Povo Kaingang obtém nova vitória no STF contra anulação da Terra Indígena Toldo Boa Vista, no Paraná

Por dez a um, plenário da Suprema Corte considerou nula decisão que negou recurso contra anulação da TI sem ouvir indígenas

POR TIAGO MIOTTO, DA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CIMI

Uma importante vitória judicial foi obtida pelo povo Kaingang da Terra Indígena (TI) Toldo Boa Vista, no Paraná. No dia 11 de março, por dez votos a um, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu a favor da comunidade numa das ações que questionam a anulação de partes da demarcação da TI.

A vitória foi obtida na Ação Rescisória (AR) 2759, que busca reverter uma das seis decisões do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) que anularam partes da demarcação da terra indígena. A TI foi identificada e delimitada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em 2004 e declarada pelo Ministério da Justiça em 2007 como terra de ocupação tradicional dos Kaingang.

Em 2019, a comunidade ingressou com quatro ações rescisórias e dois recursos para anular as decisões contrárias – todas elas tomadas com base na tese do marco temporal, considerado inconstitucional pelo STF, e sem que os indígenas fossem ouvidos ou admitidos como parte do processo, o que também contraria o artigo 232 da Constituição Federal.

No caso específico da AR 2759, a ação buscava reverter uma decisão do próprio STF num recurso movido pela Funai, pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela União contra uma decisão do TRF-4 em favor de Izabel Nunes Peracchi, que obteve a anulação da parte da terra indígena sobre a qual incide sua propriedade. O recurso foi negado pelo então ministro Marco Aurélio e o processo transitou em julgado sem que os indígenas fossem ouvidos.

“Os Kaingang de Toldo Boa Vista questionaram ao STF, por meio da ação rescisória, o fato de que não puderam participar do processo”, explica Rafael Modesto dos Santos, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e um dos advogados da comunidade nas ações e recursos.

“O Supremo, agora, garantiu aos indígenas o direito de ser parte e a anulação das ações onde não foram ouvidos como litisconsorte necessário”, prossegue o advogado. “Agora, o recurso contra a decisão do TRF-4 será novamente analisado, desta vez com a participação dos indígenas, que poderão se manifestar”.

“É a primeira ação julgada no plenário que tem como natureza a anulação de ação judicial em face do artigo 232 da Constituição, de violação expressa à norma constitucional, que é o direito dos indígenas quando romperam com o regime tutelar em 1988”

As outras três rescisórias já tiveram decisões liminares a favor da comunidade, e em todas elas a anulação parcial da demarcação da TI já foi suspensa pelo STF. Outra das ações, a AR 2750, foi admitida e teve liminar concedida pela relatora, a então ministra Rosa Weber, e posteriormente confirmada pelo plenário da Corte.

A decisão tomada no plenário virtual nesta semana, no entanto, foi a primeira em que o Supremo analisou no mérito o pedido de anulação de um julgamento por falta de participação dos indígenas – e a primeira vitória dos indígenas nesse sentido.

“É a primeira ação julgada no plenário que tem como natureza a anulação de ação judicial em face do artigo 232 da Constituição, de violação expressa à norma constitucional, que é o direito dos indígenas quando romperam com o regime tutelar em 1988”, explica Rafael.

“O ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, já havia julgado monocraticamente em favor dos indígenas. A outra parte recorreu dessa decisão e, no plenário, foi mantida a decisão do ministro”, prossegue o advogado.

Os dois recursos extraordinários contra as decisões do TRF-4 que anularam partes da TI Toldo Boa Vista também já obtiveram decisão favorável do STF, revertendo as sentenças e restabelecendo as partes da demarcação anuladas nestes processos.

A única decisão de anulação da TI que ainda se encontra válida é, justamente, a que favoreceu a proprietária Izabel Nunes Peracchi. A decisão do plenário virtual desta semana abre caminho para que esta última anulação também seja revertida.

“Estamos muito felizes com mais uma conquista no STF, que vem reconhecendo o povo Kaingang aqui da região do Toldo Boa Vista. Esperamos que logo seja desapropriado e homologado esse território pelo governo federal”

“Queremos plantar, mas não temos terra”

Atualmente, segundo estimativas da comunidade, 25 famílias e 115 pessoas do povo Kaingang, entre crianças e adultos, vivem numa pequena parte da terra indígena, que fica localizada no município de Laranjeiras do Sul (PR) e foi delimitada com 7.336 hectares.

“Estamos muito felizes com mais uma conquista no STF, que vem reconhecendo o povo Kaingang aqui da região do Toldo Boa Vista. Esperamos que logo seja desapropriado e homologado esse território pelo governo federal”, afirma o cacique da TI, Cláudio Rufino.

“Seguimos lutando pelos nossos direitos. Hoje, vivemos numa área pequena aqui dentro dessa demarcação. Onde já foi desapropriado para nós, ocupamos e estamos usufruindo da terra, preservando mais o mato”, prossegue o cacique Kaingang.

“Nós queremos plantar, mas não temos condições. Não temos terra, porque ela ainda não está homologada”, explica Cláudio Rufino. “Já faz 28 anos que está rolando esse processo, e nós aqui, nessa pouquinha terra, criando nossos filhos. Queremos espaço para poder plantar milho, feijão, arroz, batata, mandioca, cana, criar porcos. Não podemos, hoje estamos amarrados”.

Além da falta de espaço para o plantio de alimentos, o cacique também relata que a demora na conclusão do processo demarcatório acaba por aprofundar a degradação da área pelos monocultivos, que prejudicam a comunidade Kaingang.

“Nós sobrevivemos do artesanato, mas a taquara está muito pouca. As águas estão muito poucas. As famílias [não indígenas] que moram aqui, dentro dessa demarcação, acabaram com as matas. Eles estão plantando muita soja, tem veneno nas cabeceiras desses riozinhos, dessas nascentes. Está nos prejudicando muito”, lamenta.

“Mas ficamos muito felizes com essa conquista. Esperamos que esse processo seja encerrado de uma vez por todas”, projeta o cacique.

No relatório referendado pelo plenário do STF, Moraes afirma que “a falta de citação das comunidades indígenas nas ações em que se discute seus interesses compromete o regular contraditório e fere a ampla defesa constitucionalmente garantida”

Tutela superada

O único voto contrário aos indígenas no julgamento realizado no plenário virtual do STF foi dado pelo ministro Kassio Nunes Marques – que, no ano passado, já havia votado contra os Kaingang de Toldo Boa Vista em outro processo judicial, no qual também restou derrotado.

Na ocasião, o ministro defendeu sua posição com base no regime tutelar, segundo o qual os indígenas eram tutelados pelo Estado e não tinham autonomia perante o Judiciário – um regime que foi superado pela Constituição Federal de 1988.

O direito dos povos indígenas de ser parte nos processos judiciais que tratam sobre seus direitos também foi reafirmado pelo plenário do STF no recurso extraordinário de repercussão geral julgado em 2023, que considerou inconstitucional a tese do “marco temporal”.

“Essa posição só é compreensível pelo fato do ministro Nunes Marques votar contra os indígenas em todas as matérias, porque o Supremo já firmou entendimento contrário. A posição do ministro é sustentada em legislação superada, não recepcionada pela Constituição. Por óbvio que esse tipo de voto, que não corresponde à previsão constitucional, vai ficar vencido no Supremo”, avalia Rafael.

No seu voto, acompanhado por todos os demais ministros – à exceção de Nunes Marques –, Moraes cita a tese fixada no julgamento de repercussão geral, destacando que “a falta de citação/intimação das comunidades indígenas nas ações em que se discute seus interesses compromete o regular contraditório e fere a ampla defesa constitucionalmente garantida às partes”.

Pelo menos cinco propriedades foram certificadas sobre a TI Toldo Boa Vista após a publicação da Instrução Normativa 30/2023 pela Funai

Partes excluídas e novas certificações sobre a TI

Apesar de cinco destas seis anulações judiciais de partes da TI terem sido revertidas, a base cartográfica da Funai ainda apresenta a TI Toldo Boa Vista com área reduzida em outra região. Atualmente, na base pública do órgão indigenista, a terra indígena possui apenas 6,7 mil hectares – cerca de 630 a menos do que a delimitação original, reconhecida pela Funai e pelo Ministério da Justiça.

As partes que constam como excluídas da TI correspondem à área de duas fazendas, certificadas no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) com os nomes de Fazenda Três Morros e Fazenda Chola.

A fazenda Três Morros possui 388 hectares e foi certificada em nome de Bruniswuava Pavlak em dezembro de 2018. A fazenda Chola, por sua vez, possui 245 hectares e foi certificada, dividida em duas partes, em nome de Otomar Civa Junior.

Ambos proprietários chegaram a obter na Justiça a anulação da área da TI que incluía suas propriedades. E ambas as decisões foram derrubadas pelo STF – no caso de Bruniswuava, em março de 2023, num recurso incidental, e no caso de Otomar, em 2019, numa das rescisórias.

A fazenda de Otomar Civa Junior foi certificada pelo Sigef em dezembro de 2020 – durante a vigência da Instrução Normativa (IN) 09/2020 da Funai, que liberou, durante o governo Bolsonaro, a certificação de propriedades privadas sobre terras indígenas não homologadas.

A TI Toldo Boa Vista foi diretamente afetada pela medida: pelo menos 55 propriedades foram certificadas em sobreposição à TI durante a vigência da normativa, revogada em agosto de 2023 pela nova gestão da Funai, por meio da IN 30/2023.

Em tese, com a nova normativa, não deveriam ser emitidas novas certificações do Sigef sobre terras indígenas já delimitadas. No entanto, pelo menos cinco propriedades foram certificadas sobre a TI Toldo Boa Vista após a publicação da IN 30/2023, em setembro e novembro de 2023.

Crianças na TI Toldo Boa Vista. Foto: comunidade Kaingang de Toldo Boa Vista

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