Espionagem no Brasil: o que a Pública revelou sobre programa espião na Abin de Bolsonaro

Repórter Caio de Freita Paes conta o que se sabe e o que precisa ser esclarecido sobre as denúncias de vigilância ilegal

Por Andrea DiP, Clarissa Levy, Ricardo Terto | Colaboração: Bruno Fonseca, em Agência Pública

Começou na transição do governo de Jair Bolsonaro (PL) para Lula (PT), a partir de um conjunto de documentos sigilosos que a equipe da Agência Pública teve acesso. A série Atas secretas da Covid, publicada a partir de fevereiro de 2023, revelou a primeira pista de que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) monitorava cidadãos — e poderia estar usando meios ilegais para tal.

Nesta conversa para o Pauta Pública, o repórter Caio de Freitas Paes conta como um documento que revelava o uso da Abin para vigiar caminhoneiros acendeu um alerta do que fazia a agência. A partir daí, a apuração criteriosa da equipe da Pública descobriu que, sob o comando do atual deputado federal e ex diretor-geral da Abin Alexandre Ramagem (PL-RJ), a agência havia feito uma série de compras secretas com empresas de vigilância e espionagem.

Estava aí o First Mile, programa espião da israelense Cognyte, que se tornou um pivô na investigação de que o governo Bolsonaro teria monitorado sem autorização judicial cidadãos, políticos de oposição e até membros do Supremo Tribunal Federal (STF).

Contudo, como as reportagens da Pública mostraram, o sistema de “arapongagem” ilegal não teria se limitado apenas a Bolsonaro. “É essencial dizer que preocupa muitíssimo a todos nós o fato de que apenas o caso da Abin esteja sendo destacado. Porque como mostramos, pelo menos nove secretarias de segurança de governos estaduais, a maioria do campo da direita e do bolsonarismo, além da Polícia Rodoviária Federal e braços das Forças Armadas, também compraram. No caso, o Comando do Exército Brasileiro em Washington e a Aeronáutica na Europa adquiriram produtos da Cognyte, que não sabemos os detalhes, tanto da execução desses contratos, quanto de que tipo de produto estamos falando”, ressalta Paes.

Nesta entrevista, o repórter da Pública conta com detalhes por onde começaram as investigações sobre a espionagem da Abin, quais as perguntas que ainda não foram respondidas e o que a Publica ainda quer revelar sobre a várias denúncias de espionagem no Brasil.

Leia os principais pontos da entrevista e ouça o podcast completo AQUI.

[Clarissa Levy] As suspeitas e denúncias sobre a Abin de Bolsonaro ter usado ferramentas de vigilância já ocorrem há tempos. Aqui na Pública, você e outros repórteres da sucursal de Brasília estão de olho no tema desde o ano passado, pelo menos. Você pode explicar como vocês investigaram a Abin? O que exatamente chamou a atenção da equipe de jornalismo? Por quê vocês foram atrás da agência? 

Durante todo o governo Bolsonaro, diferentes veículos de imprensa relataram casos de suspeita de espionagem ilegal contra opositores políticos, servidores e afins. Na época da transição do governo Bolsonaro para o governo Lula já havia suspeitas. Este foi quase o mesmo período em que a equipe de Brasília conseguiu o material que rendeu o especial das atas secretas da Covid. Nesse especial, revelamos como o governo Bolsonaro basicamente negligenciou a ciência no combate à Covid, e um material derivado disso que recebemos via LAI (Lei de Acesso à Informação) tratava o que a Abin fez durante a pandemia. A maior parte do material era focada na evolução dos casos e eventuais mitigações. Mas tinha um documento que destoava disso, um fichamento de líderes caminhoneiros. Boa parte deles teve destaque no governo Temer, com os bloqueios de rodovias.

Nesse relatório era elencado o grau de ameaça que alguns líderes caminhoneiros representavam para o governo. E o relatório chamou muito a atenção da equipe, porque não faz parte da doutrina da inteligência focar em indivíduos. Esse tipo de prática facilmente pode se transformar em material para dossiês, algo que recentemente já foi rechaçado pelo Supremo Tribunal Federal. Quando encontramos o fichamento dos caminhoneiros reforçou a sensação de que a inteligência do governo “não estava jogando dentro das quatro linhas”.  Esses indícios reforçaram para nós que tínhamos que seguir tentando desbravar um pouco o que a inteligência do Governo Federal, no mandato do Jair Bolsonaro, realmente fez.

A partir desse momento começamos a relatar diversas histórias. Um exemplo foi quando descobrimos as compras totalmente secretas da Abin. Essas compras explodiram quando Alexandre Ramagem (PL) assumiu. Parte da eficiência no setor da inteligência é manter a discrição, não se pode revelar tudo. Mas antes de Ramagem assumir a Abin, ainda em 2019, sabia-se via diário oficial da União, quem eram as empresas que estavam fornecendo. Quando ele assume, as compras se tornam totalmente secretas e não podemos fiscalizar o uso dos aparelhos. A gente foi percebendo e consolidando a ideia de que a Abin no período em que Ramagem ficou à frente, na pior das hipóteses, não seguia o que a doutrina da inteligência prega.

Muito disso deriva de como entendemos a Abin de Bolsonaro atualmente, com as sucessivas operações da Polícia Federal. Parte disso está explicado pela presença massiva de policiais federais de confiança de Alexandre Ramagem em postos de liderança dentro da Abin.

[Clarissa Levy] Em agosto de 2023, você já estava investigando a utilização do First Mile que viabiliza a vigilância de pessoas em tempo real. Você pode falar como funciona esse software? O que foi descoberto, inclusive sobre a empresa que o comercializa, a Cognyte? Pelo o que a equipe de Brasília apurou, o uso dessas ferramentas está além da Abin. Você pode falar mais sobre isso? 

Em termos bem básicos, o First Mile é um programa de computador. Quando você quer vigiar a localização de um aparelho de telefone é só colocar o número do aparelho do qual você quer vigiar, e a partir disso o programa permite o rastreamento em tempo real de telefones celulares, apenas com esse procedimento. Esse programa é capaz de gerar alertas sobre a rotina de movimentação dos alvos, ou seja, avisos sobre a localização das pessoas monitoradas por meio do programa, além da possibilidade de criar o histórico das movimentações de cada um dos alvos vigiados.

Isso dá uma visão completa, por exemplo, se a pessoa vai todos os dias à academia entre às oito e nove e meia da manhã, perto da casa dela. Com essas informações você consegue confirmar se a pessoa vigiada realmente vai de segunda a sexta, ou se ela vai em dias intercalados. Esse tipo de informação é essencial para tocaias e conduzir operações. Entretanto, de acordo com o Código de Processo Penal Brasileiro, o acesso ao conteúdo de comunicação de qualquer natureza, de parte de órgãos de investigação públicos, depende de autorização judicial.

Ao longo de pouco menos de um ano que cobrimos casos relativos à espionagem na Abin no período de Ramagem e Bolsonaro, os especialistas têm apontado que o First Mile se encaixa nessa exigência do Código de Processo Penal e que o acesso do conteúdo de comunicação depende da autorização judicial. Ao mesmo tempo, as investigações têm confirmado que boa parte dessa vigilância não passou por nenhum tipo de autorização judicial.

A Anatel, recentemente, confirmou que o monitoramento depende das redes de telefonia e de um protocolo SS7, que é uma comunicação automática entre cada aparelho telefônico com a estação base mais próxima, o que garante que a gente tenha sinal de telefone. O programa First Mile se infiltra nessa comunicação automática, e consegue georreferenciar onde está o alvo. Fazer isso sem anuência das redes de telefonia, nem da Justiça, torna a vigilância sobre qualquer indivíduo por ferramentas desse tipo ilegal.

É interessante pensarmos um pouco na fabricante desse programa chamado First Mile. Uma empresa israelense que, até poucos anos atrás, se chamava Verint. Ela era um conglomerado de tecnologias de inteligência e depois se dividiu em duas partes. Uma delas ficou mais focada em produtos voltados para espionagem e inteligência, se chama Cognyte. Ela é a responsável pelo programa First Mile, que é o que estoura todo o escândalo, mas também é encarregada por outros programas.

Um dos que identificamos, também utilizado no Brasil, é um programa móvel chamado GI2S. O GI2S é um aparelho móvel que pode ser colocado em uma maleta, ou pode ficar dentro de um automóvel durante uma tocaia. Uma parte do programa é móvel e outra é virtual, que controla o aparelho móvel à distância, podendo ser instalada em computadores, laptops e smartphones. Quando o GI2S está operando a sua parte móvel tem um raio de alcance, e todos os aparelhos celulares que estão dentro desse raio são hackeados. O software consegue extrair o número de série do chip e telefone dos alvos, então ele consegue chegar com precisão na distância aproximada entre o aparelho e o telefone vigiado. Este software opera de modo a não revelar para as operadoras de telefonia celular que a rede está sendo monitorada, permitindo a atividade secreta e o uso dissimulado do aparelho.

Em 2023, identificamos que a fabricante israelense Cognyte vendia além do First Mile e GI2S, pelo menos outros seis produtos de inteligência aqui no Brasil. E aqui é uma conexão importante entre a política com o mundo militar. Porque essa empresa era representada comercialmente (o termo oficial). Ela tinha seu lobby feito por um empresário chamado Carlos Alberto dos Santos Cruz, filho do ex-ministro e general da reserva do exército. Aqui em Brasília, sabemos que uma pessoa com uma determinada ascendência tem entrada em setores que lidam com segurança e inteligência. É mais prático para que se consiga oferecer produtos para serem comprados por parte do poder público.

Na prática o identificamos fazendo uma “raspagem” em diários oficiais da União, e também nos diários oficiais dos Estados, pedindo acessos à informação. Identificamos compras por parte do poder público de produtos desse grupo representado pelo filho do general Santos Cruz em pelo menos nove secretarias de segurança estaduais, a maior parte governada pela direita e por bolsonaristas. Também compras pela Polícia Rodoviária Federal e por braços das Forças Armadas, Exército e Aeronáutica. De dezembro de 2017 em diante, a Cognyte fechou o equivalente a R$ 57 milhões em novos contratos com o poder público, incluindo a secretaria de segurança de nove estados: como o Mato Grosso, governado por Mauro Mendes (União Brasil) e Goiás governado por Ronaldo Caiado (União Brasil).

[Clarissa Levy] Você comentou sobre informações que tiveram sobre compras da Cognyte pelo Exército e por governos estaduais. Isso é o que vocês têm de informação, mas que perguntas ainda estão sem resposta? Na sua opinião, o que falta ainda ter de transparência e entender sobre o assunto? O que preocupa? 

É essencial dizer que preocupa muitíssimo a todos nós o fato de que apenas o caso da Abin esteja sendo destacado. Porque como mostramos, pelo menos nove Secretarias de Segurança de governos estaduais, a maioria do campo da direita e do bolsonarismo, além da Polícia Rodoviária Federal e braços das Forças Armadas, também compraram. No caso, o Comando do Exército Brasileiro em Washington e a Aeronáutica na Europa adquiriram produtos da Cognyte, que não sabemos os detalhes, tanto da execução desses contratos, quanto de que tipo de produto estamos falando.

Nesse processo de apuração, nós conseguimos alguns contratos da Cognyte com governos estaduais (mesmo obtendo a negativa de quatro estados). Fomos atrás dos detalhes, e conseguimos algumas informações. As exceções foram em Mato Grosso e Goiás, que são dois estados que têm um histórico recente de perseguição política por parte dos governantes. Já relatamos na Pública, inclusive, um caso de suspeita de espionagem por parte do governo de Mauro Mendes (União Brasil) no Mato Grosso contra jornalistas críticos à sua gestão. O governo de Ronaldo Caiado (União Brasil) também tem denúncias e suspeitas do uso da máquina pública contra seus opositores.

No caso de Goiás, conseguimos a confirmação que o governo tinha 10 mil acessos no programa First Mile. Em outras palavras, a polícia de Goiás podia fazer exatamente o mesmo tipo de pesquisa que a Abin, que agora está no centro desse escândalo de espionagem política.

Esses elementos mostram que existe uma falta de fiscalização cidadã sobre as atividades de inteligência no Brasil, não apenas no Governo Federal. Então, as perguntas que pairam, e que são essenciais a serem respondidas são: quais programas foram adquiridos? Quem decide como eles são utilizados? Quem os fiscaliza? Também é importante pensar o que nós temos de novo a partir das duas últimas operações da Polícia Federal. O envolvimento direto de Alexandre Ramagem e de seu antigo número dois, o delegado federal Carlos Afonso Coelho, que foi convocado pelo atual diretor-geral da Polícia Federal, ainda em 2023, para ocupar um cargo na diretoria executiva da PF do governo Lula, é algo importante para reforçar.

Além desses dois, havia um grupo de policiais federais, também da confiança de Ramagem que, em grande parte, trabalhavam na segurança do então candidato à presidência Jair Bolsonaro, em 2018. E, pela primeira vez, temos a PF dizendo que ali havia uma organização criminosa que usou o software contra autoridades públicas, bem como para serviço de contrainteligência e criação de relatórios apócrifos. Esse tipo de coisa confirma suspeitas já levantadas pela imprensa nos últimos anos. Como o eventual uso da Abin para apoiar dois dos filhos do ex-presidente, Flávio e Jair Renan. Também há o uso da Abin para espionar opositores políticos do ex-presidente, como no caso do Rodrigo Maia, ex-presidente da Câmara dos deputados, e da ex-deputada Joice Hasselmann, e ainda o ex-governador do Ceará, Camilo Santana.

Além disso, há suspeita do uso desses programas para a confecção de relatórios falsos vinculando ministros do STF ao Primeiro Comando da Capital (PCC). São elementos muito preocupantes. Esses detalhes da atual investigação da Polícia Federal aumentam ainda mais a suspeita de que sim, o governo Bolsonaro fazia espionagem política contra pessoas, e não se sabe até onde isso vai chegar.

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