Queimadas: pesquisadoras da Fiocruz detalham a devastação da vida no Pantanal

Barbara Souza, Informe Ensp

Maior área úmida continental do planeta e casa de uma biodiversidade tão diversa quanto ameaçada, o Pantanal passa por mais uma intensa série de queimadas. Estima-se que, nos últimos cinco anos, os incêndios tenham degradado cerca de 9% da vegetação do bioma. A destruição gera prejuízos para a saúde das espécies que habitam o Pantanal e também das que vivem fora. Os danos são incontáveis e atingem, a curto, médio e longo prazos, populações humanas e de outros animais de formas variadas. O Informe Ensp conversou com as pesquisadoras Sandra Hacon e Marcia Chame, ambas da Fiocruz. Elas são biólogas e há décadas têm se dedicado a estudar questões ligadas à relação entre saúde e ambiente, inclusive no Pantanal.

“Para os poluentes não há fronteiras”, afirma Sandra Hacon, que atua no Departamento de Endemias Samuel Pessoa (Densp/Ensp), ao comentar o alcance dos problemas de saúde causados pelas queimadas. A depender da direção, da velocidade dos ventos, de outras condições meteorológicas e do tamanho das partículas geradas pela queima, a poluição pode chegar cruzar municípios, estados e até chegar a outros países. “Partículas de poluentes podem penetrar profundamente nos pulmões, chegando à corrente sanguínea, com efeitos sistêmicos para o organismo humano. Esses poluentes são responsáveis por cerca de um terço das mortes por Acidente Vascular Cerebral (AVC), doença pulmonar obstrutiva crônica, asma e câncer de pulmão, além de um quarto das doenças do sistema circulatório”, cita.

Coordenadora da Plataforma Institucional Biodiversidade e Saúde Silvestre (Pibss/Fiocruz) e pesquisadora da Ensp, Marcia Chame também apontou a contaminação pela poluição atmosférica ao elencar problemas enfrentados por quem vive no Pantanal durante as queimadas. Ela destacou ainda que a contaminação ambiental também torna a água imprópria para consumo, elevando a frequência de infecções intestinais. Nesse contexto, há ainda “um aumento de doenças de pele de etiologia desconhecida”, complementou. “A fumaça e o material particulado no ar geram contaminação por mercúrio e outros elementos químicos tóxicos. As cinzas brancas, resultante da queima de toda a matéria orgânica, também é composta de elementos que geram contaminação, intoxicação e doenças degenerativas como câncer, que só vai aparecer tempos depois. Com a chegada das chuvas, toda a cinza deságua nos corixos, poluindo os rios, as baías e matando peixes e alevinos (iscas que são fonte de renda de muitas comunidades). Não há mais água potável para beber”, detalha.

Outros danos listados por Marcia atingem todos os aspectos da vida, da saúde física e mental à economia, ampliando a dimensão do estrago. “As pessoas pantaneiras sofrem os mesmos impactos que animais e plantas. Respiram o mesmo ar e sentem o mesmo calor, sofrem queimaduras quando tentam apagar o fogo e são alcançadas ou contaminadas por ele. Perdem suas lavouras, seus animais de criação e estimação, a pesca, o turismo e formas alternativas de viver. Perdem a palha e a madeira com as quais constroem suas casas nas aldeias. Além disso, perdem a referência dos lugares onde nasceram e vivem”, lamentou a pesquisadora. Ao listar os prejuízos, Marcia também chama a atenção para a saúde mental dos atingidos. “Os níveis de suicídios são grandes. Há depressão entre idosos e jovens, que não sabem por onde começar e não possuem recursos para um recomeço. Por serem comunidades pequenas e distantes dos grandes centros urbanos, não geram apelos e sensibilização nacional. Estão sós e apartadas da esperança”.

Na mesma linha, Sandra reforça que as queimadas prejudicam a saúde humana de forma desproporcional, pois os determinantes sociais da saúde, como local e condições de moradia, nível de acesso a serviços de saúde e falta de saneamento, tendem a exacerbar os efeitos da exposição aos poluentes. “Em geral, os impactos são mais acentuados nas populações de menor renda per capita, que vivem condições de moradia precárias”, afirma. A poluição do ar, das águas, dos alimentos, do solo, atinge os expostos de diferentes maneiras, intensidades e magnitudes. “Os mais vulneráveis, como crianças menores de 5 anos, gestantes, idosos e pessoas com comorbidades, são as mais afetadas”, explica.

Distantes de áreas naturais, como florestas e matas, muitas pessoas não se dão conta de que a qualidade de vida e a saúde delas depende da biodiversidade. Em oposição ao senso comum, as consequências trágicas das queimadas no Pantanal não se restringem a quem habita aquele bioma. “A complexa rede de espécies que garantem o equilíbrio ecossistêmico é a rede que garante a sustentabilidade da vida e, portanto, também da espécie humana”, diz Marcia. O fogo natural no Pantanal representa menos de 5% do total das queimadas que o atingem. Diante disso, a bióloga faz uma crítica ao afirmar que “não há avanços significativos que sustentem ações para a conservação do Pantanal e que garantam, portanto, a saúde humana, animal, do ecossistema e da economia, interdependentes”.

Em relação ao desequilíbrio ambiental, Marcia alerta para a invasão de espécies exóticas ao Pantanal e capazes de sobreviver naquele ambiente degradado. “Elas se instalam rapidamente, dando a sensação que o Pantanal vive. Mas este não é mais o Pantanal, é outro, simplificado e pobre”, lamenta. A vegetação que compõe a biodiversidade e serve de alimento e abrigo para animais, também padecem, gerando um acúmulo de efeitos negativos dos incêndios. “As plantas que não foram queimadas também sofrem com a fumaça e as partículas suspensas no ar. Apenas resistindo, não florescem nem frutificam, o que gera mais fome para os animais e menos flores para polinizadores, menos dispersão de sementes, o que torna a recuperação lenta e sofrida”.

Além de todo o impacto descrito pelas pesquisadoras, reflexos ainda desconhecidos da degradação ambiental pelos incêndios no Pantanal também preocupam. Novas doenças podem surgir e zoonoses conhecidas podem se intensificar. “Ainda é necessário monitorar e compreender como o fogo e a fumaça podem determinar o rearranjo de espécies de vetores e hospedeiros que, fugindo das áreas queimadas e secas, aproximam-se das comunidades humanas e podem favorecer a ocorrência de agentes infecciosos que antes estavam restritos aos ciclos silvestres. Dessa forma, podem surgir novas doenças ou agravar algumas já conhecidas, como a raiva transmitida por morcegos”, elucida Marcia.

O Pantanal abriga mais de 3,5 mil espécies de plantas, 300 de peixes, 460 de aves, 100 de mamíferos, 177 de répteis e 40 de anfíbios, além de uma riquíssima fauna de invertebrados e microbiota pouco conhecida, salienta Marcia. A pesquisadora explica que, como uma planície alagável – a maior do mundo -, a região depende da dinâmica das águas que nascem em outros biomas e dos rios voadores que transportam chuvas formadas pela umidade da Amazônia. “É a dinâmica das cheias e vazantes que determina a biodiversidade do Pantanal, recheada de espécies amazônicas e do Cerrado, além das suas próprias. São as águas que espalham matéria orgânica e sementes nas áreas que secarão, tornando-as férteis nos períodos secos”.

Tudo está conectado quando se trata de ambiente e saúde. Marcia aponta o desmatamento amazônico como uma das causas da seca e das queimadas no Pantanal. Ela cita ainda a perda de vegetação das cabeceiras e margens dos rios que alimentam a bacia hidrológica do bioma. “Também são reflexos dos barramentos realizados para irrigação, dessedentação de rebanhos, mineração e outras atividades humanas, como assoreamento dos rios pela contribuição das lavouras e pelo trânsito de barcaças”, detalha Marcia. Assim, ela explica, as cheias perdem volume de água e, portanto, os alagamentos atingem áreas menores. Além disso, a água é rapidamente drenada e, por isso, as cheias são mais curtas. “Dessa forma, o lençol freático vai se tornando cada vez mais profundo, ampliando as secas”, o que torna o Pantanal mais suscetível ao espalhamento do fogo, como destaca a pesquisadora.

As elevadas temperaturas, assim como as ondas de calor no Pantanal, marcaram uma tragédia climática em 2020, quando mais de 37 milhões de animais vertebrados morreram, conforme relembra Sandra Hacon. Em 2021, um estudo coordenado por ela e realizado em parceria com o WWF-Brasil sugeriu uma série de medidas ao poder público para prevenir e minimizar os efeitos das queimadas no Pantanal. Segundo a pesquisadora, as recomendações não foram seguidas. “Um dos fatores mais críticos para os órgãos de controle ambiental é conseguir mitigar os incêndios florestais, e a velocidade de detecção dos focos dos incêndios. Algumas Organizações Não governamentais, como a SOS Pantanal, que lançou o sistema Aracuã, estão conseguindo monitorar os incêndios em tempo real. A Ministra Marina Silva tem noticiado que foram identificados 18 pontos de início dos incêndios em fazendas do Pantanal (MS), e que a Lei de Crimes Ambientais será aplicada”, afirma Sandra.

Marcia resume a gravidade do problema: “Secas e incêndios se tornam eventos consecutivos que se se retroalimentam e se amplificam, gerando impactos para além da queima durante o fogo. Trazem consequências permanentes e alarmantes não só para o Pantanal, mas para todo o continente sul-americano, pois está no centro de seu território multinacional. Não há percepção desta tragédia pelo poder público e propostas concretas para reversão. As ações de salvamento pontuais não serão suficientes para proteger o Pantanal. Há que se cessar as causas reais que o transforma para garantir biodiversidade e saúde”.

Foto: Diana Aguiar

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