Ações judiciais ligam JBS à destruição de Resex mais desmatada da Amazônia

Outros três frigoríficos de Rondônia também são réus; ações buscam atribuir um preço à destruição da Resex Jaci-Paraná

Por  Rubens Valente, Fabiano Maisonnave, Agência Pública

A JBS e outros três frigoríficos de Rondônia (RO) são réus em processos que buscam a indenização de dezenas de milhões de reais para reparar danos ambientais. O motivo é a compra de gado criado ilegalmente na Reserva Extrativista (Resex) Jaci-Paraná, a unidade de conservação proporcionalmente mais desmatada da Amazônia brasileira.

As 17 ações civis públicas impetradas pela Procuradoria Geral do Estado (PGE) de Rondônia buscam também expulsar invasores que praticamente destruíram a Jaci-Paraná, hoje com mais pasto do que floresta após décadas de uso indevido por grileiros, madeireiros e pecuaristas.

Apesar de a legislação proibir a criação comercial de gado em Resex, cerca de 216 mil cabeças de gado agora pastam na área, de acordo com a Agência de Defesa Sanitária de Rondônia (Idaron). Trata-se do maior rebanho ilegal dentro de uma terra protegida da Amazônia.

As ações judiciais contêm uma evidência que espanta até especialistas em desmatamento e veteranos do combate ao comércio ilegal de gado no Brasil: as Guias de Trânsito Animal (GTAs) estampam como endereço de origem fazendas ilegais onde se lê “Resex Jaci-Paraná”, indo diretamente para o matadouro, com as informações fornecidas pelos próprios pecuaristas.

As GTAs são exigidas por lei para cada movimentação e documentam origem e destino, nome, CNPJ, CPF do vendedor e comprador do lote bovino, controle de doenças, quantidade e faixa etária dos animais e se o transporte se destina a cria, engorda ou abate. É um documento sigiloso a que apenas os órgãos emissores e o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) têm acesso.

“Em duas décadas combatendo gado ilegal na Amazônia, nunca tinha encontrado uma GTA com o nome de uma unidade de conservação”, disse Jair Schmitt, diretor de Proteção Ambiental do Ibama – o órgão do governo não está envolvido com as ações judiciais.

A JBS é ré em três dos 17 processos, junto com fazendeiros que supostamente venderam 227 cabeças criadas da Jaci-Paraná. Todos são igualmente acusados de “invadir, ocupar, explorar, causar dano ambiental, impedir a regeneração natural e/ou tirar proveito econômico” da Jaci-Paraná.

A PGE demanda o pagamento de R$ 16,9 milhões por danos ao meio ambiente. Além disso, a ação anexou autos de infração lavrados pela Secretaria de Desenvolvimento Ambiental (Sedam) que somam R$ 2,02 milhões por terem comprado gado ilegal.

As ações buscam atribuir um preço à destruição da floresta, uma tarefa difícil, dado que ela é praticamente insubstituível, exceto ao longo de décadas. Um laudo anexado aos processos preparado pela Sedam estima os danos na reserva em R$ 5.298.129.030, incluindo o montante para recuperar os 151 mil hectares de pasto, uma área igual à do município de São Paulo.

A PGE pede também que os frigoríficos fiquem proibidos de comprar gado da Jaci-Paraná. “Os invasores e seus parceiros empresariais principais – madeireiros e frigoríficos – privatizam os lucros e socializam os custos da degradação ambiental”, diz um trecho das ações judiciais.

Procurada pela reportagem, a JBS disse que “não comenta processos administrativos e judiciais em andamento”. Sobre os casos em questão, a empresa alega que “não foi citada pela Justiça, o que inviabiliza a realização de qualquer análise no momento”.

Três frigoríficos de Rondônia também são acusados de comprar gado ilegal da Jaci-Paraná: Frigon, Distriboi e Tangará. Nenhum respondeu a perguntas enviadas por e-mail pela reportagem.

Em cinco decisões liminares, a 1a Vara de Fazenda Pública de Porto Velho determinou que cinco invasores deixem suas fazendas, retirem o gado e desfaçam toda a infraestrutura construída dentro da Jaci-Paraná em até cinco dias, sob pena de multas diárias. Além disso, a decisão proibiu três frigoríficos, Frigon, Tangará e Distriboi, de adquirir gado de dentro da unidade de conservação. Caso haja descumprimento, a multa é de R$ 1 milhão.

Em outras duas decisões publicadas nesta terça-feira, a 2ª Vara de Fazenda Pública de Porto Velho deu prazo de dez dias para que os invasores saiam da Resex e retiram o gado, mas indeferiu o pedido liminar de demolição da infraestrutura.

Por outro lado, um juiz de Buritis, cidade onde mora grande parte dos invasores, negou os pedidos liminares, inclusive o que proíbe a JBS de comprar o gado de dentro da Resex. Em sua decisão, o juiz determina que a PGE junte aos autos “um documento assinado pelo governador Marcos Rocha dando ciência da ação”, e pede um estudo de impacto econômico a Rondônia pela retirada do gado da unidade de conservação.

Na semana passada, um oficial de justiça não conseguiu notificar um dos invasores após um fazendeiro lhe dizer que ele correria risco de vida caso entrasse na reserva, segundo documento anexado ao processo.

O Frigon, que tem fortes conexões com a política de Rondônia, é o que mais comprou gado ilegal, segundo os documentos anexados às ações – quase 1.400 cabeças vindas de oito fazendas, que somam 2.010 hectares de pasto.

O estado de Rondônia está demandando do frigorífico e dos criadores o pagamento de R$ 83,4 milhões pelos danos ambientais.

Em seu site na internet, o Frigon afirma que atua na exportação de carne para países da Europa, América Latina, África e Ásia. “Temos certificações que atendem a diferentes demandas do mercado internacional. […] O Frigorífico Irmãos Gonçalves mantém o compromisso de estar sempre aprimorando seus controles socioambientais sobre os fornecedores de matérias-primas”, diz a empresa no seu endereço eletrônico.

O Frigon (cujo nome comercial é Irmãos Gonçalves Comércio e Indústria Ltda.) tem grande influência econômica regional, e a família proprietária tem várias ramificações na política de Rondônia. Criada em 1999 em Jaru (RO), município com mais de 50 mil habitantes, a empresa tem capital social declarado na Junta Comercial de Rondônia no valor de R$ 519 milhões.

O frigorífico tem como principal administrador e sócio-proprietário um dos “pioneiros” da colonização em Jaru na década de 1970, João Gonçalves Filho, 79 anos. Nas eleições de 2022, ele concorreu como segundo suplente da candidata ao Senado Mariana Carvalho (Republicanos), que acabou derrotada.

No registro da candidatura na Justiça Eleitoral, Gonçalves declarou a fortuna pessoal de mais de R$ 351 milhões, incluindo fazendas, imóveis urbanos e rurais e participação acionária no frigorífico. Um levantamento do UOL listou Gonçalves como o oitavo candidato mais rico em todo o país nas eleições daquele ano.

Um dos filhos do empresário, João Gonçalves Júnior (PSDB), é o atual prefeito de Jaru. Ele declarou ter votado no candidato à reeleição Jair Bolsonaro em 2022, disse que ficou “triste” com a derrota do então presidente, mas também teceu críticas à paralisação de rodovias feita por militantes partidários de Bolsonaro após o resultado do pleito. Eles questionavam a lisura do processo eleitoral e pregavam um golpe militar.

Em março passado, Júnior integrou uma comitiva de 102 empresários do agronegócio que acompanhou a viagem à China do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Executivos ou donos de outros frigoríficos, como JBS, Minerva, Marfrig, BRF e Aurora, também participaram da viagem.

Outro membro da família Gonçalves é o atual vice-governador de Rondônia, Sérgio Gonçalves da Silva (União Brasil), 49 anos, sobrinho de João Gonçalves. Ele acumula o cargo de secretário de Desenvolvimento Econômico do estado. Trabalhou no Supermercado Gonçalves, uma rede varejista que revendia carne do Frigon. A empresa chegou a ter uma matriz e nove filiais no interior de Rondônia, mas enfrentou dificuldades financeiras, entrou em recuperação judicial e teve sua falência declarada em 2019. Mais de mil funcionários perderam o emprego.

Em 2022, Sérgio Gonçalves formou a chapa vencedora da reeleição do governador Marcos Rocha (PL), um declarado apoiador do ex-presidente Bolsonaro. Mas ele não é o único integrante da família Gonçalves no governo estadual. Um irmão, José Gonçalves da Silva Júnior, também vinculado à gestão do supermercado, é chefe da Casa Civil de Marcos Rocha (2019-2022) desde o seu primeiro mandato.

No início deste ano, Silva Júnior se tornou secretário-chefe da Casa Civil do governo de Rondônia, ou seja, um dos mais próximos homens de confiança do governador do estado. A imprensa de Rondônia já descreveu Silva Júnior como “fiel escudeiro de Marcos Rocha e principal cérebro do governo na última campanha eleitoral”.

As conexões do gado ilegal da Jaci-Paraná estão também espalhadas pelo mundo. As duas unidades da JBS de Rondônia (São MIguel do Guaporé e Pimenta Bueno) exportaram carne para destinos como Estados Unidos, China (maior mercado da carne brasileira), Hong Kong, Rússia, Egito, Marrocos, Turquia, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e outros, segundo registros compilados pela Panjiva, empresa que rastreia o comércio internacional.

O desmatamento da Amazônia é uma grande preocupação. Além de ameaçar a floresta tropical com maior biodiversidade do mundo, a pressão pelo desenvolvimento também coloca em risco um sumidouro crítico de carbono para um planeta que está aquecendo perigosamente devido às mudanças climáticas. Dado do governo federal revela que 67,5% do desmatamento na Amazônia resulta da conversão de terras em pastagens. O estado de Rondônia, na fronteira com a Bolívia, é o mais gravemente desmatado da Amazônia brasileira.

A Resex Jaci-Paraná foi criada como uma espécie de expiação pelo Banco Mundial com os fundos emprestados na década de 1990. A instituição multilateral sediada em Washington financiou a construção da rodovia BR-364, uma estrada que levou para a floresta milhares de colonos de origem europeia do sul do Brasil. Em cinco décadas, cerca de 40% dela desapareceu, de acordo com o MapBiomas.

A Jaci-Paraná não estava sozinha. Muitas unidades de conservação, no entanto, foram invadidas por grileiros com pouca resistência das autoridades. Algumas administrações brasileiras até mesmo encorajaram isso. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em seu mandato anterior, reduziu a Floresta Nacional Bom Futuro, adjacente à Jaci-Paraná, em dois terços. Os grileiros obtiveram título para o que deveria ser uma floresta protegida. Isso encorajou mais invasões por toda a Amazônia, incluindo a Jaci-Paraná.

Em 2019, com a eleição do presidente de extrema direita Jair Bolsonaro e do aliado Marcos Rocha como governador de Rondônia, os grileiros aumentaram o desmatamento em terras públicas na esperança de eventualmente obterem títulos, uma promessa de campanha de ambos.

Esse é o pano de fundo para GTAs que estão vindo à tona nos novos processos judiciais. Com políticos prometendo legalizar terras protegidas para propriedade privada, a Idaron e o MPE chegaram a um acordo sancionado pela Justiça.

Como o governo de Rondônia não iria expulsar os invasores, a Idaron queria monitorar o gado quanto a doenças como a febre aftosa, enquanto o MPE queria combater crimes ambientais.

Com o acordo, a Idaron começou a emitir GTAs e Cadastros de Imóvel Rural. Em troca, esses documentos tinham que ser compartilhados com os órgãos de fiscalização ambiental do estado. Com grandes esperanças de que os documentos eventualmente fossem considerados em uma regularização fundiária, 778 invasores agora têm registros de propriedade para poder movimentar seu gado, mas também para demonstrar que estão ocupando a área.

“A GTA revela contradição dos órgãos públicos. O órgão de controle sanitário valida a criação de gado em áreas ocupadas ilegalmente”, disse Paulo Barreto, pesquisador sênior do Imazon. “Também revela a fragilidade do sistema de controle da JBS.”

O potencial de dinheiro a ser feito era irresistível. Segundo informações de pequenos agricultores familiares à pesquisadora da Universidade Federal de Rondônia (Unir) Amanda Michalski, o preço médio da terra na região de União Bandeirantes, em 2023, que corresponde a parte oeste da Resex Jaci-Paraná, chega a custar R$ 14.705,88 por hectare.

Amanda, que é também ouvidora externa da Defensoria Pública de Rondônia, afirma que o valor da terra na região de Porto Velho, destinada à pecuária de convencional, custa R$ 11.086,04 o hectare, citando o Incra. Assim, caso a Resex fosse privatizada, o roubo de terra pública teria um valor de ao menos R$ 1,67 bilhão.

Uma auditoria publicada em outubro pelo Ministério Público Federal (MPF) constatou que 12% do gado comprado pela JBS em Rondônia vem de áreas desmatadas ilegalmente, públicas ou privadas.

Auditoria do MPF

Em seu comunicado, a JBS se recusou a comentar seu desempenho em Rondônia, mas disse que, na Amazônia como um todo, 94% das compras eram de gado legal, seu melhor desempenho desde o início das auditorias.

Mas as auditorias, realizadas no marco do Termo de Ajuste de Conduta (TAC) de 2009, examinam apenas as compras diretas. Fica de fora o vasto comércio de lavagem de gado no Brasil, transferindo gado de uma área ilegal para uma fazenda legal antes de vender para os frigoríficos, deliberadamente obscurecendo a rastreabilidade.

Em novembro, um relatório do Imazon chamou a JBS de empresa mais exposta ao risco de desmatamento com base em uma variedade de fatores, incluindo onde os frigoríficos estão localizados e suas áreas de compra de gado. “As empresas devem boicotar áreas de gado com alto risco de atividade ilegal e falta de fiscalização”, disse Barreto, coautor do estudo. “Ao comprar gado dessas áreas, as empresas endossam comportamentos predatórios e ilegais e fortalecem o poder político desses atores.”

Em julho passado, jornalistas da Associated Press visitaram a Jaci-Paraná e viram de perto o que imagens de satélite detectam do espaço. Os únicos fragmentos de floresta da reserva de 1.970 quilômetros quadrados são ao longo dos rios Jaci-Paraná e Branco. Com quase 80% de sua área destruída, é a unidade de conservação relativamente mais devastada na Amazônia brasileira.

Famílias expulsas: “só é gado e fazenda e capim”

Nos últimos anos, dezenas de famílias que antes ganhavam a vida no extrativismo de seringueira e colheita de castanha-do-pará foram expulsas à força por madeireiros e fazendeiros. As poucas famílias restantes vivem ao longo das margens desses rios – a maioria com medo de ser entrevistada por medo de ser atacada.

Lincoln Fernandes de Lima, 45 anos, cuja família vive na área há três gerações, conta que os grileiros “retiram toda a madeira e árvores de castanha-do-pará. Eles chegam até a fonte de água, já derrubando as árvores ao redor dela, e continuam cortando, cortando”, disse. “Quando os moradores saem de suas casas para fazer algo na floresta, eles atiram nas panelas e frigideiras. E muitas, muitas vezes as casas são derrubadas com motosserra.”

Em setembro, Lima recebeu a visita de dois homens armados que apareceram e afirmaram que seu chefe havia adquirido a área. Eles deram a ele 24 horas para sair – depois disso, não haveria mais conversa. Ele interpretou como uma ameaça de morte e deixou a própria casa – sendo a terceira vez que foi expulso de uma colocação, como são chamadas as áreas ocupadas por cada família seringueira.

Cinco dias depois, seu vizinho, um seringueiro chamado Efigênio Mota da Silva, teve a casa incendiada. Ambos tiveram que buscar refúgio no distrito de Jaci-Paraná, onde moram dezenas de famílias de extrativistas expulsos de seu território por grileiros e pecuaristas. Lima tem uma segunda casa na cidade, mas Silva perdeu tudo e agora vive na casa de um amigo.

O distrito às margens da BR-364 também foi o que restou para Rosa Maria Lopes. Ela nasceu em 1952 em um seringal dentro da reserva. Sua família viveu na mesma área por mais de um século, mas também foi expulsa por fazendeiros. O local onde ela cresceu agora é um pasto.

“Hoje não tem mais nada, meu irmão. Não se fala mais em castanha, em copaíba, em borracha. Não se fala no milho, não se fala na abóbora, não se fala no que fica em cima da mesa. Só é gado e fazenda e capim. Nós só vamos comer capim?”, diz Rosa Maria.

Edição: Thiago Domenici | Colaboração: Camille Fassett, The Associated Press

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