“A impunidade a militares que cometem crimes contra civis é sistêmica no Brasil”, aponta jurista Ela Wiecko

Ela Wiecko foi uma das peritas no julgamento do Estado brasileiro pela omissão do assassinato do camponês Antonio Tavares. 

Terra de Direitos

No dia 02 de maio de 2000 a Polícia Militar do Paraná, organizada em uma tropa de 1500 agentes e sob comando do governador à época, Jaime Lerner (antigo DEM), bloqueou a BR-277 e impediu – à bala – a chegada da comitiva de 50 ônibus a Curitiba. Eram cerca de 2000 trabalhadores rurais integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que se dirigiam à capital paranaense para participarem da Marcha pela Reforma Agrária, em comemoração ao Dia dos Trabalhadores e Trabalhadoras.

Na altura do KM 108, em razão de um bloqueio feito pela Polícia Militar, os passageiros desceram de um dos ônibus, quando PM’s atiraram e jogaram bombas contra os manifestantes, matando Antonio Tavares e ferindo mais de 200 pessoas. Dois dias depois do fato intensamente noticiado por veículos locais, no dia 04 de maio, foi instaurado um Inquérito Policial Militar para investigação da atuação dos agentes de segurança pública. Poucos meses depois, no dia 09 de outubro, o Ministério Público Militar emitiu um parecer favorável ao arquivamento dos autos. Já no dia seguinte, em 10 de outubro, mesmo dia que recebeu os cinco volumes do inquérito policial militar, o juiz militar determinou o arquivamento do caso, acolhendo o argumento de que os agentes agiram em consonância com “estrito cumprimento do dever legal”.

O Ministério Público Estadual, entendendo que se tratava de homicídio doloso, portanto, de competência da Justiça Estadual, ofereceu denúncia contra o policial Joel de Lima Santa Ana. No entanto, o Tribunal de Justiça, através de habeas corpus impetrado pelo réu, encerrou o processo criminal com o argumento de que o caso já havia sido arquivado pela Justiça Militar. A Procuradoria de Justiça não recorreu desta decisão. Com isso, todas as ações na justiça militar e comum de investigação dos responsáveis pelo assassinato de Antonio Tavares foram arquivadas. As agressões às mais de 200 vítimas nunca foram investigadas.

A ausência de resposta do sistema de justiça no que o MST reconhece como “um dos momentos mais emblemáticos do processo de violência e de criminalização na luta pela terra” foi objeto de recente condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH), em março deste ano. Na decisão, a Corte determina que Brasil adeque suas normativas, no prazo de um ano, para que a justiça militar deixe de ter a competência para julgar e investigar militares que cometam crimes contra civis. A medida visa enfrentar o atual quadro de impunidade.

A determinação é ainda mais relevante ao observar o alto número de mortes decorrentes de intervenções policiais. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública houve 6.429 mortes de civis por policiais em todo o Brasil, em 2022. Ao observar a proporcionalidade de mortes de civis por policiais mortos, o Fórum contesta o recorrente argumento de que as mortes de civis resultam de confrontos com os agentes de segurança pública. No Paraná, houve 479 mortes decorrentes de intervenções policiais para cada vitimização policial. “Os números observados contrariam a narrativa padrão de uso proporcional e reativo da força policial, de que as mortes ocorreriam em decorrência de confrontos”, aponta a pesquisa.

Nestes crimes cometidos por militares contra civis a impunidade é a tônica dominante. Estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública também revela que os Ministérios Públicos do Rio de Janeiro e de São Paulo pediram à Justiça em 2016 o arquivamento de nove em cada dez casos de mortes provocadas por policiais nas capitais fluminense e paulista, fato que também aconteceu com a investigação do assassinato de Antonio Tavares.

Em conversa da Terra de Direitos com a Ela Wiecko, a jurista reflete sobre impactos da impunidade na reivindicação pelos direitos humanos. Professora de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia da Universidade de Brasília (UnB) e Subprocuradora-geral da República, entre outros cargos, Ela foi uma das peritas do julgamento pela Corte Interamericana. Veja abaixo a entrevista. 

.1)     Quais são as principais falhas, ilegalidades e descumprimento de garantias judiciais cometidas na investigação do Massacre que resultou no assassinato do camponês Antonio Tavares e em mais de 197 feridos pela ação da Polícia Militar do Paraná? 

Na verdade, não houve uma investigação do Massacre do dia 2 de maio do ano 2000, ou seja, do conjunto de arbitrariedades cometidas pelas autoridades do estado do Paraná para impedir um protesto social dos integrantes do MST.

Foram instaurados um inquérito policial-militar (IPM) e inquérito policial comum para apurar a morte de Antônio Tavares. O IPM foi encaminhado à Justiça Militar (JM) com a conclusão de que a bala que causou a morte de Antônio foi disparada da arma do policial militar Joel Santana, mas ele estava no cumprimento de ordem superior legal e atuou amparado nas excludentes de ilicitude do artigo 42, I a III do Código Penal Militar. O Ministério Público na JM pediu ao juiz o arquivamento, e assim foi feito. A Polícia Civil, por sua vez, apurou os fatos e encaminhou o relatório à justiça comum. Ali, o Ministério Público ofereceu denúncia por crime de homicídio, que foi recebida pelo juiz.

Então a defesa Joel Santana impetrou habeas corpus no Tribunal de Justiça do Paraná (TJ) alegando que a ação penal na justiça comum não poderia continuar porque havia uma decisão da Justiça Militar sobre o fato, reconhecendo que o policial militar não praticara crime. O TJ concedeu ordem para extinguir a ação penal.

A falha determinante para que não houvesse responsabilização criminal pela morte foi a remessa do IPM a uma autoridade judicial incompetente. De acordo com a Constituição Federal o crime de homicídio praticado por policial militar contra civil deve ser julgado pela justiça comum. O descumprimento da Constituição se dá por meio de brechas na legislação. No parecer que apresentei à Corte concluí que o encerramento da persecução penal dos fatos apresentados no Caso Antonio Tavares e outros versus Brasil deve-se à instauração concomitante de inquéritos policiais militar e comum e a uma imprecisão jurídica na definição da natureza dos crimes objeto da Lei n. 9.299/1996.

Outras falhas foram apontadas nas manifestações e decisões de autoridades policiais, do ministério público e do judiciário. Todas decorrem de uma visão parcial e preconceituosa sobre a questão agrária no Brasil e os conflitos fundiários. O encarregado do IPM simplesmente nada apurou sobre as lesões corporais sofridas por outros integrantes do MST.

Consta que, em 5 de maio de 2000, alguns trabalhadores solicitaram ao Delegado de Polícia de Campo Largo que iniciasse uma investigação sobre as agressões das quais teriam sido vítimas. Ele enviou ao Instituto Médico Legal a lista de pessoas envolvidas nos acontecimentos para que fosse realizado um exame das lesões sofridas, mas não há notícia sobre o início de uma investigação a respeito.

A investigação ampla dos fatos solicitada ao Procurador-Geral de Justiça, em 15/5/2000, em face do Secretário de Estado da Segurança e Comandante-Geral da Polícia Militar, com base na Lei 4.898/1965, a então vigente Lei do Abuso de Autoridade, não foi deferida.

2. Na sua avaliação, por que o assassinato de Antônio Tavares, a agressão a mais de 197 manifestantes e um conjunto de violações de direitos pelo Estado permanece impune, passados 24 anos do Massacre? Qual é a base da impunidade neste caso?  

A impunidade da violência praticada pela polícia, bem como pela segurança privada contratada por fazendeiros e empresas, é um fenômeno presente em outras regiões do Brasil. No caso do assassinato do advogado Sales Pimenta, em 1982, no Pará, a Corte Interamericana de Direitos Humanos apontou uma impunidade estrutural e determinou ao Estado brasileiro, entre outras providências, a criação de um grupo de trabalho sob a coordenação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com a finalidade de identificar as causas e circunstâncias geradoras da impunidade e elaborar linhas de ação que permitam superá-las.

A maioria dos estudos sociojurídicos sobre a impunidade se ocupa do funcionamento do sistema de justiça criminal e explica a impunidade como consequência da cultura organizacional ou da incapacidade estatal por falta de pessoal qualificado ou de recursos materiais. Apenas uma minoria levanta explicações sistêmicas relacionadas com a estrutura social, política e econômica brasileira.

No Pará e no Paraná a base é a mesma. Trata-se da lógica do sistema de segurança pública e do sistema de justiça criminal orientada para os interesses econômicos de uma classe, a que detém a propriedade dos meios de produção.

3. Que fatos e dados evidenciam um caráter sistêmico de impunidade a militares que cometem crimes contra civis? 

O caráter sistêmico de impunidade a militares que cometem crimes contra civis é evidenciado pelas estatísticas que foram apresentadas durante o julgamento da Corte. Elas vêm sendo produzidas por pesquisadores e pesquisadoras do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

4. Na sentença a Corte Interamericana reconheceu que o Estado brasileiro violou os “direitos às garantias judiciais e à proteção judicial dos familiares de Antônio Tavares Pereira, em virtude da falta de imparcialidade e de devida diligência na investigação da Polícia Militar e no processo penal conduzido no âmbito da Justiça Militar (pars. 149 e 158 supra), relacionados à privação da vida do senhor Tavares Pereira.” Como que a falta de imparcialidade da justiça – neste caso – julgando caso envolvimento crimes de militares contra civis – viola as garantias judiciais e proteção judicial? 

O processualista paranaense André Szesz escreveu uma tese de doutorado sobre a imparcialidade do juiz. Um dos princípios constitucionais do processo penal é o direito de ser julgado por um juiz imparcial, isto é, que não assuma um lado, que não tenha interesse no resultado do processo e que sua decisão seja motivada objetiva e fundamentadamente. André diz que esse conceito é irrealizável, porque humanamente impossível. A parcialidade é a regra e os mecanismos de controle previstos em lei são ineficazes. Ele propõe que o horizonte de soluções viáveis busque construir uma vontade política de restruturação democrática do poder judiciário. Essas soluções, porém, estão fora do Direito.

Para muitos réus a parcialidade é bem-vinda quando os deixa sem punição, mas as vítimas como ficam? Ainda mais vulnerabilizadas porque a sua versão dos fatos é desqualificada e lhes é negada a assistência e reparação devidas quando reconhecida a responsabilidade criminal de alguém.

5. Buscando aproximar para o cidadão, por que é necessário que as garantias judiciais e proteção judicial sejam preservadas? Como a não preservação expõe as pessoas? 

A Corte reconheceu que o homicídio de Antonio Tavares devia ter sido julgado pela justiça comum e não pela militar. Assim, houve violação do direito ao juiz natural e ao devido processo legal, impactando na independência e na imparcialidade dos órgãos do sistema de justiça criminal. Esses direitos estão na Constituição e na Declaração Universal dos Direitos Humanos e eles devem preservados tanto para os acusados como para as vítimas. As vítimas de violações dos direitos humanos e seus familiares têm o direito de que essas violações sejam conhecidas e resolvidas por um tribunal competente.

Na sentença é demonstrado como a violação das garantias implicou falta de proteção a quase duas centenas de vítimas que ficaram sem acesso à reparação, pois nas atividades de investigação deixaram de ser adotadas as diligências iniciais mínimas conforme os padrões interamericanos, não foram colhidas diretamente declarações de manifestantes presentes no momento dos fatos, mas foram colhidos diretamente os testemunhos de 43 agentes da Polícia Militar. Em relação às lesões sofridas pelos trabalhadores manifestantes, mediante uso de balas de borracha, spray pimenta e de cães, não houve nenhuma diligência de investigação com o fim de determinar se elas teriam sido consequência do excesso no uso da força por parte da Polícia Militar.

Por outro lado, a proteção judicial por meio da ação civil de indenização proposta não observou prazo razoável.

6. Como medida de não repetição a Corte determinou que o Estado brasileiro adote medidas de capacitação dirigidas às forças de segurança que atuam no contexto de manifestações e protestos, de maneira permanente, e incluir direitos humanos no currículo. Por que o cumprimento dessa medida é necessário? O que a formação pode assegurar? 

Capacitação é condição necessária para execução de qualquer atividade pública ou privada. A capacitação fornece os conhecimentos básicos e treina habilidades imprescindíveis à execução da atividade. Mas uma capacitação efetiva não envolve apenas novos conhecimentos e habilidades, ela precisa fazer as pessoas pensarem o porquê e o para quê estão se capacitando.

A perspectiva dos direitos humanos deve perpassar todas e quaisquer capacitações das forças de segurança, atuem ou não no contexto de manifestações e protestos. Não se trata apenas de incluir direitos humanos no currículo, trata-se de transversalizar a perspectiva em toda a organização.  Se ela for vista apenas como um conteúdo apartado da práxis organizacional, as capacitações não surtirão efeito.

7. A Corte também determina que o Brasil adeque seu ordenamento jurídico em relação à competência da Justiça Militar, de modo que a Justiça Militar no Brasil não tenha competência para conhecer e julgar nenhum delito cometido contra civis. Qual a importância dessa determinação? E que caminhos o Brasil deve percorrer para fazer esta mudança? 

Essa determinação é fundamental para a redução significativa da violência letal praticada pelas forças policiais. O cumprimento dela passa pelo julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4164-DF/2008 pelo Supremo Tribunal Federal e por alterações legislativas, sobretudo da Constituição, o que é muito difícil no contexto político atual.

 

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