Violência no campo e Estado

Por Flávio Lazzarin e Cláudio Bombieri para IHU Unisinos / CPT

De 27 de outubro até 10 de novembro, houve um aumento estatisticamente significativo da violência no campo, com vários assassinatos ocorridos em áreas de conflitos fundiários nos estados do Maranhão, Pará, Pernambuco e Paraíba.

Escandalosamente significativo o que aconteceu, no dia 10 de novembro, no Maranhão, quando um grupo de dez pistoleiros a mando de um fazendeiro invadiu o povoado São Francisco, localizado em Barra do Corda, resultando na morte de um deles. Outros dois integrantes da quadrilha foram baleados e socorridos, enquanto outros sete foram resgatados por policiais e presos em flagrante. Noticia-se imediatamente que dos dez bandidos, nove são policiais militares e um penal.

A dimensão, a simultaneidade e a configuração destes fatos provocam reações e debates, que vão além da pontual e preciosa nota da CPT do dia 12.

Eis algumas perguntas e reflexões que circulam nestes dias. Seria uma mera trágica coincidência a confluência desses atos violentos no arco de cerca quinze dias em diferentes regiões do Brasil? Ou são violências programadas e coordenadas?

Esta última não é uma hipótese aceitável, mas é bom sublinhar que existem articulações parlamentares e políticas, que poderiam repetir as estratégias da antiga UDR: a Frente parlamentar “Invasão zero” (200 parlamentares), criada logo após CPI do MST e, na Bahia, em paralelo, o Movimento “Invasão zero” (10 amil proprietários em 200 municípios).

Descartada, evidentemente, a hipótese de uma coordenação destas violências, poderíamos pô-las no âmbito da polarização entre bolsonarismo e lulismo?

Chama a nossa atenção o fato de que ao longo dos quatro anos do governo fascista de Bolsonaro não haja havido, pelo que se sabe, uma concentração de assassinatos e atentados contra quilombolas, camponeses e indígenas tal como a que se deu nesses dias. Teria sido mais lógico que atos violentos dessa magnitude tivessem ocorrido ao longo daquele mandato, e não agora, num governo que, formalmente, estaria a defender e a favorecer as categorias mais fragilizadas do campo. Ou, seria, por acaso, a reação de retaliação do latifúndio justamente diante de uma nova e aguerrida postura do atual governo em favor das populações do campo? Contudo, numa rápida e superficial leitura da política fundiária levada adiante pelo MDA e o Incra do atual governo não nos parece entrever ações políticas que tenham criado algum tipo de impacto significativo tal a ponto de provocar possíveis retaliações do latifúndio. Muito pelo contrário…

Haveria uma outra hipótese a ser considerada: estariam as populações do campo se sentindo fortalecidas e/ou, supostamente, protegidas pelo atual governo de forma a torná-las mais aguerridas e ousadas em suas lutas e reivindicações, e as novas agressões do latifúndio seriam, afinal, uma mera resposta defensiva a essas novas empreitadas sociais desses movimentos?

Não nos parece, também nesse caso, vislumbrar ações de mobilização, de ocupação fundiária e de retomada de territórios originários e tradicionais de tal envergadura que venham a justificar uma renovada metodologia das populações do campo, num novo e suposto favorável contexto político.

Ao descartar a ‘mera coincidência’ desses acontecimentos cabe tentar compreender quais outras razões pressionam, por exemplo, um grupo de policiais para se colocarem a serviço de um ‘fazendeiro’ com a finalidade de limpar de forma clandestina uma determinada área. Seria o movente pecuniário a única razão? O que move um grupo consistente de PMs da mesma cidade a colocar em risco a sua profissão para fazer um ‘trabalho sujo’?

Insiste-se por parte de muitos sobre o papel do Estado nestes conflitos territoriais e repetimos as figuras da ‘omissão’, com anexa impunidade, e da ‘cumplicidade’. Essas leituras são suficientes para entender a responsabilidade do estado nestas agressões?

Achamos que estas perguntas e reflexões, aparentemente oportunas e necessárias, nos deixam, porém, na escuridão e, sobretudo, não abrem portas e caminhos para uma praxe política coerente de enfrentamento da violência. Talvez, possamos encontrar alguma luz retomando a análise do protagonismo político das elites rentistas e empresariais do Brasil.

Somos, assim, obrigados a repetir a única descrição ao nosso ver incontestável do Estado brasileiro: desde a sua origem, se caracteriza como estamento oligárquico-patrimonialista; desde sempre o Estado é o próprio ‘Crime Organizado’.

Podem aparecer ao longo da nossa história, além das ditaduras e dos golpismos, sempre por interferência militar, maquiagens republicanas, democráticas e hipócritas afirmações sobre a vigência do ‘Estado de Direito”, mas também em Estados, como o Rio Grande do Sul, em que parecia vingar uma tradição liberal autêntica, nas últimas décadas vingou a versão do Estado oligárquico-patrimonialista, o Estado como ‘Crime Organizado’. E seria míope continuar pensando que essas características do Estado brasileiro estariam presentes somente no Rio de Janeiro.

Resumindo: o Estado não é cúmplice da violência nem é meramente omisso diante dela, porque ele é incontestavelmente o quartel-general desta guerra contra os pobres e os pequenos.

O Brasil nos proporciona uma versão tropical do Estado de Exceção: a originalidade da Exceção brasileira está no fato que ela se alimenta de forma absolutamente independente da legalidade constituída.

As nossas elites sempre conviveram, sem problema éticos e políticos, com a convicção profunda, atávica e fortemente enraizada da primazia da autolegitimação sobre a legalidade.

Todo o aparato jurídico – código civil e código penal – está submetido ao privilégio incontestável das elites, que decidem, independendo das leis, o que é legítimo, necessário e conveniente para a manutenção do poder. E as leis são normalmente usadas como arma política contra os inimigos e adversários, enquanto familiares, amigos e aliados são dispensados de obedece-las e absolvidos de antemão, também em casos de crimes hediondos.

Evidentemente, as leis cumprem também a função de disfarce da primazia da autolegitimação, encenando a ficção do ‘Estado de direito’.  Ficção que consegue ocultar o papel indispensável que o Poder Judiciário ocupa no pacto oligárquico: respeitar caninamente, com rara exceções, a solidariedade de classe, a cumplicidade entre brancos ricos, cultos, proprietários e profissionais liberais.

Saber disto deveria minar o eventual entusiasmo dos defensores dos direitos humanos, porque no confronto jurídico com o Poder Judiciário saem quase sempre derrotados o com vitórias mutiladas por negociações injustas e parciais. No embate processual com o Estado, as comunidades camponesas saem sempre derrotadas.

A impunidade, totalmente garantida aos assassinos, mandantes e executores materiais, de indígenas e camponeses, nestes últimos quarenta anos, é mais uma prova incontestável desta análise. A impunidade não é consequência do descaso dos inquéritos policiais e da morosidade do Judiciário, mas o resultado, deliberadamente construído, de um Estado, que é o próprio Crime Organizado.

E, então, no âmbito da autolegitimação oligárquica, não há como estabelecer uma diferença entre Polícia e Milícia, come se somente ocasionalmente a elite precisasse dos serviços da jagunçada e pistolagem.

Milícia e pistoleiros são elementos constitutivos, orgânicos, do Estado brasileiro. E esta configuração não é característica das oligarquia do passado: no Maranhão funcionava com Vitorino Freire e José Sarney e na Bahia com Antônio Carlos Magalhães, mas continua funcionando com os governos sucessivos, com a única variável do acompanhamento de uma narrativa progressista.

Assim, a violência no campo permanece com José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Dilma Roussef, Lula e, obviamente, continuou com Bolsonaro.

Os populistas de extrema direita aceitam e incentivam a violência para defender os valores tradicionais e, para eles, inegociáveis — Deus-Pátria-Família — ameaçados pelos ‘comunistas’. Repetem a encenação antissistémica nazista e fascista para, de fato, hoje como ontem, terminar radicalizando a violência do sistema capitalista.

A esquerda acha que ainda pode se declarar aliada dos pequeninhos, mas hoje é incapaz de reconhecer a distância que o progressismo da classe média construiu entre si e as massas famintas e desempregadas.

Uma esquerda que está equivocada quando se pensa como a herdeira do legado dos trabalhadores que, porém, há muito tempo, não se reconhecem mais como classe.

Uma esquerda que, quando está no governo, não tem antídotos contra a violência do capitalismo e é obrigada a obedecer à lógica do mercado e às reivindicações das elites amplamente representadas pelo Centrão que manda na Câmara, no Senado e no País.

Uma esquerda derrotada e sem futuro, acometida pelo cansaço ideológico, pela repetitividade eleitoreira, pela incapacidade de entender que a sociedade mudou, pela falta de discernimento que bloqueia qualquer projeto alternativo para o Brasil, em tempos de fome, de desemprego, de violência contra indígenas e camponeses, tempos de novas subjetividades e de dramáticas conjunturas climáticas e bélicas, que marcam tragicamente a atualidade.

Uma esquerda, que, mais tarde ou mais cedo, será varrida do panorama político internacional, pela onda demencial e trágica do populismo de extrema direita.

O que fazer diante de tantos escombros?

Alguns dias atrás, Marcello Tarí nos deu uma dica preciosa: uma profecia bela e intensa de Emmanuel Mounier, que pode ser um presente para aqueles que ainda queiram lutar.

“O perigo, a preocupação são o nosso destino. Nada nos deixa prever que esta luta possa terminar numa fração de tempo calculável, nada nos incentiva a supor que a luta seja constitutiva da nossa condição. Com efeito, a perfeição do universo pessoal encarnado não se identifica com a perfeição de uma ordem, como pretendem todos os filósofos (e todos os políticos), que pensam que um dia o ser humano possa totalizar o mundo. A nossa é uma perfeição de uma liberdade que luta e luta incansavelmente. E que continua firme até depois da derrota. Entre o otimismo intolerante da ilusão liberal ou revolucionária e o pessimismo impaciente dos fascismos, o verdadeiro caminho do ser humano é este otimismo trágico, em que ele pode encontrar a sua justa medida num ambiente de grandeza e de luta”. (Mounier Emmanuel, Il personalismo, Ave ed. 2004, pag. 56)

A única arma com a qual é permitido marchar para a guerra é a Palavra. E é a própria Palavra que traz a guerra onde reina a paz. Palavra que decide desestabilizar o status quo: “Não penseis que vim trazer a paz à terra. Vim trazer não a paz, mas a espada. Eu vim trazer a divisão entre o filho e o pai, entre a filha e a mãe, entre a nora e a sogra, e os inimigos do homem serão as pessoas de sua própria casa.” (Mt 10,34-36).

Não é Palavra que simplesmente aceita a inevitabilidade do conflito. É a própria Palavra que o instaura e o preserva com radicalidade.

Foto: Ana Mendes – Cimi

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