Coordenador do De Olho nos Ruralistas define o agronegócio como ‘essencialmente predador’ querendo cada vez mais terra
Ayrton Centeno, Brasil de Fato
Há oito anos, o jornalista Alceu Luis Castilho investiga os movimentos do agronegócio. Dessa tarefa, que dirige no observatório De Olho nos Ruralistas, emergiram publicações como Os Invasores e Mapa de Terras dos Parlamentares. Produziu os relatórios Os Financiadores da Boiada e Dossiê Bolsonaro e audiovisuais como De Olho na História e De Olho no Congresso, além de séries jornalísticas, caso, por exemplo, de De Olho nos Desmatadores.
Nesta entrevista a Brasil de Fato RS, Castilho aborda o conflito entre a proteção do meio ambiente e os interesses da bancada dos fazendeiros, hoje com mais de 300 representantes na Câmara e no Senado, reproduzindo eleitoralmente a brutal desigualdade social do Brasil. E nota que a violência legislativa contra a natureza não é somente produto da vontade de senadores como Luis Carlos Heinze (PP) ou de deputados com o perfil de Alceu Moreira (MDB), mas o reflexo de um sistema maior e mais danoso.
Brasil de Fato RS – O que é o De Olho nos Ruralistas e o que esse olhar descobriu quanto ao poder do agro sobre as decisões políticas no Brasil?
Alceu Castilho – É um observatório sobre agronegócio e as políticas ruralistas no Brasil – esferas que caminham juntas. Ele surgiu a partir de um livro chamado “Partido da Terra – como os políticos conquistam o território brasileiro” (Contexto, 2012), que falava de um sistema político ruralista no Brasil. Esse sistema político é acoplado aos interesses econômicos, do agronegócio e dos grandes proprietários de terra.
As decisões políticas no Brasil são historicamente tomadas por uma aristocracia ligada ao poder agrário, da República Velha à Frente Parlamentar da Agropecuária, do golpe de 1964, um golpe agrário, aos retrocessos sociais e ambientais promovidos pela bancada ruralista principalmente nos governos Temer e Bolsonaro, mas também nos governos democráticos de Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Fernando Henrique Cardoso. Trata-se de um movimento suprapartidário, com uma base eleitoral associada ao patrimonialismo, ao clientelismo e ao coronelismo. O Brasil discute pouco esse poder, diante da face cultural e midiática dessa hegemonia: a campanha “o agro é pop” é uma manifestação expressiva desse poder político e econômico.
BdF RS – Como definiria o papel da bancada ruralista nas iniciativas – projetos de lei, votações, manifestações de tribuna – que agridem o meio ambiente ou, de algum modo, comprometem a sua preservação?
Castilho – O papel é decisivo. Da formulação dos projetos à aprovação. Muito se falou da “boiada”, diante da sugestão de um dos ministros do Meio Ambiente no governo Bolsonaro, o paulista Ricardo Salles, de aproveitar que a imprensa só estava falando de covid para aprovar medidas que afrouxavam leis ambientais. Ocorre que a Frente Parlamentar da Agropecuária se reúne há décadas, todas as semanas, para aprovar leis nesse sentido. E ainda indica todos os ministros da Agricultura e seus principais secretários.
Mas a responsabilidade é mais ampla: esses deputados e senadores são apenas os representantes de interesses econômicos. Em 2022, nós publicamos um estudo chamado “Os Financiadores da Boiada”, sobre o quanto a bancada ruralista é estruturalmente financiada por associações de classes que são mantidas por fazendeiros de todo o país, sojeiros, pecuaristas, canavieiros, mas também por empresas gigantes do Brasil e do exterior, multinacionais, fundos, bancos.
BdF RS – Uma das explicações mais recorrentes sobre o desastre que vive hoje o Rio Grande do Sul está no uso predatório da terra – derrubada de matas ciliares, perda dos campos nativos, uso abusivo de agrotóxicos em grandes lavouras de soja etc – e no afrouxamento da legislação estadual e federal que protege o ambiente natural. Qual é a sua explicação?
Castilho – Vivemos sob um modo de produção essencialmente predador. Expansionista. E não me refiro só à necessidade de expansão do próprio capital, uma necessidade que nenhum teórico liberal sério ousará questionar. Mas à necessidade de mais território em um planeta finito. Isso significa que os proprietários de terra, do agronegócio à mineração, avançam sobre comunidades tradicionais e indígenas, aquelas que mais defendem o ambiente, e sobre unidades de conservação.
As contas não fecham e quem perde é o ambiente. As cidades representam apenas 0,7% do território brasileiro, refiro-me aos núcleos urbanos, e eles também são construídos a partir de uma lógica predatória, onde a renda da terra para um punhado de proprietários ganha mais importância nas políticas públicas do que os interesses sociais e ambientais. A somatória de todos esses fatores gera catástrofes como essa do Rio Grande do Sul, mas também uma destruição diária que muitos só percebem quando aparece a ponta do iceberg.
BdF RS – Naquela que é, talvez, a mais longa e cara campanha da história da publicidade brasileira, afirma-se que o “agro é pop”. Na vida real, o “agro” é reiteradamente vinculado à grilagem, ao roubo de terras dos povos originários, à destruição da Amazônia, e mesmo aos assassinatos de camponeses e indígenas. Você tem alguma expectativa de que a imprensa corporativa algum dia se interesse em debater essa contradição?
Castilho – Não. A imprensa corporativa faz propaganda do agronegócio. Não estou dizendo apenas que a publicidade da Globo faz campanha para o agronegócio, mas que o jornalismo incorpora esses conceitos e, portanto, deixa de ser jornalismo. A partir do momento em que ele cobre o agronegócio, e não mais a agropecuária, o campo, ele está fazendo campanha por um modelo que não é o único — já que temos a agroecologia e a agricultura muito mais consciente praticada há milênios pelos povos do campo.
A imprensa corporativa é bancada por aqueles que têm interesse na perpetuação desse modelo. A família Marinho é proprietária de terras. Silvio Santos ganhou um imenso latifúndio durante a ditadura no Mato Grosso. E assim por diante. Não fossem os donos da mídia donos também de terras, ainda assim estariam sendo financiados por quem defende o modelo e, ao mesmo tempo, faz de conta que não financia a destruição. É tudo também uma grande lavagem de imagem.
BdF RS – Você já disse que, enquanto o Rio Grande se afogava, mais de 20 projetos de lei que atacam a proteção ambiental tramitaram no Congresso. A impressão que isso passa é que, hoje, o grande inimigo do meio ambiente no Brasil é o Congresso. Dá para dizer que o grande negacionista climático do país é o Congresso Nacional?
Castilho – O Congresso é a expressão política do negacionismo. Com alguns parlamentares mais explicitamente obscurantistas, como o senador gaúcho Luis Carlos Heinze. Mas não nos enganemos: há os que disfarçam mais. Nem todo ruralista do Congresso é líder da Frente Parlamentar da Agropecuária, como Heinze, como o deputado Alceu Moreira. Basta citar o presidente da Câmara, Arthur Lira, fazendeiro: sem ele não haveria CPIs contra os povos do campo, sem ele a bancada ruralista não emplacaria seus projetos.
Acima de todos esses, porém, está o poder econômico, que pratica diariamente o greenwashing (camuflagem do impacto real de uma empresa sobre o meio ambiente). A ele interessa que percebamos as ofensivas contra o ambiente como algo oriundo apenas de alguns setores atrasados ou de alguns parlamentares irresponsáveis. Não é essa a realidade, as piores almas no Congresso apenas prestam um serviço útil ao capital.
BdF RS – Dois dos projetos mais devastadores envolvem um senador, Luis Carlos Heinze (PP), e dois deputados federais, Alceu Moreira (MDB) e Lucas Redecker (PSDB), todos gaúchos. O que representam tais projetos?
Castilho – Algumas peças em um quebra-cabeças mais amplo. Não estou aqui para defender nenhum desses senhores, mas quando eles não estiverem no Congresso outros parlamentares, gaúchos ou não, defenderão medidas exatamente como as que eles propõem. O pacote da destruição na Câmara e no Senado não é obra apenas de políticos de má índole, é a expressão de um sistema.
As leis aprovadas no Congresso passam antes pelas Comissões de Agricultura, antes disso nas reuniões do Instituto Pensar Agro, que sustenta a Frente Parlamentar da Agropecuária e é sustentado por empresas de todo o mundo. A lei pró-veneno relatada pelo deputado federal Luiz Nishimori, do Paraná, não é uma lei aleatória de uma mente criativa, ela traduz os interesses da Syngenta, da Mitsui, de multinacionais que têm interesse no “liberou geral”. O que não tira, claro, a responsabilidade desses e de outros senhores. Mas não é só Heinze que quer o avanço de monoculturas em áreas de proteção permanente.
BdF RS – É interessante ver que existe uma espécie de tabelinha entre certas propostas. Neste ano, a Assembléia Legislativa/RS aprovou a permissão ao agronegócio para erguer barragens em áreas de preservação ambiental (APPs). É de autoria do deputado Delegado Zucco (Republicanos), irmão do coronel Zucco, federal pelo PL. A mesma proposta é defendida agora nacionalmente pelo senador Heinze… Isto se repete em outras situações?
Castilho – Sim, pois se trata de um sistema. O deputado Zucco representa a extrema direita que se alia aos grandes proprietários de terra, mesmo que ela tenha origem urbana — policial, militar. Todos esses senhores defendem a conservação do poder, o que significa destruição do ambiente. Essa equação precisa ser bem compreendida pela população. Pois tem político oportunista que vai até os locais das catástrofes fazer falas compungidas, mas ao longo do ano e dos mandatos joga contra o ambiente e permite que os pobres fiquem confinados em área de risco.
Quando a classe média e os ricos sofrem também as consequências a sociedade desperta um pouco mais, mas a tendência é que o cinismo volte a crescer na mesma medida em que as águas baixem. O prefeito de Eldorado do Sul fez obra de terraplanagem na Ilha das Flores entre um e outro mandato. Antes de ser um político emocionado, ele é um empresário calculista. Mas insisto: não é o caso apenas de personalizarmos o mal neste ou naquele político. É preciso questionar as estruturas, econômicas, políticas, eleitorais.
BdF RS – Passou meio batido neste ano o bicentenário da primeira Constituição brasileira, a de 1824. Nela, embora outorgada pelo imperador Dom Pedro I, já tinha imensa influência o que chamamos hoje de “bancada ruralista”. Estamos lidando então com o mais perene grupo de interesse com hegemonia na representação legislativa…
Castilho – O Brasil é um país agrário. Territorialmente agrário, econômica e politicamente agrário. Ainda. Em uma perspectiva histórica, sim, o poder político sempre esteve com as aristocracias agrárias, ainda que com alternância entre elas. Como na proclamação da República e no fim da República Velha.
As Constituições sempre refletiram isso. Inclusive a de 1988, onde a reforma agrária e a função social da propriedade foram motivo de debates intensos. Note-se que somente na virada dos anos 1960 para 1970 o Brasil deixa de ter uma população majoritariamente rural, a partir daí a maioria passa a ser urbana. Antes disso, portanto, nem se definia uma bancada ruralista, o Congresso era ruralista.
Com a eleição de Francisco Julião, em 1962, a Câmara passou a ter um representante das Ligas Camponesas. Mas veio o golpe de 1964, não por acaso, um golpe muito centrado no medo da reforma agrária – algo realizado nos países centrais do capitalismo. E se passou a falar de bancada ruralista no contexto da ascensão da União Democrática Ruralista (UDR), esta uma reação aos movimentos sociais do campo, que cresciam junto com a redemocratização. Só que, nessa época, a bancada ruralista era mal vista pela mídia. Ela foi sendo assimilada nos últimos anos exatamente na medida em que a noção de latifúndio, negativa, era trocada pela de agronegócio, mais palatável, até o momento atual em que se tenta até retirar a palavra negócio do “agronegócio”. O movimento das elites foi no sentido de tentar naturalizar algo que era, por definição, violento, expressão eloquente da desigualdade estrutural do país.
BdF RS – Outro fato impressionante é que os ruralistas possuem uma super representação no Congresso, algo como 200 congressistas. Ou seja, nosso sistema eleitoral reproduz no parlamento a desigualdade que existe na questão do acesso à terra no país, onde 1% das propriedades ocupam 45% da área. Você tem algum otimismo frente a esse quadro?
Castilho – São mais de 300 deputados, 3/5 da Câmara, e 2/3 do Senado. Não vejo uma questão de otimismo ou pessimismo, mas a necessidade de sermos realistas, de entendermos os motivos históricos para essa configuração. Nós somos os herdeiros das desigualdades. Não há equilíbrio eleitoral entre o gari e o grande fazendeiro, este tem a mídia, o capital cultural e as redes políticas que permitem a perpetuação dessa riqueza. Com ela, o acesso às estruturas que permitem o acesso ao eleitorado, a partir inclusive do clientelismo.
Arthur Lira é um fazendeiro e um articulador de vaquejadas e cavalgadas, um mediador de verbas para os prefeitos e para toda uma rede de políticos e de empresários, entre eles pequenos e médios. Eles abocanham uma fatia maior das conquistas, distribuem as migalhas e convencem as pessoas de que as estão beneficiando. Esse jogo é complexo e construído há séculos. É como se estivéssemos jogando damas e o adversário, xadrez.
Para uma mobilização no sentido contrário é preciso muito planejamento e uma luta diária, mas esse mesmo poder econômico sabota as lutas contra-hegemônicas, criminalizando-as, como no caso do acesso à terra. Os verdadeiros invasores de terra neste país são os grandes fazendeiros, como mostramos no relatório “Os Invasores”, mas querem fazer crer que são os sem-terra. E os donos do dinheiro têm a mídia a favor, às favas os fatos. Não é culpa do eleitor que ele esteja sendo manipulado. É preciso combater tudo isso para no mínimo não sermos cúmplices.
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Imagem: Alceu Castilho, jornalista e criador do observatório “De Olho Nos Ruralistas”. Foto: (CC BY-SA) Fora do Eixo