Procurador entende que situação de almirante negro se enquadraria no regime jurídico dos anistiados, que prevê reparação
por Mateus Coutinho, em Brasil de Fato
O Ministério Público Federal no Rio de Janeiro encaminhou na quinta-feira, (9), um parecer à Comissão de Anistia e ao presidente da Câmara dos Deputados defendendo a reparação financeira aos familiares do líder da Revolta da Chibata, João Cândido, e a sua inclusão no livro dos Heróis da Pátria, uma homenagem às lideranças históricas brasileiras que fica no Panteão da Pátria, monumento projetado por Oscar Niemeyer localizado na Praça dos Três Poderes.
No documento, o MPF pede que a Comissão de Anistia e a Coordenação-Geral de Memória e Verdade sobre a Escravidão e o Tráfico Transatlântico, ambas vinculadas ao Ministério dos Direitos Humanos, se manifestem em 30 dias sobre a possibilidade de reparação e inscrição no livro dos Heróis da Pátria. No caso do presidente da Câmara, o parecer foi encaminhado apenas para conhecimento.
João Candido foi um almirante negro que liderou a Revolta da Chibata, um movimento contra os maus tratos praticados pela Marinha contra os marinheiros, sobretudo os negros, no Rio de Janeiro, em 1910. Ele chegou a ser anistiado duas vezes pelo governo brasileiro, a primeira em 1910 e a segunda no segundo mandato do governo Lula, em 2008.
Nem ele nem seus familiares, porém, receberam até hoje nenhuma indenização do Estado brasileiro e, para o MPF, a anistia ao almirante só estaria completa se fosse dada uma reparação financeira aos parentes de João Cândido. “A declaração de anistia (de 2008) foi um importante passo, mas veio desacompanhada de compensações à família de João Candido, que tanto sofreram os efeitos da injusta postura do estado brasileiro. Na prática, a Justiça foi feita, porém de forma parcial. Em bom português, João Candido ganhou mas não levou”, afirma procurador regional dos Direitos do Cidadão e autor do parecer, Júlio José Araújo Junior.
O documento também foi encaminhado a todos os parlamentares da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados para conhecimento.
Dupla anistia sem reparação
Filho de ex-escravos, João Cândido é um dos símbolos do movimento negro por liderar a rebelião contra os maus-tratos à população negra mesmo após o fim da escravidão no país. Ele chegou a ser anistiado em novembro de 1910 assim como os demais participantes da Revolta da Chibata, graças a um decreto do presidente da época, Hermes da Fonseca. Três dias após a anistia, porém, ele editou um outro decreto autorizando a exclusão de militares “cuja permanência no serviço se tornar inconveniente à disciplina”.
Na prática, a medida abriu a possibilidade para a Marinha excluir da força marinheiros por motivo disciplinar sem terem sido condenados. Em dezembro daquele ano houve uma nova rebelião de marinheiros, e, segundo o MPF, este ato serviu de pretexto para o governo aplicar o segundo decreto e punir também os envolvidos na rebelião de novembro.
“A ocorrência de nova rebelião, em dezembro do mesmo ano, serviria de pretexto à aplicação plena do novo ato normativo e à decretação de estado de sítio, gerando mortes, prisões e deportações, inclusive dos participantes da revolta de novembro”, afirma o procurador.
Com isso, João Cândido ficou preso entre 1910 e 1912 e acabou sendo expulso da Marinha. Em 2008 o governo Lula viria a reconhecer sua condição de anistiado em uma lei sancionada em julho daquele ano e que previa a João Cândido e aos demais integrantes da rebelião os direitos garantidos no primeiro decreto de 1910. Essa segunda anistia, porém foi sancionada com um veto a um trecho que previa o reconhecimento ao direito de João Cândido receber pensão como se tivesse permanecido na Marinha e tivesse sido promovido caso continuasse na força.
Na época, o governo Lula alegou a ausência de “aspectos técnicos necessários” para que a União pudesse indicar de onde viriam os recursos para pagar esse valor devido aos familiares do falecido militar. A Lei de Responsabilidade Fiscal proíbe o governo de criar uma despesa sem indicar a fonte de recursos para pagá-la.
“Em outras palavras, por suposta falta de previsão de ‘aspectos técnicos necessários’ no exercício seguinte à garantia de prestação dos benefícios, os efeitos da anistia de João Cândido e de seus companheiros foram simplesmente retirados. Era mais um apagamento nessa história: desta vez o apagamento da reparação em favor da família do almirante negro”, segue o MPF em seu parecer.
Para o MPF, reparação está prevista em lei
No documento, o procurador Júlio José não aponta qual deveria ser o valor a ser restituído para a família de João Cândido, mas indica que a situação de João Cândido poderia ser enquadrada na lei que instituiu o regime do anistiado político: a Lei 10.559 de 2010 que regulamentou o artigo 8 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias, as chamadas ADCTs, que são as normas incluídas na Constituição de 1988 para regulamentar a transição da Constituição anterior, de 1969, para a carta de 1988.
O artigo 8 da ADCT estipula que todos que foram atingidos com atos de exceção de 1946 até 1988 “em decorrência de motivação exclusivamente política”, seriam anistiados. Para o Ministério Público Federal a situação de João Cândido se encaixaria nesse entendimento, pois em 1946 ele ainda estaria sofrendo os efeitos da perseguição política que culminou com sua detenção e expulsão da Marinha. João Cândido veio a falecer em 1969 devido a um câncer de intestino.
“As violações contra João Cândido, que se perpetuaram após 1910, tendo sido prorrogadas pelo menos até a lei de 2008. A omissão do Estado brasileiro, amparada pelo entendimento da Marinha sobre a revolta se prolongou no tempo, de modo que em 18 de setembro de 1946 o almirante negro ainda ostentava a condição de pessoa perseguida por motivação política”, pontua o procurador Júlio José em seu parecer.
Para ele, a lei que estabeleceu o regime do anistiado traz alguns direitos expressos dos anistiados políticos, como o direito à reparação econômica, e que devem ser aplicados no caso de João Cândido para indenizar seus familiares. Além disso, o MPF também defende a inclusão de João Cândido no livro dos Heróis da Pátria, proposta que já foi aprovada pelo Senado e atualmente está tramitando na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados.
A Marinha, porém, estaria resistindo à concessão da honraria, por entender que o almirante negro teria trazido riscos à cidade do Rio de Janeiro com sua rebelião.
“A justificativa da Marinha carrega consigo novos esquecimentos. Os esquecimentos das chibatas, dos castigos corporais e da resistência contra o tratamento desumano sofrido por aqueles marinheiros. A luta antirracista avançou muito nos últimos anos e demonstra a cada dia a importância de medidas de valorização como forma de reparação. O silêncio contra o reconhecimento do nosso herói nacional João Cândido representa mais uma violência. É hora de inscrevê-lo no livro de aço”, afirma o Ministério Público Federal.
O parecer foi produzido no âmbito do inquérito civil público aberto pela Procuradoria da República no Rio para acompanhar as medidas de valorização da memória de João Cândido.
Edição: Rodrigo Durão Coelho
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Após liderar revolta no Rio, João Cândido foi expulso da Marinha e preso por dois anos na Ilha das Cobras – Reprodução