A vitória de Milei e o desafio de decifrá-la

O desencanto com a democracia e o crescimento dos valores individualistas estão na base do desastre argentino. Mas atenção: novo presidente já aprofunda acordos com a “casta” que jurou combater – o que abre enorme brecha para desmascará-lo

Por Glauco Faria*, em sua pagina no Substack

Javier Milei é o presidente eleito da Argentina. Na noite do domingo (19), muitos brasileiros nas redes sociais identificavam um “gatilho”, lembrando das eleições brasileiras de 2018. Aliás, ainda que em contextos e momentos diferentes, a vitória do candidato do La Libertad Avanza guarda números bastante similares aos de Bolsonaro. Com 99,3% das urnas apuradas, ele tem 55,7% contra 44,3% de Massa, enquanto o então candidato do PSL havia derrotado Fernando Haddad por 55,13% a 44,87%.

O clima semelhante também pode ser visto entre os apoiadores de um e de outro. Em entrevistas com pessoas presentes na festa de Milei falavam sobre a crise econômica, corrupção, a necessidade de “mudança”, a “casta política” e outros termos para justificar seu voto que também remetiam ao Brasil de cinco anos atrás.

E assim como Bolsonaro teve junto dele parte da elite política e econômica brasileira no segundo turno das eleições presidenciais, o presidente eleito argentino também se juntou à parte da mesma “casta” que tanto atacou no primeiro turno ao se aliar ao ex-presidente Mauricio Macri. Este, após ver sua candidata Patricia Bullrich ficar fora do turno final, viu no ultradireitista uma tábua de salvação para manter seu protagonismo político e representar na Casa Rosada os interesses econômico-financeiros que nortearam seu mandato.

“A Argentina tem que se comprometer, e é parte central da plataforma de Milei, assim como da nossa, com a redução estrita e urgente dos gastos públicos para equilibrar as contas. A partir daí, abrir o país, como fez a Colômbia”, disse Macri em uma entrevista recente. Como dito aqui, é nesse ponto de contato que os neoliberais deixam pudores de lado para namorar o fascismo e essa aliança ocasional pode acabar freando os ímpetos mais extremos de Milei em um primeiro momento.

No Congresso Nacional, Milei tem 12% dos deputados e 11% dos senadores, além de não ter nenhum governador eleito pelo seu partido. Por conta, Macri pode ser tornar o grande fiador de seu governo, mas o novo presidente teria que renunciar a suas promessas da campanha. Seguiria um receituário clássico neoliberal no continente, com austeridade fiscal e cortes de gastos públicos, sem a dolarização, mas com uma liberalização ainda maior do uso da moeda estrangeira na Argentina. Nada de acabar com o Banco Central, por exemplo.

Na área econômica, é difícil não ver a concretização de qualquer proposta defendida por Milei como um passo adiante em direção à ruína, como em seus ataques ao Brasil e à China. Hoje, estima-se que metade das reservas do país venha de operações de swap cambial com o país asiático, o que tem permitido ao país honrar os serviços da dívida com o FMI. E trata-se de uma evidente concessão chinesa ao país sul-americano, já que esse tipo de operação serve apenas para viabilizar acordos comerciais, o que não é o caso.

Ainda não se sabe qual Milei assumirá o governo, se em sua versão radical ou a moderada do segundo turno, já sob as amarras do que convencionou chamar de “casta”. É muito provável que adote o figurino de outros, que contempla manobras diversionistas para chamar a atenção e mobilizar parte da sociedade, enquanto promove medidas econômicas que não têm apelo popular. O problema é que a economia foi central no resultado das eleições argentinas. Pode ser que não haja diversionismo suficiente.

O mapa da eleição

Os resultados do segundo turno mostram uma vitória de Javier Mile em quase todo o país. Ele foi derrotado por Sergio Massa em apenas três províncias: Buenos Aires, Santiago del Estero e Formosa.

É na província de Buenos Aires, maior reduto do peronismo e onde o Juntos pela Patria esperava reduzir a diferença a favor de Milei no interior do país, que reside a grande decepção da campanha do ministro da Economia. Com 13.110.768 eleitores, a província tem 37,04% do total de votantes da Argentina. O triunfo foi apertado, 50,73% a 49,27%, e Massa subiu apenas oito pontos em relação ao primeiro turno, enquanto seu rival conquistou 23,4 pontos a mais.

E não foi por falta de empenho do governador reeleito Axel Kicillof, que tomou para si a responsabilidade de comandar a campanha que aumentasse a vantagem para Massa. Contudo, a transferência massiva de votos de Patricia Bullrich para Milei acabou anulando o esforço peronista.

Na segunda província mais populosa, Córdoba, a derrota foi expressiva: Milei chegou a 74,05%, subindo mais de 40 pontos em relação ao resultado do primeiro turno.

O voto pela “mudança”

A eleição de Milei remete a dados divulgados pelo cientista político e professor de ciência política e relações internacionais na Universidade do Sul da Califórnia Gerardo Munck. Em 18 eleições realizadas na América Latina desde 2019, em apenas um país, o Paraguai, o governo de turno saiu vitorioso. Em todos os outros a oposição venceu.

Ainda que necessite de maior aprofundamento para analisar os diversos fatores que explicam isso, a economia e o bem-estar das pessoas têm papel central na derrota de muitos desses governos, mas não só. A expansão de uma visão de mundo mais individualista e imediatista, onde a insatisfação brota de forma rápida, também pode explicar o porquê de a “mudança” ser uma palavra-chave nas eleições da região. E o que representaria mais a expressão do que aqueles que se dizem antissistema?

O desencanto com a política e esse caldo cultural, juntos, levam não só extremistas ao poder como os consolidam como personagens importantes mesmo estando fora de governos. São diversos personagens que emergiram e influem no cenário, levando muitas vezes políticos ditos moderados a posições extremistas. É o seu triunfo, mesmo quando derrotados nas urnas.

É um desafio enorme para a esquerda, mas também para qualquer segmento político fora desse espectro que se importe minimamente com arranjos democráticos. A disputa política não é mais a mesma, e não voltará a ser.

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Imagem: Leonardo Achilli

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