Fascismo e democracia: o verme na maçã. Artigo de Eva Illouz

IHU

“Se quisermos entender por que motivo alguns quadros podem chegar a distorcer nossa percepção do mundo social, por que motivo somos incapazes de nomear corretamente um mal-estar real, devemos levar o pensamento de Adorno a novos patamares e captar mais firmemente do que ele a interconexão do pensamento social com as emoções”, escreve Eva Illouz, diretora de estudos na Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais (EHESS) em Paris e professora de sociologia na Universidade Hebraica de Jerusalém, em artigo publicado em Nueva Sociedad, em abril de 2024.

Eis o artigo.
Com base no caso israelense, a autora desenvolve em seu livro A vida emocional do populismo uma análise abrangente sobre a influência das estruturas afetivas nas “ideologias viciadas” e nas tendências que, atualmente, parecem estar minando a democracia por dentro.

Em 1967, em uma conferência realizada em Viena, Theodor W. Adorno apresentou ao seu público observações de uma notável relevância para o nosso tempo, apesar das enormes diferenças que nos separam daquela época. Embora o fascismo oficialmente tivesse colapsado, as condições para os movimentos fascistas, ele afirmou, ainda estavam ativas na sociedade. O principal culpado era a tendência de concentração de capital, uma tendência ainda prevalente, que continua a criar “a possibilidade de desclassificação, de degradação, de camadas sociais que, de acordo com sua consciência subjetiva de classe, eram totalmente burguesas e desejavam manter seus privilégios e status social, e até mesmo reforçá-los”. São os mesmos grupos burgueses que estão caindo de categoria os que desenvolvem um “ódio ao socialismo ou ao que eles chamam de socialismo, ou seja, não culpam a sua potencial desclassificação a todo o aparato que o provoca, mas sim àqueles que adotaram uma posição crítica em relação ao sistema em que, em outra época, os membros desses grupos possuíam um certo status, em todo caso, de acordo com concepções tradicionais” [1].

Nessas breves linhas, Adorno condensou várias ideias-chave da teoria crítica. Para ele, o fascismo não é um acidente da história, nem uma aberração; ao contrário, opera dentro da democracia e é contíguo a ela. É, usando uma metáfora comum, um verme dentro da maçã, que apodrece a fruta por dentro, invisível a olho nu. Como uma antologia sobre a Escola de Frankfurt diz: “Um dos temas principais da primeira Escola de Frankfurt era que era impossível traçar uma linha clara entre os extremos do fascismo político e as patologias sociais mais cotidianas do capitalismo burguês no Ocidente” [2]. Isso também significa que o fascismo não precisa ser um regime completo. Na verdade, poderia ser uma tendência, um conjunto de orientações e ideias pragmáticas que funcionam dentro das democracias. Nas observações de Adorno também está contida a afirmação de que o capitalismo desdobra tendências para a concentração de capital e poder (uma ideia pouco surpreendente para um marxista, que até mesmo os não marxistas teriam dificuldade em refutar). Adorno ainda não tinha testemunhado a forma espetacular como o capital concentrado conseguiria capturar processos eleitorais democráticos. Ele se referia, portanto, à dinâmica de classes que a concentração de capital criava dentro das sociedades liberais. Essa dinâmica ameaçava constantemente degradar as mesmas classes burguesas que antes tinham contribuído para o sistema capitalista e se beneficiado dele.

É importante notar que Adorno enfoca a burguesia (uma mistura de segmentos das classes alta e média) e não o proletariado como agente desse novo fascismo. Ecoando uma tradição da sociologia que considerava o fascismo como a expressão do medo da “mobilidade descendente” [3], Adorno sugere que a mesma classe que tinha e ainda tem privilégios é a que apoiará quando esses privilégios estiverem ameaçados. Assim, a perda de privilégios parece ser uma motivação-chave para apoiar líderes antidemocráticos. (Nas eleições de 2016, o apoio a Donald Trump foi maior entre os grupos de alta e média renda. As pessoas com renda muito baixa eram mais propensas a apoiar Hillary Clinton.) [4] O desejo de manter o privilégio ou o medo de perdê-lo é, como sugere Adorno, uma força motriz da política em geral e da política fascista em particular.

O terceiro ponto – talvez o mais significativo (pelo menos para o meu argumento) – contido nas sucintas observações de Adorno sugere que a identificação com o fascismo tem suas raízes em certos modos de pensar sobre as causas (como pensamos sobre por que as coisas são como são) e em certos modos de atribuir culpas e responsabilidades. A classe burguesa degradada não culpará o próprio sistema capitalista pela concentração econômica que mina sua perda de status e privilégio. Em vez disso, atribuirá a culpa àqueles que criticam esse mesmo sistema. Mesmo em sua concisão, Adorno nos faz entender que tentar dar sentido ao seu mundo social é como estar dentro de uma câmara escura, uma imagem invertida do mundo exterior. Continuando com a tradição marxista da crítica à ideologia, Adorno identifica aqui um processo cognitivo muito importante em ação no protofascismo: a incapacidade de compreender a cadeia de causas que explicam a própria situação social. A percepção do mundo social, sugere Adorno, pode ser distorcida de forma fundamental. Os burgueses (e provavelmente outras classes) não podem identificar corretamente as causas de suas perdas e, portanto, não podem se unir àqueles que, mesmo não defendendo exatamente seus interesses, ao menos questionam o sistema responsável por sua degradação.

Em poucas palavras, então, Adorno avança uma hipótese sobre a persistência das tendências fascistas em nossas sociedades, devido tanto aos processos econômicos de acumulação e concentração de capital quanto a certos modos de pensamento distorcidos ou incompletos, que são encontrados especialmente nas maneiras como construímos a causalidade, nas formas como tornamos inteligíveis os eventos e como atribuímos as culpas, apontando para o que, em outro contexto, Jason Stanley chamou de uma ideologia viciada [5]. Uma ideologia viciada, como Stanley a define em How Propaganda Works [Como a propaganda funciona], priva os grupos do conhecimento de seus próprios estados mentais, escondendo sistematicamente seus interesses [6]. Quais são os verdadeiros interesses de uma classe ou grupo de pessoas, é claro, não são autoevidentes. Todo juízo a este respeito será feito com base em certos pressupostos por parte do pesquisador que distingue entre interesses verdadeiros e falsos, reivindicando para si uma certa autoridade epistêmica. Quando se tenta compreender o mundo social, assumir essa posição de autoridade epistêmica parece inevitável. Como cidadã, não acredito nas teorias divulgadas por QAnon e outros grupos conspiratórios; fazer de conta que sua visão de mundo é equivalente àquela apresentada em um jornalismo investigativo é uma forma de má fé. O pensamento, qualquer tipo de pensamento, contém apagamentos, deslocamentos, erros e negações. Recuperar essas negações e esses apagamentos ainda é a vocação da análise crítica da sociedade.

A ideia da Ideologiekritik tem sido criticada abundantemente, mas os acontecimentos políticos recentes sugerem que não podemos facilmente renunciar a ela. Há aqueles que argumentam que a Ideologiekritik frequentemente é realizada de má fé (criticando os outros mas não a si mesmo) [7], ou que concede demasiada autoridade ao pesquisador, ou que, qualquer que seja a escolha que uma pessoa faça, sempre será racional porque seu pensamento reflete seus objetivos. De fato, a análise sociológica deveria respeitar as razões que os cidadãos têm para manter suas opiniões e escolhas: não deveria zombar ou desconsiderar, mas em uma época em que florescem teorias conspiratórias extravagantes que obstruem os processos democráticos de formação de opinião, não podemos mais nos permitir supor que todos os pontos de vista são iguais ou igualmente informados; tampouco podemos nos permitir ignorar as manipulações da opinião que são urdidas por uma classe política cada vez mais sofisticada, extraordinariamente versada nas diversas artes de manipulação da opinião e do boato. O poder dessas artes de manipulação se desacoplou graças à rápida transmissão de informação nas redes sociais [8]. Assim, contra nossa vontade, devemos retornar à ideia da Ideologiekritik: quando se trata de dar conta da realidade, nem todas as ideias são iguais.

Uma ideologia estará viciada se cumprir as seguintes condições: se contradiz os princípios básicos da democracia enquanto os cidadãos realmente desejam que as instituições políticas os representem; se suas políticas concretas (por exemplo, ao pretender representar as pessoas comuns e, no entanto, favorecer políticas que dificultam enormemente o acesso à propriedade habitacional) entram em conflito com seus princípios ideológicos ou objetivos declarados; se desloca e distorce as causas do descontentamento de um grupo social; e se é alheia ou cega para os defeitos do líder (por exemplo, para a corrupção em benefício próprio ou sua indiferença ao bem-estar da nação). No entanto, deve ficar claro que não são apenas os apoiadores dos protofascistas populistas que caem nesta armadilha cognitiva, neste ponto cego. Existem muitos exemplos de casos assim. Jerome McGann argumentou, por exemplo, que a poesia romântica negou as condições materiais em que foi produzida através de evasões ou apagamentos. Os comunistas franceses que acreditavam no regime comunista soviético durante a década de 1950, quando já podiam conhecer a capacidade assassina de Stalin, são um exemplo não menos contundente de uma ideologia viciada [9].

Seguindo o pensamento de Adorno, o fascismo continua operando no seio das sociedades democráticas porque aqueles que são prejudicados pela lógica da concentração econômica não conseguem unir os pontos de sua cadeia causal e, de fato, podem se opor àqueles que trabalham para desmascará-la, criando assim um antagonismo curioso entre aqueles que se propõem a denunciar desigualdades e injustiças e aqueles que as sofrem. Esse antagonismo tornou-se uma característica-chave de muitas democracias ao redor do mundo. A questão da ideologia viciada é especialmente relevante atualmente porque em todos os lugares, e especialmente em Israel [10], a democracia está sob o assalto do que Francis Fukuyama chama de populismo nacionalista, uma forma política que mina as instituições democráticas por dentro e que, portanto, permite que os atores mais poderosos da sociedade – as corporações e os grupos de pressão – usem o Estado para satisfazer seus próprios interesses em detrimento do demos, que se sente curiosamente alienado das instituições que historicamente garantiram sua soberania. Como afirmam os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, as democracias não morrem apenas por golpes militares ou outros eventos tão dramáticos. Elas também morrem lentamente [11].

O populismo é uma das formas políticas que assume essa morte lenta. O populismo não é fascismo em si, sim uma tendência fascista [12], uma linha de força que exerce pressão sobre o campo político e o empurra em direção a tendências regressivas e predisposições antidemocráticas. Uma enorme quantidade de pesquisas tem tentado explicar o surgimento dessas tendências fascistas. Alguns o explicam pela globalização da mão de obra, que deixou a classe trabalhadora em uma situação precária; outros apontam para uma mudança nos valores culturais à qual o populismo é uma reação. A falsa consciência ou ideologias viciadas também são explicadas pela transformação dos meios de comunicação, que em muitos países foram consolidados e comprados com a intenção explícita de mudar a “agenda liberal” da imprensa dominante.

Na França, por exemplo, o empresário multimilionário Vincent Bolloré é proprietário de várias redes de televisão, incluindo a Cnews, canal de notícias 24 horas que promove uma agenda decididamente de direita. Bolloré foi apontado como o promotor da campanha do populista de extrema-direita Éric Zemmour [13]. Outro exemplo é o bilionário norte-americano de origem australiana Rupert Murdoch, que possui centenas de meios de comunicação em todo o mundo – incluindo a máquina de propaganda que é a Fox News nos Estados Unidos – e foi acusado de usá-los para apoiar seus aliados políticos [14]. Em Israel, por sua vez, o jornal gratuito Israel Hayom, financiado por um magnata do cassino já falecido, exerce uma enorme influência política. Portanto, a concentração de capital em todo o mundo teve o efeito de criar armas formidáveis para distorcer a consciência.

Junto com esse crescente controle da informação, a globalização da economia deixou as classes trabalhadoras em uma situação precária [15]. As políticas globalistas de Bill Clinton, como a assinatura do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), provocaram a ira de muitos eleitores da classe trabalhadora; o presidente do sindicato dos trabalhadores de energia foi citado dizendo: “Clinton nos ferrrou e não vamos esquecer disso” [16]. As classes trabalhadoras não se sentem mais representadas pela esquerda e até questionam a capacidade desta de articular seus interesses, um fato que reflete a implosão da ideologia social-democrata em todo o mundo, e talvez até o esgotamento do liberalismo [17]. A combinação desses fatores explica por que, em alguns lugares, estamos testemunhando o surgimento de tendências fascistas; ainda não é um fascismo pleno, mas uma mentalidade que certamente o predispõe.

Foco aqui em um aspecto desse complexo cenário: a percepção do mundo social através de quadros causais sociais defeituosos, ou seja, explicações viciadas dos processos sociais e econômicos. As palavras “defeituoso” ou “viciado” podem parecer desconfortavelmente próximas de “falso” e podem parecer nos levar de volta às armadilhas epistemológicas e morais da Ideologiekritik. No entanto, “viciado” deve ser diferenciado de “falso” porque não exclui ou nega o pensamento e o sentimento dos cidadãos. Contém a possibilidade de que, embora não seja perfeito, o pensamento não seja falso, mas apenas viciado. Não é falso no sentido de que contém a marca de uma experiência social real que o analista deve recuperar. Essas marcas produzem razões que precisam ser compreendidas e reconhecidas.

Presto muita atenção a essas razões, como fica evidente nas várias entrevistas que conduzi com pessoas que aderem a visões de direita, populistas e ultranacionalistas, nas quais tentei compreender a coerência interna de seus pontos de vista para questionar onde e como os pensamentos sobre nosso ambiente social são distorcidos. Concentro-me nos quadros causais (como explicamos nosso mundo social) e nos modos como afetam profundamente a cognição e o comportamento político.

Se quisermos entender por que motivo alguns quadros podem chegar a distorcer nossa percepção do mundo social, por que motivo somos incapazes de nomear corretamente um mal-estar real, devemos levar o pensamento de Adorno a novos patamares e captar mais firmemente do que ele a interconexão do pensamento social com as emoções. Apenas as emoções têm o poder multifacetado de negar a evidência empírica, moldar a motivação, transcender o próprio interesse e responder a situações sociais específicas. Assim, sigo a sugestão da socióloga sueca Helena Flam, de investigar a influência das emoções na macropolítica e “mapear as emoções que sustentam as estruturas sociais e as relações de dominação”[18]. A política está repleta de estruturas afetivas sem as quais não seríamos capazes de entender os modos como ideologias viciadas se infiltram nas experiências sociais dos atores e moldam seu significado.

Referências
1. T. W. Adorno: Rasgos del nuevo radicalismo de derecha. Una conferencia, Taurus, Madrid, 2020, p. 10.

2. Peter E. Gordon, Espen Hammer y Axel Honneth (eds.): The Routledge Companion to the Frankfurt School, Routledge, Abingdon, 2018, p. XVI.

3. Seymour Martin Lipset: Political Man: The Social Basis of Politics, Doubleday, Nueva York, 1960; Daniel Bell: The Radical Right [1955], Transaction, Nueva Jersey, 2002.

4. Entre las personas con ingresos por debajo de 30.000 dólares anuales, 53% votó a Clinton y 40% a Trump; con ingresos entre 30.000 y 50.000, 51% a Clinton y 42% a Trump; entre 50.000 y 100.000, 46% a Clinton y 50% a Trump; entre 100.000 y 200.000, 47% a Clinton y 48% a Trump; de 200.000 a 250.000, 48% a Clinton y 49% a Trump; y por encima de 250.000 dólares, 46% a Clinton y 48% a Trump. Ver «Exit Polls of the 2016 Presidential Elections in the United States on November 9, 2016, Percentage of Votes by Income» en Statista, 9/11/2016, disponible en https://www.statista.com/stati…

5. J. Stanley: How Propaganda Works, Princeton UP, Princeton, 2015.

6. Ibid., p. 5.

7. Bruno Latour: «Why Has Critique Run Out of Steam? From Matters of Fact to Matters of Concern». Critical Inquiry, vl. 30, n. 2, 2004.

8. David J. M. Lazer et al.: «The Science of Fake News». Science, v. 359, n. 6380, 2018.

9. David Scott Bell e Byron Criddle: The French Communist Party in the Fifth Republic, Oxford UP, Oxford, 1994.

10. El libro de Illouz se centra en gran medida en el caso israelí [n. del e.].

11. S. Levitsky e D. Ziblatt: How Democracies Die, Penguin, Londres, 2018. [Hay edición en español: Cómo mueren las democracias, Ariel, Barcelona, 2018].

12. Jan-Werner Müller: What Is Populism?, University of Pennsylvania Press, Filadelfia, 2016 [hay edición en español: ¿Qué es el populismo?, Grano de Sal, Madrid, 2018]; Ronald F. Inglehart y Pippa Norris: «Trump, Brexit, and the Rise of Populism: Economic Have-Nots and Cultural Backlash», Kennedy School Working Paper rwp16-026, Harvard, 2016; Noam Gidron y Peter A. Hall: «The Politics of Social Status: Economic and Cultural Roots of the Populist Right», British Journal of Sociology, v. 68, n s1, p. 57-84; Dani Rodrik: «Populism and the Economics of Globalization», Journal of International Business Policy, v. 1, n. 1, 2018.

13. Brian McCulloch: «Who Owns France’s Media and What Are Their Political Leanings?» The Connexion, 19/1/2022.

14. Liam Stack: «6 Takeaways from The Times’s Investigation into Rupert Murdoch and His Family». The New York Times, 3/4/2019.

15. D. Rodrik: ob. cit.

16. Erica Etelson: «How Liberals Left the White Working Class Behind». Yes! Magazine, 16/12/2019.

17. Patrick J. Deneen: Why Liberalism Failed, Yale UP, New Haven, 2019. [Hay edición en español: ¿Por qué ha fracasado el liberalismo?, Rialp, Madrid, 2018].

18. H. Flam: «Emotions’ Map: A Research Agenda», in: H. Flam y Debra King (eds.): Emotions and Social Movements, Taylor & Francis, Hoboken, 2005.

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