-indígenas e se revestiu de diversos vícios de inconstitucionalidade e de uma narrativa colonial e preconceituosa.

O veto integral era uma posição política necessária e o presidente Lula perdeu a oportunidade de mostrar o rechaço frontal e integral à forma histórica com que os setores econômicos se utilizaram da política institucional para agredir os projetos de vida dos povos indígenas

Além disso, por se tratar de um Projeto de Lei, não era o instrumento normativo legítimo para alterar direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal de 1988. Nos últimos meses, em uma estratégia pouco republicana, as duas Casas do Congresso aceleraram a aprovação do PL para afrontar o julgamento do marco temporal no Supremo Tribunal Federal (STF). Portanto, o veto integral era uma posição política necessária e o presidente Lula perdeu a oportunidade de mostrar o rechaço frontal e integral à forma histórica com que os setores econômicos se utilizaram da política institucional para agredir os projetos de vida dos povos indígenas.

Por outro lado, o governo vetou os principais pontos que ameaçavam a vida dos povos indígenas e seus territórios. Lula vetou o marco temporal, tomando como referência a recente decisão do STF, no âmbito do RE 1017365, que confirmou a inconstitucionalidade desta tese. Foi a primeira vez que o novo Executivo, de forma transparente e em ação oficial, se manifestou contra o marco temporal; lembremos que até hoje não revogou o Parecer 001 da Advocacia-Geral da União (AGU), cujos efeitos foram suspensos no âmbito do mesmo julgamento.

Também foram vetados os artigos que dispensavam a consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas para a implementação de medidas ou instalação de empreendimentos dentro dos territórios indígenas. O governo vetou, ainda, a tentativa de vedar a revisão de limites de terras indígenas já regularizadas, e aderiu à decisão do STF no sentido de que a Constituição Federal de 1988 não impede essa revisão quando se demonstre que o processo de demarcação anterior foi feito em desacordo com o estabelecido pela Constituição. Ficou vetado também o dispositivo do PL 2903/2023 que flexibilizava a política de proteção aos povos indígenas livres, ou em situação de isolamento voluntário.

Por fim, o presidente Lula vetou também o artigo 11 do PL 2903/2023 que pretendia consolidar a indenização por títulos de propriedade ou de posse em território indígena em razão de erro do Estado. Entretanto, argumenta o governo que a possibilidade deste direito ficou restrita, na decisão do STF, às ocupações de boa-fé; e, acrescentamos, somente quando for impossível a opção do reassentamento.

Todos estes vetos reforçam a natureza dos direitos dos povos indígenas e são fruto incontestável da ação dos povos e seus aliados que, de forma incansável e permanente, durante anos, mantiveram uma capacidade política de mobilização que permitiu convencer a sociedade, o Poder Judiciário e agora o Poder Executivo da necessidade de garantir os direitos fundamentais conquistados na Constituição Federal.

Contudo, o governo decidiu manter o caput do artigo 26º do PL, que admite a cooperação e contratação de terceiros não indígenas para o aproveitamento econômico dos territórios de ocupação tradicional. Abre-se assim uma brecha que permite romper com o direito fundamental de usufruto exclusivo dos povos indígenas sobre os bens de seus territórios. E, pior ainda, este artigo irá intensificar a pressão e o assédio por parte de não indígenas sobre as comunidades e suas lideranças, na procura de supostos “acordos de colaboração” que significarão, na prática a abertura dos territórios a interesses de exploração econômica por parte de terceiros.

A manutenção do caput deste artigo 26 era desnecessária e atende muito mais a interesses externos que aos projetos dos povos indígenas. Cabe às comunidades, povos e organizações indígenas redobrar os esforços para manter, com autonomia, suas decisões sobre seus territórios, conforme os próprios projetos de vida, usos, costumes e tradições, evitando cair nas ciladas que o capital poderá apresentar aproveitando a brecha deixada no PL 2903 pelo governo federal.

Cabe ressaltar que, embora no julgamento do STF se tenha cogitado inserir na tese de repercussão geral a determinação para que o Congresso Nacional legislasse sobre a possibilidade de exploração econômica das terras indígenas, os ministros acabaram retirando essa referência porque agrediria o direito ao usufruto exclusivo das terras pelos povos originários.

Agora, esse tópico, rejeitado pelo STF, pode se viabilizar por essa possível lei. Em síntese, os direitos indígenas estão plenamente reconhecidos, mas serão alvo de pressão ainda mais intensa devido à previsão de cooperação e contratação de não indígenas em atividades econômicas.

O Congresso, em sua solidão nada solidária, ainda poderá derrubar os vetos do presidente Lula, mas jamais poderá quebrar a resistência, a firmeza e a sabedoria dos povos indígenas na luta por seus direitos e por uma sociedade mais justa.

O Conselho Indigenista Missionário – Cimi reafirma seu compromisso irrestrito com a defesa dos direitos dos povos indígenas. Junto com os povos, continuaremos destemidos, esperançados e organizados na defesa da vida, da justiça e do Bem Viver. É momento de avançar, de forma concreta, na garantia dos direitos dos povos indígenas, com o esforço de todos, sociedade civil, organizações sociais, movimentos populares, Igrejas, universidades e a responsabilidade e compromisso dos Poderes do Estado.

Depois de 35 anos da promulgação da Constituição Federal 1988, o artigo 231 não precisava de nenhuma lei para ser regulamentado; o que realmente precisa é ser cumprido, efetivado, aplicado e respeitado, com avanços concretos na demarcação e proteção das terras indígenas, com o enfrentamento de toda forma de racismo e preconceito e com o reconhecimento da diversidade cultural deste país.

Brasília (DF), 23 de outubro de 2023

Conselho Indigenista Missionário – Cimi

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