Bifo: Gaza é Auschwitz

E se sua vida fosse esperar balas e bombas israelenses, pergunta o pensador. E se a morte fosse melhor que a vida imposta pelos bárbaros? Diria a si mesmo que vamos matar ou morrer? As futuras gerações nos cobrarão pelo silêncio e inação diante do genocídio…

Por Franco “Bifo” Berardi, no Comune Info / Outras Palavras
Tradução: Antonio Martins

Peço desculpas se posso parecer melodramático, talvez seja uma questão de temperamento, mas cheguei à conclusão de que estamos diante da situação que definirá nossas vidas, a trilha ética e intelectual que deixaremos.

Nossos netos (se tiverem vontade de cuidar de nós) não se perguntarão o que fizemos em 1968, ou como reagimos aos ataques fascistas dos anos 80, ou ao sequestro de Aldo Moro. Em vez disso, perguntarão: como minha avó se comportou, o que meu avô disse e fez quando percebeu que em um lugar chamado Gaza estava ocorrendo um genocídio não muito diferente daqueles que os nazistas conduziram contra judeus, ciganos, homossexuais, comunistas, para citar apenas um dos inúmeros massacres que marcaram a história humana?

Descrevo a situação para mim mesmo como se estivéssemos em um romance de Isaac Bashevis Singer chamado Meshugah: nos anos 40, um grupo de intelectuais se reúne para falar de coisas diversas e fica sabendo (um conhecimento fragmentado, contraditório) de que um milhão de pessoas estão trancadas em um campo em uma vila polonesa, vigiadas por soldados armados, famintas, forçadas a beber água suja ou chupar um cubo de gelo para matar a sede (como relata Primo Levi). Enquanto estão lá dentro, são ocasionalmente espancadas, arrastadas para fora de suas barracas, maltratadas, ameaçadas de morte, torturadas. E a cada dia, cinquenta, cem ou mil delas são mortas.

Não importa se esses internos são democratas ou obscurantistas, socialistas do Bund ou fanáticos ortodoxos leitores da Torá. Não importa se são bons ou maus, são o que Agamben chama de vida nua. Corpos indefesos contra um inimigo que quer exterminá-los e está superarmado.

É claro que, enquanto escrevo estas linhas, estou ciente de que no início do genocídio em curso houve um pogrom, uma ação de violência atroz. Em 7 de outubro, militantes armados do Hamas ultrapassaram a fronteira, antes intransponível, e atacaram, incendiaram, atiraram em idosos e crianças indefesos. Eles sequestraram mulheres e homens, separaram irmãos de irmãs, amantes de amantes, arrastaram-nos separadamente em caminhões como se fossem gado. Mataram 1.400 pessoas [*] que estavam dançando, dormindo ou fugindo. Eles encenaram um pogrom como os camponeses poloneses desencadeavam contra os judeus por séculos, uma operação de limpeza étnica como os nazistas alemães conduziam nos bairros habitados por judeus durante a Segunda Guerra Mundial.

Então, como posso dizer hoje que Israel é inteiramente responsável pelo massacre de 7 de outubro e pelo genocídio que se seguiu imediatamente?

Posso dizer isso porque tentei me colocar no lugar de um rapaz ou uma moça que em 2018 participou da Grande Marcha para o Retorno.

Naquelas semanas da primavera de 2018, lembro-me de ter acompanhado diariamente os eventos: milhares de jovens palestinos, convocados por um jovem jornalista ativista e poeta chamado Ahmed Abu Artema, marcharam desarmados em direção às cercas que impedem os habitantes da Faixa de Gaza de irem às terras que pertenciam às suas famílias antes de 1948.

Por várias semanas, a cada sexta-feira, marchavam em direção às cercas, atiravam pedras no vazio, gritavam, cantavam, alguns queimavam pneus, outros até lançavam coquetéis molotov que incendiavam arbustos.

A marcha coincidiu com o dia em que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump – conhecido como supremacista e racista, representante da América do Ku Klux Klan – anunciou que decidira mudar a embaixada de seu país para Jerusalém, desrespeitando o pedido de todos os países árabes. A marcha também coincidiu com o septuagésimo aniversário da Nakba, quando as tropas israelenses mataram 57 palestinos em um único dia e deportaram milhares em um ato de limpeza étnica.

Enquanto milhares de pessoas ficavam diante das cercas intransponíveis, os soldados israelenses, abrigados em fortificações protegidas, disparavam projéteis de vários calibres e tipos, incluindo projéteis proibidos por convenções internacionais porque explodem na carne da pessoa atingida. De acordo com o relatório da Anistia Internacional, três paramédicos foram mortos enquanto estavam no local com seus aventais brancos para cuidar dos feridos, incluindo Razan al Najjar, de 21 anos, atingida no peito por um atirador de elite israelense, embora estivesse claramente identificável como enfermeira pelas roupas que usava. Trinta e uma crianças foram mortas nos seis meses das marchas semanais. Dois jornalistas foram mortos enquanto filmavam cenas da marcha. Segundo a organização judaica B’tselem, durante as marchas pacíficas de 2018, 290 palestinos foram mortos. Nenhum israelense foi morto ou ferido.

Eu me perguntei: se eu tivesse participado da Grande Marcha do Retorno na primavera de 2018, teria continuado a sobreviver miseravelmente, incapaz de fazer nada além de observar os pássaros no céu e esperar por uma bala israelense, ou teria me dito: vamos realizar o ato mais atroz que se possa imaginar para que todos os mortos-vivos que nos observam ao redor do mundo e não fazem nada finalmente possam se horrorizar? Eu teria me dito: vamos matar e morrer. Porque a morte é melhor do que a vida que nossos torturadores nos impuseram.

Refleti muito, li muito, experimentei muita dor e vergonha, mas agora devo dizer a vocês, porque não posso esconder o que sinto. Cheguei à conclusão intelectual, emocional, histórica, filosófica e pessoal de que Gaza é como Auschwitz. E não posso imaginar compartilhar nada – daqui para frente, com qualquer pessoa que esteja do lado dos guardas armados que todos os dias vigiam as pessoas presas dentro de uma cerca que diz: Arbeit Macht Frei.

*”Hier ist kein warum”, “Aqui não há mais um porquê” é a resposta de um soldado no campo de concentração a Primo Levi, que havia perguntado “Warum?” “Por quê?”, depois de ser alvo de um insulto gratuito.

Franco Berardi, mais conhecido por Bifo, é um filósofo, escritor e agitador cultural italiano. Oriundo do movimento operaísta, foi professor secundário em Bolonha e sempre se interessou sobre a relação entre o movimento social anticapitalista e a comunicação independente.

[*] – Nota de Combate: Há poucos dias, Israel corrigiu esses números para cerca de 1.200 e confirmou que, desses, perto de 400 seriam militares. Essas informações não puderam ser verificadas de forma independente .

“O trabalho liberta” era a mensagem que recebia os ‘condenados’ no portão de Auschwitz. Em 27 de janeiro de 1945, o Exército Vermelho libertou Auschwitz, o maior e mais terrível campo de extermínio dos nazistas. No auge do Holocausto, em 1944, eram assassinadas seis mil pessoas por dia no local. Fonte: DW

 

 

 

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