Cinco intelectuais. Por Afrânio Catani

Análise das trajetórias de Vinicius de Moraes, B. J. Duarte, Octavio Ianni, Florestan Fernandes e Pierre Bourdieu

Em A Terra é Redonda

“Chaque jour nous laissons une partie de nous-mêmes en chemin”
(Amiel)

1.

A epígrafe do presente ensaio foi retirada do Journal intime (1847-1881) do escritor suíço de expressão francesa Henri-Frédéric Amiel (1821-1881). Curiosamente, o médico e escritor português Miguel Torga (1907-1995) também a utiliza em seu Diário (1999). Não vou detalhar o Journal de Amiel – ver Boltanski (1975). Apenas sublinho que há “pedaços de mim” nestas páginas, que me identifico com a afirmação de Amiel, permitindo que explore dimensões de minha trajetória intelectual, aqui representada por reflexões acerca dos percursos historiográficos de cinco intelectuais,[1] escritas ao longo de 25 anos.

Não é uma escrita distante e desapaixonada; ao contrário, tenho empatia com os autores com quem dialogo. É evidente que, em meu trabalho, me valho de formas distintas do que foi produzido pelos “casos” estudados: B. J. Duarte (1910-1995), Vinicius de Moraes (1913-1980), Octavio Ianni (1926-2004), Florestan Fernandes (1920-1995) e Pierre Bourdieu (1930-2002).

Não me identifico com o conservadorismo político de B. J. Duarte e com as tomadas de posição políticas do jovem Vinícius de Moraes. Gostaria de ter escrito vários versos do poeta carioca e de possuir o domínio técnico, clássico, da fotografia de Benedito Junqueira Duarte. Admiro os esforços de Octavio Ianni para explicar a vida social, política e cultural em parte da América Latina, além de todo um trabalho teórico exaustivo de renovação da sociologia empreendido por Florestan Fernandes e por Pierre Bourdieu – valorizo os engajamentos políticos (e as tomadas de posição nesse domínio) de Octavio Ianni, Florestan Fernandes e Pierre Bourdieu em favor dos despossuídos.

Enquanto Florestan Fernandes nunca deixou de estudar os que estão lá embaixo, Octavio Ianni voltou parte de suas preocupações aos afetados pelo avanço do capitalismo nas sociedades contemporâneas e Pierre Bourdieu dedicou muita energia ao desvendamento dos “fundamentos ocultos da dominação”, mostrando as causas sociais da miséria do mundo.

Em suas memórias, Edward Said fala dos lugares por onde andou e das influências recebidas: “muitos dos lugares e das pessoas que aqui relembro não existem mais, embora eu me espante frequentemente com o tanto que carrego deles dentro de mim, muitas vezes em detalhes miúdos e assombrosamente concretos” (Said, 2004, p. 11). Nessa direção, o filme de Izabel Jaguaribe, Paulinho da Viola: Meu tempo é hoje (2003, 83 min.), dedicado ao sambista carioca, tem uma fala lapidar do biografado, que diz: “meu tempo é hoje; eu não vivo no passado, o passado vive em mim”.

Em Ricardo Piglia localizei pista mais segura para compreender o que me levou, ao longo dos anos, a escrever o que escrevi, definindo a natureza de meu trabalho enquanto pesquisador e professor. Para o escritor argentino, “a crítica é a forma moderna de autobiografia. A pessoa escreve sua vida quando crê escrever suas leituras. (…) O crítico é aquele que encontra sua vida no interior dos textos que lê”. Falando de seu métier de escritor de ficção, mas que pode ser traduzido para quem realiza a crítica acadêmica, afirma: “Nesse sentido, foi decisiva para mim a surpreendente anotação de Faulkner em seu prólogo inédito a O som e a fúria. ‘Escrevi este livro e aprendi a ler’. Escrever ficção muda o modo de ler, e a crítica que um escritor escreve é o espelho de sua obra” (Piglia, 2004, p. 117).

Escrever acerca de Vinícius de Moraes, Benedito, Octavio Ianni, Florestan Fernandes e Pierre Bourdieu, situando-os em seus respectivos campos de produção simbólica, além de me ensinar a ler, possibilitou-me (re)escrever minha vida, permitindo reposicionar-me enquanto intelectual que analisa seus pares e é analisado em razão da posição que ocupa no campo onde estou inserido.

Posso invocar aqui a metáfora utilizada por Heinrich Böll a respeito da infância-juventude passadas em Colônia, na Alemanha hitlerista. Embora reconheça que a escola “não tenha sido de modo algum uma coisa secundária”, também “não foi a coisa mais importante”. Determinadas aprendizagens – como a da vida – também ocorrem no caminho de ida e volta para a escola (até mais que a própria escola) (Böll, 1985, p. 18-19).

“No berço é que o destino toma conta dos homens”, a epígrafe do célebre romance de Georges Arnaud (1917-1987), O salário do medo (Le salaire de la peur, 1950),[2] que tornei interrogativa é, ao mesmo tempo, uma afirmação e uma contestação. Isso porque as trajetórias dos agentes são sensivelmente limitadas pela natureza do berço, isto é, de sua primeira matriz de significações.

Entretanto, é possível verificar modalidades de superação desses condicionamentos, fazendo com que as trajetórias analisadas constituam-se em “situações diferenciadas” – casos de Octavio Ianni, Florestan Fernandes e Pierre Bourdieu – que, em seus destinos, derrotam os respectivos berços, fundamentalmente através da chancela consagradora obtida junto ao sistema de ensino.

Por outro lado, Benedito e Vinícius, embora dotados de distintos pesos intelectuais, valem-se do manejo de seus respectivos capitais sociais (relativamente rarefeito para Benedito e mais robusto para Vinícius) para atingir destino modesto, em um caso, e consagrado, em outro. Para ambos, apesar de trajetórias antípodas, o sistema de ensino exerceu pouca influência em seus destinos, fornecendo a certificação mínima – título de bacharel em direito – para que pudessem engrenar suas atividades.

Ao fazer uma “escavação dos alicerces” da motivação e dos fundamentos dos pensadores analisados, entendo que foram pessoas “como eu”, que durante toda a vida enfrentaram problemas cotidianos em seus métiers. Pierre Bourdieu escreve, a propósito: “Nunca pensei que cometesse um ato de arrogância sacrílega quando dizia que Flaubert ou Manet era alguém como eu, sem chegar a me confundir com nenhum deles…” (Pierre Bourdieu, 2004, p. 78-79 e 141-142). Além disso, exergo uma espécie de Bildungsroman intelectual na história dos textos aqui apresentados, permitindo mais uma vez que retome a ideia da autobiografia através da crítica e da aprendizagem da leitura quando se escreve.

Há um belo livro sobre o cineasta Michelangelo Antonioni (1912-2007) que estampa foto de O deserto vermelho (Il deserto rosso, 1964), em que Corrado e Giuliana detêm uma folha de jornal trazida pelo vento e a examinam. Escrevem os organizadores: “O significado desta sequência é que o espectador pode criar seu próprio significado, da mesma maneira que os personagens vão criar o seu. Nisso consiste a contribuição de Antonioni ao cinema (…) em encontrar imagens em que cada espectador pode encontrar seu próprio significado” (Chatman e Duncan, 2004, p. 4).

Os ensaios que escrevi, possibilitando a síntese que apresento, não surgiram como folhas ou papéis ao vento, capturados no voo. A razão principal que me levou a escrever a maioria deles foi quase circunstancial: foram encomendados para jornada dedicada à análise da obra de um autor (Octavio Ianni), homenagem póstuma (Florestan Fernandes), dossiê acerca de necrológio (Pierre Bourdieu) e história do cinema brasileiro (B. J. Duarte). Apenas o dedicado a Vinícius de Moraes foi proposto por mim há mais de quarenta anos.

Ora, se me encomendaram os textos, entenderam que eu estava preparado para produzi-los; todos eles se incorporaram ao meu regime de leituras, atuando como estruturantes em meu aprendizado de pesquisador, professor e ensaísta. Em texto de Sérgio Miceli sobre Antonio Gramsci pode-se ler passagem de Concepção dialética da história em que o pensador, ironicamente, escreve o seguinte: “Este tinteiro está dentro de mim ou fora de mim ? “ (Miceli, 1981, p. 5).

Ao examinar as “arquiteturas de formação” dos cinco intelectuais, estudando suas obras, trajetórias, histórias peculiares e tomadas de posição políticas, situando-os em seus respectivos campos sociais, creio que chamo a atenção para elementos que não são usuais nos escritos da maioria daqueles que trabalham tais autores.

2.

Benedito Junqueira Duarte (B. J. Duarte), o penúltimo dos sete filhos de sua família, foi preparado para ser fotógrafo. Aos 11 anos, concluído o primário, viajou à Paris, em 1921, para ficar com um tio que era fotógrafo, o português José Ferreira Guimarães. Isso ocorreu devido à precária situação financeira em que viviam. Com ele foi também sua irmã Maria Aparecida. Benedito Junqueira Duarte retornou em 1929, com 18 anos.

Seu irmão Paulo Duarte, escreveu: “Nossa vida (…) estava cada vez mais cheia de percalços financeiros. O tratamento de Lurdes [irmã] era caro, os meninos estavam na Escola Modelo, tendo o Benedito deixado o externato Elvira Brandão, devido exatamente às nossas dificuldades, mas a Escola Modelo era muito boa e os dois estavam juntos, de modo que Nélio [irmão] tinha companhia de que necessitava, dada a sua condição de surdo…” (Duarte, 1979, p. 221-222).

Benedito Junqueira Duarte, com a morte do tio, tornou-se aprendiz no estúdio fotográfico “Chez Reutlinger”. Meses depois, tinha um bom salário para a época (200 francos mensais), sendo logo promovido à assistente. Chefiava uma equipe de cinco pessoas recebendo, no final dos anos 1920, 2.000 francos por mês (Duarte, 1982, p. 49). Décadas depois escreveu: “Volto ao passado, à época em que um menino tímido aprendia fotografia em grande estúdio parisiense. Lá está ele, numa mansarde, sete horas da manhã de inverno, tremendo de frio, lavando o chão encardido do laboratório, preparando soluções de revelador, de fixadores, de virages, limpando as mesas dos retocadores…” (Duarte, 1982, p. 145).

Voltou ao Brasil em 1929. Nos sete anos passados na França viajou, aprendeu bem o seu ofício e tinha amplo domínio da língua francesa. “Se voltei portador de um ofício bem aprendido e assimilado, se de um lado conhecia sobre a língua e a literatura francesas (…), por outro me tornara um perfeito ignorante em termos de cultura geral. Meu tio era avesso ao aperfeiçoamento espiritual, além de ler, escrever e contar…” (Duarte, 1982, p. 26).

Com 18 anos fez, no Ginásio Oswaldo Cruz, o curso de admissão ao antigo ginásio. Matriculou-se no período noturno, trabalhando como fotógrafo no Diário Nacional, órgão do Partido Democrático, em oposição ao Partido Republicano Paulista, do qual seu irmão Paulo Duarte era redator-chefe, lá permanecendo de 1929 a 1933 (Idem, p. 27). Tinha fonte de renda complementar: “tirava retratos de gente importante na sociedade paulistana, meio em que penetrei pela promoção que de mim fazia o grupo ligado ao Paulo (…), assíduos na redação do Jornal” (p. 27) – casos de Sérgio Milliet (que se casou com sua irmã Lurdes), Mário de Andrade, Antonio Couto de barros, Tácito de Almeida (irmão do poeta Guilherme de Almeida), Rubem Borba de Moraes, Antoninho de Alcântara Machado, Herbert Levy.

O trabalho de Benedito Junqueira Duarte, fotografando a elite paulistana, assemelha-se ao de costura realizado pelas mães dos “filhos pobres” da oligarquia que, mesmo executando uma atividade modesta, mantêm e atualizam seus vínculos com os “primos ricos”, tirando proveito de um dos poucos trunfos que ainda lhes restaram (Miceli, 1996, 2001).

A partir de 1936, Benedito Junqueira Duarte vai trabalhar com Ruy Bloem na Secretaria da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da recém-criada Universidade de São Paulo (USP), exercendo com os professores estrangeiros a função de “relações públicas”, atuando como intérprete, ajudando-os na instalação inicial (Duarte, 1982, p.107-108).

Benedito Junqueira Duarte ingressou na Prefeitura de São Paulo em 1935, no Serviço de Iconografia do Departamento de Cultura, aposentando-se em 1964. Nesse mesmo ano, começou a trabalhar na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), chegando a Chefe da Seção de Fotografia e Microfilmagem, além de assessor de documentação científica do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas, da Faculdade de Medicina-USP.

Um trecho da carta enviada por Sérgio Milliet, seu cunhado, a Paulo Duarte (exilado em Paris), em 27/6/1933, dá conta da vontade que o jovem Benedito Junqueira Duarte tinha de cursar medicina. Razões de ordem material frustraram tal projeto, pois Sérgio Milliet escreveu que “é preciso pensar que as nossas condições de família são péssimas (…) Medicina é ótimo, mas exige uma fortuna para os estudos. Talvez então fosse melhor ele cursar (…) direito” (Duarte, 1975, p. 163). Assim, ingressou em direito em 1933.

Enquanto trabalhava na prefeitura, também era crítico de cinema e fazia filmes científicos. A Carlo Erba do Brasil pagava bem, 15 mil cruzeiros por película. Apenas como base de comparação, Benedito tinha um salário na prefeitura de 3 mil cruzeiros e recebia 1 conto de réis para fazer filmes para o Laboratório Torres S.A. Elaborou, também, capas de livros para as editoras Sarvier e Anhembi.

Benedito Junqueira Duarte recebeu dezenas de prêmios, nacionais e internacionais, como diretor de filmes científicos, principalmente em cinema aplicado à medicina e à cirurgia. Foi ele quem filmou, na madrugada de 26 de maio de 1968, o primeiro transplante de coração no Brasil, realizado pela equipe do professor Euryclides de Jesus Zerbini (1912-1993), no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Quando atuava como crítico de cinema em O Estado de S. Paulo (1946-1956) e nas Folhas (1956-1965), era uma espécie de autônomo fixo. Na época, o salário do crítico (teatro, cinema, artes em geral) era um dos mais baixos do jornalismo. Não é demais salientar que, em termos estéticos, Benedito sempre valorizou o filme “bem acabado”, com os conflitos sendo resolvidos tecnicamente; sua atuação pautou-se por uma luta feroz contra a esquerda cinematográfica, incapaz de conferir ao cinema brasileiro o tão almejado “padrão universal”. Como se pode observar, apesar de crítico e realizador, Benedito exerceu funções modestas em burocracias públicas e privadas.

3.

Marcus Vinicius de Moraes da Cruz de Mello Moraes teve uma primeira infância mais sólida em termos econômicos, sendo seu pai funcionário público e ex-secretário do prefeito Pereira Passos, no Rio de Janeiro. Investimentos desastrados o levaram à ruína financeira, sendo a família obrigada a mudar-se para a Ilha do Governador. A partir de 1922 Vinicius de Moraes ficou no Rio com os avós, continuando seus estudos. Foi para o Colégio santo Inácio dos jesuítas, estabelecimento de elite, convivendo com amigos que lhe acompanharam por quase toda a vida.

Em 1933 tornou-se bacharel em direito, trabalhou apenas um mês na área, mas ampliou seu capital de relações sociais, através do contato com parte dos filhos diletos da elite do então Distrito Federal. Teve juventude calma, permitindo-lhe publicar, aos 20 anos, seu primeiro livro de versos, O caminho para a distância (1933), seguido de Forma e exegese (1935), Ariana, a mulher (1936) e Novos poemas (1938).

Aos 25 anos já tinha quase uma obra. Na correspondência de Vinicius de Moraes reunida por Ruy Castro (Moraes, 2003) é possível ler as cartas trocadas com a família, em que comenta os longos períodos de férias escolares, a elaboração de suas poesias, os namoros, a convivência com amigos e os banhos de piscina. Com 23 anos tornou-se funcionário do Estado (censor), graças aos contatos familiares, trabalhando dois anos na função. Obtém bolsa do British Council, permanecendo um ano em Oxford, onde se casa e volta ao Brasil.

Casa-se outras vezes, tem filhos, se separa; trabalha em jornais, escreve em várias revistas, torna-se crítico cinematográfico em A Manhã, em 1941. Através de seus estudos e do título de bacharel em direito vincula-se aos aparelhos de Estado na qualidade de diplomata (1943), até ser aposentado compulsoriamente pelo regime militar em fins dos anos 1960.

Em 1941 vamos encontrar um Vinicius de Moraes ainda “de direita”, com formação católica arraigada e, esteticamente, comungando as ideias cinematofráficas defendidas há mais de uma década por seus amigos do Chaplin Club. As origens familiares, a formação em direito, sua produção poética, a “conversão” à letrista de canções e sua carreira midiática, intensificada a partir dos anos 1960, lhe possibilitou enfrentar várias transições ao longo da vida, nem sempre tranquilas.

“Poeta e diplomata”, “o branco mais negro do Brasil”, como se intitulava, após sua expulsão da carreira diplomática pela ditadura militar, continuou compondo centenas de canções, fazendo shows, gravando discos e tornando-se sinônimo de bon vivant, cercado de mulheres e de boas bebidas. Bem, isso ocorreu, mas, se por um lado, ele se divertiu e curtiu a vida, por outro as dívidas com pagamentos de pensões, auxílio para os filhos e com a própria sobrevivência também ocuparam várias páginas do já citado Querido poeta (Moraes, 2003).

4.

Octavio Ianni: não é simples falar dele. Sem sombra de dúvida, ele foi, talvez, o intelectual que mais blindou suas origens sociais, que menos “abriu” algum detalhe acerca de sua vida antes de ingressar na FFCL-USP. Sabe-se apenas que trabalhou em frigoríficos e que foi tipógrafo. Seu irmão Constantino era jornalista. Florestan Fernandes mencionou que Octavio Ianni provinha de família de origem italiana de Itu, distante 100 quilômetros de São Paulo, e que, “como eu, levava para a Faculdade contas a saldar com aquele mundo estranho” (Fernandes, 1996, p. 12).

“Modesto”, “retraído” e “distraído” são os juízos de Florestan Fernandes sobre Octavio Ianni, que era “um tanto desajeitado ou esquerdo no reino de palavras, de equívocos e de pessoas que ostentavam, com ou sem razão, certa superioridade intelectual e social (…) Os alunos dos anos 50 (…) moviam-se por simpatias e afinidades culturais e, em menor escala, protopolíticas. O elo nucleador gravitava em torno dos estudos e das ‘grandes esperanças’ (que se definiam como precoces ambições de competir, de reconhecimento de valor intelectual e de ‘fazer carreira’ na própria faculdade)” (Idem, p. 12).

Segundo ele, Octavio Ianni ainda preservou, durante tempos, as “arestas do ‘estranho no ninho’’, “desconfiado”. “Sua avaliação das pessoas e das coisas era mais inflexível e ele precisava ser conquistado pelos amigos e colegas. trazia consigo, também, uma alegria de viver e uma curiosidade insaciável, que ia dos livros e dos acontecimentos às pessoas. Algumas amarguras marcaram suas preocupações e vincavam ainda mais a implantação enraizada no cosmo moral original. Havia até incisiva rigidez em resistências que deveriam atenuar-se ou desaparecer, em questões ligadas ao cotidiano ou a autodefesas sintomáticas. Sua generosidade espontânea, vinda da simpatia congênita, se encarregava de vencer em poucos anos a quase totalidade dessas barreiras que o impedia de declarar “São Paulo, aqui vou eu” (Idem, p. 12-13).

A exemplo de Florestan Fernandes, para Octavio Ianni a instituição universitária foi quase tudo: escreveu dezenas de livros, centenas de artigos, pesquisou, fez conferências, ministrou cursos em instituições de vários países, sendo referência fundamental na sociologia e nas ciências sociais latinoamericana.

5.

Florestan Fernandes, se comparado a Octavio Ianni, foi um grande falador. Menos “introvertido” que Octavio – lembrando a terminologia de Lévi-Strauss (Tristes trópicos, 1996, p. 52-53) –, também foi um lutador. Os dois sociólogos paulistas se beneficiaram das oportunidades decorrentes da criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP que, nos anos seguintes, absorveu setores médios em ascensão, pertencentes a famílias de imigrantes e um percentual significativo de mulheres (Miceli, 1989, p. 15).

No livro coordenado por Paulo Martinez (1989), Florestan, ou o sentido das coisas, abaixo de uma foto do álbum organizado por Vladimir Sachetta, pode-se ler a seguinte afirmação de Florestan Fernandes: “Acho que a coisa mais difícil que fiz foi permanecer fiel à minha classe de origem”. E, logo em seguida: “Eu nunca teria sido o sociólogo em que me converti sem o meu passado e sem a socialização pré e extraescolar que recebi, através das duras lições da vida (…). Iniciei minha aprendizagem ‘sociológica’ aos seis anos, quando precisei ganhar a vida como se fosse um adulto, e penetrei, pelas vias da experiência concreta, no conhecimento do que é a convivência humana e a sociedade (…). A criança estava perdida nesse mundo hostil e tinha de voltar-se para dentro de si mesma para procurar, nas ‘técnicas do corpo’ e nos ‘ardis dos fracos’, os meios de autodefesa para a sobrevivência. Eu não estava sozinho. Havia a minha mãe, porém a soma de duas fraquezas não compõem uma força. Éramos varridos pela ‘tempestade da vida’ e o que nos salvou foi o nosso orgulho selvagem”.

Florestan Fernandes lutou obstinadamente para poder estudar, inclusive contra a própria mãe que, diante das dificuldades materiais que passavam, queria que ele apenas trabalhasse. Ela foi doméstica e lavadeira e ele, aos seis anos, fazia pequenas tarefas (auxiliar de barbearia, carregador de compras, engraxate), recebendo preciosas gorjetas. Interrompeu os estudos aos nove anos, trabalhando em açougue, mercearia, alfaiataria, padaria, bar e restaurante. Aos 14 anos tornou-se arrimo de família e, posteriormente, fez Curso de madureza, o Tiro de Guerra, estudou datilografia, foi propagandista de produtos farmacêuticos.

Florestan Fernandes, como Octavio Ianni e Pierre Bourdieu, trabalhou incessantemente. Os três permaneceram fiéis às suas classes de origem: Octavio Ianni deu aulas até as vésperas de sua morte; Pierre Bourdieu, internado, escrevia; Florestan,antes de se submeter ao transplante de fígado que o matou, deixou artigos prontos para a Folha de S. Paulo. Mas o que significa permanecer fiel às suas classes de origem? A resposta, creio, pode ser buscada nos respectivos itinerários de pesquisa, uma vez que os três sempre procuraram investigar as causas das grandes exclusões presentes nas sociedades capitalistas contemporâneas, os excluídos, os marginalizados e o proletariado. Além de scholars exemplares, praticaram uma ciência social engajada e militante.

A ação do Estado burguês, em seus distintos matizes e diferentes registros, foi objeto de preocupação de Florestan Fernandes. Isso o levou a muitas frustrações – por exemplo, nos debates envolvendo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nos anos 1980 e 1990, diante da impossibilidade de se consolidar no país uma educação que beneficiasse efetivamente os setores populares.

Crítico com relação ao papel dos intelectuais no jogo político – e aproveitando-se para situar o alcance da ação dos intelectuais –, escreveu: “Tornei-o [Octavio Ianni], com Fernando Henrique Cardoso e outros, vítimas de frustrações que me fizeram pensar em uma ‘geração perdida’. Antigos alunos e colaboradores ergueram-se, através de nosso trabalho conjunto, a alturas de que despenquei penosamente. Não somos culpados em qualquer sentido! Mas ajudamos a forjar os monstros e as ruínas contra os quais desgastamos o melhor de nós mesmos, para darmos ‘a volta por cima’ e redefinir o significado de nossa persistência e do espaço de futuro que ainda usamos como um aríete nos combates da história, que se convertem em civilizações. Poderíamos afirmar, estamos aqui! Não fomos derrotados! Porém, também não vencemos a hidra de sete cabeças…Tampouco conseguimos realizar os fins de uma atividade crítica e produtiva de um ambicioso projeto de investigação, que se irradiava de São Paulo para o Brasil e a América Latina como um marco de autonomia científica. As sementes ficaram e medraram, porque o pensamento é indestrutível e contamos com continuadores. Contudo, perdeu-se a resposta ao desafio que subsiste de ultrapassar os parâmetros do eurocentrismo e do arrasador ianquismo” (Fernandes, 1996, p.11-12).

Florestan Fernandes, um dos sociólogos latino-americanos que mais voltou as armas da reflexão contra si próprio e contra a sociologia praticada no país, ao se referir às reformas políticas e econômicas conduzidas pelas elites brasileiras, talvez subscrevesse o juízo que Borges realizou do clássico romance de Dino Buzzati, O deserto dos tártaros. “O livro está regido pelo método da postergação indefinida e quase infinita” (Borges, 1998, p. 23).

6.

Pierre Bourdieu era filho de um carteiro e funcionário dos correios, procedente de uma família de parceiros rurais. Sua mãe pertencia à família camponesa prestigiosa, cujo pai foi dono de serraria e transportadora de madeira. Ao se casar, “baixou” na escala social e econômica, enfrentando grandes dificuldades financeiras. Aluno brilhante, porém sempre considerado “problemático” e “indisciplinado”, a partir dos 11 anos foi interno no liceu da capital de sua província e no liceu Louis le Grand (Paris); posteriormente, cursou a École Normale Supérieure (ENS).

Pierre Bourdieu fez seu serviço militar na Argélia, de 1955 a 1958 e, em seguida, lecionou na Faculdade de Letras de Argel e retornou à França no início dos anos 60, iniciando fecunda trajetória intelectual. A exemplo de muitos alunos da École Normale Supérieure, beneficiou-se do sistema público de ensino francês, consolidado efetivamente ao longo da III República. Seu berço era menos precário que o de Florestan Fernandes, embora para chegar à instituição universitária experimentou, dolorosamente, o “desenraizamento de um universo familiar” e a “familiarização com um universo estrangeiro” (Miceli, 1999).

Aspectos relativos aos pressupostos teóricos que Pierre Bourdieu desenvolveu ao longo de suas pesquisas devem ser mencionados brevemente. Sérgio Miceli (2002), por ocasião de sua morte, mostra como sua contribuição se constituiu em uma “revolução simbólica”.

Em 1974, Pierre Bourdieu e equipe preparavam o primeiro número da revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales, que apareceria em 1975: “A essa altura da vida, com 43 anos, aquela fisionomia mediterrânea de toureiro acadêmico, rápido na reflexão e na escrita, insuperável no tirocínio metodológico, na equação analítica, dotado de uma capacidade fenomenal de trabalho, proporcional à escala de suas ambições, já tinha logrado reunir todas as condições financeiras, institucionais e intelectuais que lhe permitiriam empreender uma verdadeira simbólica no plano da teoria social…”

Tudo isso ocorria a partir de sua coordenação do Centro de Sociologia Europeia (CSE), após uma excelente etnografia sobre os cabilas na Argélia e um começo de carreira universitária apoiado por Raymond Aron. No CSE promoveu um “generoso espectro de interesses e de objetos de investigação”, abarcando “classe operária, setores médios, elites, acadêmicos, políticos, empresários, alta burocracia governamental e privada, nobreza, Estado, indústria cultural, sistemas de ensino, atividades culturais e artísticas”.

Posteriormente, Pierre Bourdieu galgou os mais altos postos da hierarquia acadêmica francesa, chegando ao Collège de France, cátedra de sociologia. Sua ação militante destaca-se a partir das tomadas de posição em favor do movimento social dos desempregados, em 1995; da fundação da editora Raisons d’agir; do apoio ao movimento dos sem-documentos.

Publicou livros a preços reduzidos através dessa editora, dele – Sobre a televisão (1996), Contrafogos (1988), Contrafogos 2; por um movimento social europeu (2001), além de outros textos reunidos postumamente – e de jovens colaboradores. Nessa última etapa da vida atraiu a ira do sistema dominante na França, tendo inclusive uma campanha orquestrada contra ele na mídia. A morte colheu Pierre Bourdieu em plena atividade e Esboço de auto-análise foi concluído pouco antes de seu falecimento, quando o câncer já o consumia.

7.

A análise das trajetórias de Vinícius, Benedito, Octavio Ianni, Florestan Fernandes e Pierre Bourdieu possibilitaram o contato e a ordenação de um conjunto de variáveis e de informações que permitiram, de início, verificar como o berço condicionou o destino dos intelectuais aqui analisados. Todos fizeram curso universitário, sendo Vinícius e Benedito formados em direito, enquanto os demais estudaram humanidades e experimentaram exitosa trajetória acadêmica.

Os “advogados” tentaram logo uma carreira em que a prática dava o tom. Os “sociólogos” Florestan e Octavio Ianni, no Brasil, e Pierre Bourdieu, na França, devem quase tudo de suas vidas à consagração obtida junto ao sistema de ensino, pois seus berços foram humildes. Explorei situações em que tal diversidade foi transposta e os agentes se tornaram referência obrigatória em seus respectivos domínios de atuação, sendo protagonista nesse processo a ação desempenhada pelas respectivas escolaridades.

Examinei, também, situações em que o papel do sistema de ensino foi coadjuvante no destino dos agentes – aqueles com berços mais solidificados –, embora estes, da mesma forma, tenham se convertido em figuras de realce em seu trabalho simbólico. Estudos dessa natureza, acredito, possam contribuir para o conhecimento aprofundado de distintos campos de produção social e dos respectivos trabalhos dos agentes nele envolvidos.

*Afrânio Catani é professor titular aposentado da Faculdade de Educação da USP e, atualmente, professor sênior na mesma instituição. Professor visitante na Faculdade de Educação da UERJ (campus de Duque de Caxias).

Publicado originalmente em Origem e destino: pensando a sociologia reflexiva de Pierre Bourdieu. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2013, p. 79-98.

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Notas

[1]. Em Esquisse pour une auto-analyse (Esboço de auto-análise) Pierre Bourdieu escreveu: “Nesse esforço para explicar-me e compreender-me, poderei doravante apoiar-me nos cacos de objetivação de mim mesmo que fui deixando pelo caminho, ao longo de minha pesquisa, e tentarei aqui aprofundar e ainda sistematizar” (Pierre Bourdieu, 2004, p. 14).

[2] O romance originou filme com o mesmo título de Henri-Georges Clouzot (1952). Na tradução brasileira pode-se ler resumo conciso do livro: “Num pobre país da América Central, quatro amigos dispõem-se a uma aventura incrível: transportar imensa carga de explosivos – destinados a extinguir um incêndio num poço de petróleo – por uma estrada de difícil acesso”. Um dos principais argumentos de Arnaud é que os motoristas só aceitam fazer o arriscado transporte porque serão bem pagos e porque não tem outra alternativa de trabalho, pois nasceram em berços que não lhes garantiram melhores destinos.

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