Agonia. Por Jacques Gruman

Palavra boa/Não de fazer literatura, palavra/Mas de habitar/Fundo/O coração do pensamento, palavra (Chico Buarque)

em A voz da esquerda judaica

Lá se vai mais uma. Seguindo a trajetória de extermínio sistemático das livrarias do Rio, está fechando as portas a Malasartes, pioneira em literatura infanto-juvenil no Brasil. Criada há quase meio século, ajudou a formar gerações de leitores, que lá apareciam latejando curiosidades e buscando letras, imagens e sobretudo afeto e acolhimento. Dona Yaci Mattos de Moraes sabia disso e foi uma espécie de mestre de cerimônia que abriu portas para a literatura.

O Rio está cada vez mais parecido com um cemitério de livrarias. Perdi a conta de quantas naufragaram nos últimos anos. Uma antiga música, lindamente cantada pelo Milton Nascimento, precisa de atualização carioca. “Estan clavadas dos cruces/en el monte del olvido”. Por aqui, as ruínas de estantes são muito mais do que duas. Não param de crescer. Eldorado, Saraiva, Entrelivros, Brasileira, São José, Emanuel, Mestre Jou, Cultura, Padrão, Galileu, Timbre, Arlequim, Camões. E aquela na rua 7 de Setembro, como se chamava mesmo?, onde numa pilha de equilíbrio incerto descobri, fantasiado de poeira, um exemplar original do Almanhaque 1955, do Barão de Itararé, com autógrafo escrachado do insigne gaúcho? Que dizer do quase esconderijo no centro velho, apertadinho que só ele, onde iniciei-me no mundo, vasto mundo, do Rubem Braga?

Bairros inteiros, com populações maiores do que muitas cidades, não têm mais livrarias. Em Copacabana, com mais de 160 mil habitantes, resiste apenas um sebo, o 2005, simpático herdeiro de uma tradição que está sendo nocauteada pelas vendas online. Perde-se o contato com livreiros interessantes, o prazer de ser surpreendido por obras que não procurávamos (e nos chamam em silêncio).

Não me esqueço do dia em que esbarrei com o Joaquim Ferreira dos Santos numa livraria. Tomei coragem e me aproximei para uma prosa rápida. Simpático, sem a menor afetação, meu cronista cativo das segundas-feiras no jornal falou sobre o leilão da discoteca do Big Boy, lendário DJ de épocas radiofônicas. Hello, crazy people, Big Boy rides again! Lembramos histórias do Zózimo Barroso do Amaral, meu parente postiço, que ele biografou com a tradicional eficiência. Se eu tivesse usado o teclado para encomendar o livro que procurava, o encontro não aconteceria.

Será acidental a coincidência do colapso das livrarias com a ascensão irresistível dos dispositivos eletrônicos? Recorro a um artigo recente do Ruy Castro para dimensionar o tamanho da encrenca. Ruy se refere à experiência narrada por uma amiga, professora universitária. Disse ela: “É uma luta fazer com que os alunos leiam um livro inteiro. Eles vivem grudados no TikTok ou no Instagram e não têm concentração. Outro dia, ao ver que todos estavam no celular, parei a aula. Perguntei a alguns o que estavam lendo – e muitos não se lembravam do que tinham acabado de ver 15 segundos atrás! Um deles disse que estava comprando uma calça comprida. Para usar a palavra que eles mais usam, não têm foco”. Mais adiante: “O vocabulário encolheu, o que significa que, em breve, só poderão expressar ideias muito simples. Não toleram nada que passe de dois minutos e meio”.

Velho rato de livrarias, fico jururu neste universo desfolhado e desencapado. Como é que tanta gente vai comunicar seus sentimentos, suas sensações por estarem no mundo, seus gostares e estranhares? Através de grunhidos? O Paulo Mendes Campos dizia que “escritor é quem não tem nenhuma facilidade para escrever”. Exatamente. Traduzir em palavras as subjetividades, o difícil exercício de viver, é correr duas maratonas por parágrafo. Sem nenhuma garantia de que se subirá ao pódio.

Há lusco-fuscos de esperança. Minha netinha querida, desde sempre fuçadora de textos e encantadora de histórias, foi comigo a um pequeno sebo. Comportou-se como veterana. Olhou sem pressa as estantes, chamou o livreiro para tirar dúvidas, deixou o inesperado fazer surpresas. Acabou escolhendo um exemplar meio velhusco em inglês (!) e voltou feliz para casa. Um tipo de felicidade que comecei a cultivar cedo e dá sentidos para seguir na estrada.

Abraço. E coragem.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Isabel Carmi Trajber.

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