Imortalidade, nova extravagância capitalista

Num mundo de que querem desertar, bilionários como Bezos já não buscam só dinheiro. Desejam suas fixações juvenis. Colonizar o espaço. E a mais nova: superar a morte, por meio de resets celulares que os farão os faraós contemporâneos

Por Marco D’Eramo, no Diario Red/Outras Palavras
Tradução: Rôney Rodrigues

Certamente você já reparou que quando nos aproximamos de uma pessoa muito rica, que tem dinheiro de verdade, e não apenas algumas dezenas de milhões de euros, todos nós entramos imediatamente num estado de espanto, o que nos leva a comportar-nos irreprimivelmente de forma reverencial. Nas raríssimas ocasiões em que isso me aconteceu, tive que me impor uma disciplina férrea, e com dificuldade, para não me submeter a esse sentimento tão abjeto em sua ignomínia, quase dostoiévskiano, em consonância com o que é narrado em Memórias do Subsolo, que vai muito além da subordinação. Um estado de espírito que expressa literalmente a nossa sujeição ao dinheiro. É quase inevitável que aqueles que estão incessantemente rodeados de tal reverência alimentem uma nova percepção de si mesmos, cada vez mais desproporcional e imponente. Isto nos oferece uma primeira intuição para começar a entender por que os antigos governantes, faraós ou imperadores se consideravam deuses, ou pelo menos divinos, ou eram percebidos como tal.

Portanto, não podemos criticar com demasiada crueldade a megalomania dos super-ricos da nossa era, os Mark Zuckerberg, os Elon Musk, os Jeff Bezos: no caso improvável de estarmos no lugar deles, provavelmente veríamos um crescimento igualmente imenso do nosso ego e perderíamos qualquer senso de proporção. Muitas pessoas aumentam seus egos por muito menos. Por outro lado, coloquemo-nos no lugar de Bezos, que em trinta anos passou de dono de um armazém de livros numa garagem em Seattle a proprietário de uma empresa que cobre a maior parte do globo e emprega 1,5 milhões de pessoas (em comparação, a Igreja Católica emprega 1,16 milhões de pessoas em todo o mundo: 407 mil padres e 609 mil freiras). É compreensível que ele se considere o fundador de uma religião, que tenha uma visão “messiânica” de si mesmo, como pode ser verificado na leitura de Invent and Wander: The Collected Writings of Jeff Bezos (2021), livro publicado pela prestigiada Harvard University Press, que inclui uma compilação de suas cartas aos acionistas e outras intervenções públicas. Por outro lado, no seu prefácio, Walter Isaacson (já famoso pelo seu livro sobre Steve Jobs) não teme o ridículo quando retrata Jeff Bezos como uma figura do renascimento moderno, tão revolucionário como Leonardo, Einstein ou Ben Franklin (todos eles personagens dignos de crédito de biografias escritas pelo próprio Isaacson).

Ao mesmo tempo, sempre me surpreendeu que a expressão “o poder corrompe” (implícito: o caráter de seu possuidor) tenha se tornado uma expressão repetida a exaustão, embora nunca tenha ouvido ninguém dizer que “o dinheiro corrompe” (a psique do seu dono) e isto não por causa do seu preconceito tautológico, mas porque o poder do dinheiro é erroneamente considerado mais transparente, mais “neutro” do que o poder político ou militar. O dinheiro, acredita a sabedoria popular, corrompe aqueles que não o possuem, não aqueles que o possuem. Mas a carreira tão estadunidense de Bezos atesta precisamente a corrupção progressiva a que estão sujeitos aqueles que acumulam uma imensa, quase inconcebível, massa de dinheiro.

1.

O pai biológico de Bezos era Ted Jorgensen, jogador de hóquei em monociclo (seja lá o que isso signifique) e fundador do primeiro clube desse esporte. Jorgensen se casou com Jacklyn, de 16 anos, quando ambos estavam no ensino médio em Albuquerque, Novo México. Jeff nasceu no ano seguinte (1964). Seus pais se divorciaram quando ele tinha 14 meses, devido aos problemas com a bebida de Ted. Jeff ficou aos cuidados da mãe, que foi trabalhar e frequentou a escola noturna, onde conheceu um refugiado cubano, Miguel “Mike” Bezos, cuja família havia fugido do regime de Castro. Em 1968, Miguel Bezos formou-se em ciência da computação e foi contratado pela Exxon no Texas, empresa na qual trabalharia como engenheiro até se aposentar. Casou-se com Jacklyn e, com a concordância de seu pai biológico, adotou a Jeff, que carrega seu sobrenome desde então.

Jeff era um aluno estudioso e apaixonado por ficção científica. Em Princeton formou-se em engenharia e ciência da computação. Entre 1988 e 1994, trabalhou no setor financeiro (a World Wide Web foi introduzida em 1991 e a sua utilização generalizou-se em 1993-1994). No fundo de investimentos do qual se tornara vice-presidente, conheceu MacKenzie Scott, também formada em Princeton (mas em literatura, com Toni Morrison como professora) e casou-se com ela em 1993; o casal teve quatro filhos, um deles adotado. Juntos, eles se mudaram para Seattle em 1994 e fundaram uma livraria online, a Amazon, com a ajuda dos pais de Bezos, que investiram US$ 240 mil (equivalente a US$ 600 mil hoje) no empreendimento de seu filho. Em 1997, a Amazon foi aberta a acionistas externos. Em 1998, ele começou a diversificar o seu negócio, vendendo também vídeos e músicas. Desde então, a diversificação estendeu-se a todos os tipos de consumo e, assim, em 2024, a Amazon tinha uma cota de 40,4% do comércio eletrónico dos EUA, enquanto os seus vários armazéns nacionais albergavam 600 milhões de produtos diferentes. Em 2005, foi lançado o serviço Amazon Prime, que chegou à Itália em 2011 e à Espanha em 2016, e em 2021 contava com mais de 200 milhões de assinantes em todo o mundo. Em 2007, a Amazon lançou o Kindle. Depois disso, a Amazon desembarcou no setor imobiliário, de serviços financeiros e de saúde: em 2018 fez parceria com o gigante bancário nova-iorquino JP Morgan e com o enorme fundo de investimento de Warren Buffett (um dos homens mais ricos do mundo), Berkshire Hathaway, para criar uma empresa que ajudaria os funcionários estadunidenses a obter cuidados de saúde de qualidade “a um preço razoável”, a fim de “acabar com a tênia voraz que está matando de fome a economia estadunidense”.

Em 2002, Bezos criou a Amazon Web Services (AWS), que fornece aos seus usuários não apenas os serviços de sua nuvem digital, mas também potência de cálculo e vários algoritmos: a AWS fornece serviços digitais ao The Guardian (cujos artigos denunciando a Amazon são processados através de sua plataforma), para gigantes da web como Netfix e Twitter, e para gigantes industriais como General Electric e Unilever. Atualmente, a AWS contribui com um sétimo da receita da Amazon (US$ 80 bilhões de US$ 570 bilhões), mas com mais da metade de seus lucros (US$ 20 bilhões de US$ 38 bilhões). Em 2013, a AWS ganhou um contrato com a CIA e, mais tarde, com outras agências de espionagem dos EUA, bem como com o Pentágono. Não foi em vão que o general reformado Keith Alexander, que durante nove anos foi diretor da Agência de Segurança Nacional, o maior centro de recompilação de dados dos serviços de inteligência dos EUA, juntou-se ao conselho de administração da Amazon em 2021. A Amazon também fornece os seus serviços de nuvem digital aos serviços de inteligência britânicos e, juntamente com o Google, participa desde 2021 no Projeto Nimbus, patrocinado pelo governo israelense para abastecer suas forças armadas e suas agências de espionagem. Em 4 de julho, o governo australiano concedeu à AWS um contrato de US$ 1,3 bilhão para fornecer serviços de nuvem digital na área de Defesa, o que conectaria o país com os outros quatro sócios (Estados Unidos, Reino Unido, Canadá e Nova Zelândia) num pacto secreto de intercâmbio de informação denonimado “Five Eyes”, formalizado sob o nome de Echelon.

Em suma, como Franklin Foer escreveu espirituosamente no The Atlantic: “Se os revolucionários marxistas algum dia tomassem o poder nos Estados Unidos, poderiam nacionalizar a Amazon e dar por encerradas suas preocupações e reivindicações”.

2.

Para ser justo, deve ser dito que Bezos é o único dos grandes capitalistas que reconhece continuamente o papel que a sorte desempenhou no seu sucesso econômico: “Ganhei esta lotaria. É uma loteria gigante e se chama Amazon.com […]. Eu não esperava que o que aconteceu a seguir acontecesse. Houve um alinhamento incrível não só de planetas, mas também de algumas galáxias”. Na verdade, Bezos tinha uma “intuição extraordinária” e isso começou com os livros. Curiosamente, ninguém perguntou por que o maior varejista da história da humanidade, o dono da armazém do universo, começou com uma livraria online. Nos dois anos anteriores à fundação da Amazon, outras empresas de comércio eletrônico foram lançadas. Na verdade, os especialistas do setor estavam convencidos de que as vendas de livros online seriam sempre deficientes devido aos custos de distribuição muito elevados: muitos dos investidores convidados por Bezos para participar na nova empresa recusaram-se a investir nela. Depois engoliram a língua: 1.000 dólares investidos em ações da Amazon em 1997 valeriam hoje 2.493 milhões de dólares.

Lembro que na década de 1990, quando voltei dos Estados Unidos, levava comigo malas pesadas e cheias de livros, porque comprar livros estrangeiros na Itália era muito caro, pois as livrarias aplicavam o chamado câmbio “livresco”, então, por exemplo, se em 1995 o dólar valia 1.500 liras, os livreiros o cotavam em 2.200 liras e, portanto, um livro de 20 dólares custava não 30.000, mas 44.000 liras. E como os livros ficavam muito pouco tempo nas prateleiras das livrarias, era preciso ir até os sebos para procurar os títulos que queria. Para leitores de todo o planeta, a Amazon abriu em um curto espaço de tempo a maior livraria já concebida no mundo.

A verdade é que, sem saber, Bezos estava refazendo a história do capitalismo. Hoje a edição de livros parece ser, e na realidade é, um setor absolutamente marginal da economia mundial, tanto em termos de volume de negócios como de influência política. Existem milhares de produtos que “pesam” mais que o livro, mas nem sempre foi assim. Conforme relatado por dois grandes historiadores da Escola dos Annales, Lucien Febvre e Henri-Jean Martin [1], a publicação de livros foi uma das primeiras formas de empresa capitalista: exigiu grandes investimentos de capital, mão de obra altamente qualificada, fornecimento seguro de papel e tinta e uma rede comercial articulada. O livro foi a primeira mercadoria produzida industrialmente através de um processo mecânico iterativo, bem como a primeira mercadoria padronizada: entre a Bíblia de Gutenberg publicada em 1455 e 1500, foram impressos pelo menos 20 milhões de volumes, enquanto em 1600 esse número era de cerca de 200 milhões: “A introdução da imprensa escrita foi, deste ponto de vista, um passo no caminho para a nossa civilização de massa padronizada” [2]. Mercadoria padronizada, idêntica a si mesma, não perecível, compacta e vendida para uma clientela transnacional. As primeiras gráficas abriram filiais por toda a Europa, criando um mercado continental, que ignorava as fronteiras nacionais, mas que criou mercados nacionais para se expandir: os leitores de latim eram relativamente poucos em comparação com o mercado potencial para leitores nas diversas línguas nacionais da Europa. Tanto é verdade que Benedict Anderson fala em “capitalismo impresso” [print capitalism] [3], considerando-o um dos principais fatores que contribuíram para o nascimento da ideia de nação.

As mesmas considerações se aplicam ao comércio eletrônico. De um certo ponto de vista, o comércio eletrônico vende abstrações. Quando clicamos em “comprar agora”, estamos comprando a ideia do produto com a certeza de que o que chegará à nossa porta corresponderá à ideia que compramos. Mas, como inúmeros compradores sabem, muitas vezes o sapato, a calça ou mesmo a câmera que chega à nossa porta não é o sapato, a calça ou mesmo a câmera em que clicamos. Na Itália, 25% das roupas compradas online são devolvidas e o montante global das devoluções ascende a 550 mil milhões de dólares. Pelo contrário, os livros são o bem mais óbvio para comprar online, aquele em que a ideia do livro em que clicamos corresponde perfeita e invariavelmente ao produto que chega à nossa porta. Uma mercadoria compacta, com uma relação valor-volume relativamente elevada, uma mercadoria muito fácil de catalogar e à qual se pode, portanto, aplicar a racionalização logística. Na sua simplicidade uniforme e não perecível, o livro foi o study case ideal para o lançamento da entrega a domicílio, cuja história foi longa, remontando a um século e meio antes de a internet nascer com os catálogos de venda por correspondência. O livro foi o campo de treinamento certo para preparar a venda de todos os demais produtos pela rede.

3.

Mas há outra razão pela qual o livro era a mercadoria ideal para a nova sociedade e é que os fornecedores, isto é, os editores, tinham e têm pouco poder de negociação, porque entre os grupos capitalistas apresentam uma capitalização e um volume de negócio ridículo comparado aos gigantes da eletrônica, dos motores ou da informática. A gigante editorial Hachette sabe bem disso: quando se recusou a aceitar as exigências da Amazon em 2014, foi punida. A Amazon atrasou as remessas de livros da Hachette e quando os consumidores procuraram determinados títulos em seu catálogo, ela os redirecionou para livros semelhantes de outras editoras. Hachette teve que ceder.

Assim, embora Bezos não tivesse na época a consciência de que estava dando os primeiros passos do capitalismo industrial, quando começou a mergulhar no comércio eletrônico tinha, sem dúvida, uma ideia muito clara do que é uma empresa capitalista e como deveria funcionar. Também neste caso, a trajetória da Amazon de novo remonta e intensifica ao extremo o que a empresa capitalista sempre fez, ou seja, exercer pressão sobre os fornecedores, aniquilar sistematicamente os seus concorrentes comerciais e recolher incansavelmente dados sobre os seus clientes. A Amazon leva a lógica das economias de escala ao paroxismo e explora o poder da padronização e as vantagens oferecidas pela internet para cortar custos fixos e reduzir os estoques a praticamente zero. Também leva ao limite a divisão do trabalho e a compartimentação das tarefas da sua força de trabalho. Trata os seus trabalhadores como máquinas e, claro, espreme-os como limões, ao mesmo tempo que os controla remotamente via satélite para que cumpram as entregas ou os horários atribuídos às tarefas: turnos de 14 horas, necessidades urinárias aliviadas em garrafas nos centros logísticos e defecações realizadas em sacos. O Manchester Evening News de 15 de janeiro de 2021 tinha a manchete: “O momento nojento em que um motorista de entrega da Amazon é gravado por câmeras de segurança ‘fazendo cocô’ na frente da casa de um cliente, cujo pacote ele acabou de entregar”, publicando as imagens.

As batalhas da Amazon para impedir a sindicalização dos seus trabalhadores são lendárias. Aproveita ao máximo a externalização das suas tarefas às cooperativas e aos trabalhadores independentes, mesmo nas tarefas mais triviais, para se isentar do pagamento de férias, cuidados de saúde e contribuições para a previdência. Para convencer seus funcionários a não se sindicalizarem em 2018, aumentou o salário inicial de seus funcionários nos Estados Unidos para US$ 15 (brutos) por hora, enquanto o salário mínimo federal está estagnado em US$ 7,25 por hora desde 2009. Mark O’Connell escreveu num longo ensaio publicado no The Guardian Weekly em 3 de fevereiro de 2021, o seguinte:

Seria fácil argumentar que a verdadeira inovação da Amazon tem sido a exploração implacável do trabalho humano ao serviço da velocidade e da eficiência, mas na realidade isto é apenas parte do quadro: o objetivo é retirar os seres humanos da equação, caracterizada pela necessidade de ir ao banheiro, a teimosa insistência em dormir ou a tendência a se sindicalizar, tanto quanto possível; as características humilhantes específicas das condições de trabalho constituem apenas o corolário deste objetivo.

O paradoxo é que este objetivo, explicitado pelo uso massiva da robotização e de algoritmos automatizados em todas as fases de armazenamento e distribuição, só pode ser alcançado com um milhão e meio de funcionários humanos.

Uma discrepância ainda mais flagrante torna-se evidente quando se compara a exploração implacável da força de trabalho da Amazon com a “obsessão do cliente”, o slogan que Bezos repete constantemente, ou, diretamente, com o que ele chama de “êxtase do cliente” (customer ecstasy), expressão que o não causa nelo o menor rubor ou sentimento de ridículo, embora esse “êxtase” seja alcançado justamente através do assédio aos seus funcionários funcionárias. É verdade que o serviço prestado pela Amazon é o melhor da história do comércio. No seu início havia algo, senão orgástico, pelo menos mágico na desproporção entre a causa (clicar num ícone) e o efeito (receber sem esforço um pacote em casa do outro lado do planeta). Foer coleta uma pesquisa de 2018 patrocinada pela Universidade de Georgetown e pela Fundação Knight, segundo a qual a Amazon era mais confiável do que outras instituições estadunidenses. Os Democratas consideraram a Amazon ainda mais confiável do que os militares dos EUA: “Apesar da disfunção e do cinismo que caracterizam estes tempos, a Amazon é a personificação da competição, a rara instituição que normalmente funciona” (Foer). Ou dito de outra forma: “As grandes inovações logísticas da Amazon tornaram a experiência do consumidor, desde o pedido até a entrega, tão simples quanto possível e, ao fazê-lo, mudaram a natureza do consumo. Ou seja, mudaram a estrutura do mundo” (O’Connoll).

Estamos testemunhando aqui uma compartimentalização da humanidade: enquanto o êxtase é procurado para nós como clientes, os trabalhadores são duramente explorados, enquanto o custo da frouxidão fiscal é suportado pelos cidadãos: a Amazon nunca pagou impostos nos Estados Unidos e paga muito pouco noutros lugares, explorando ao máximo os truques da globalização, ou seja, carregando os custos nas jurisdições com maior pressão fiscal e concentrando os benefícios nas jurisdições cuja carga fiscal é mais benevolente. A entrega a domicílio, tão barata, quase gratuita se o Prime for utilizado, acaba por ser muito cara, se olharmos para os seus custos indiretos.

Mas há outro ponto que faz da Amazon a quintessência de uma empresa capitalista e é que ela nunca distribuiu dividendos aos seus acionistas. Durante anos não obteve lucros, mas quando começou a obtê-los, no outono de 2001, sempre os reinvestiu, inclusive contraindo dívidas pesadas com os bancos. Expansão contínua, implacável, inexorável: relentless é o adjetivo que Bezos usa com mais frequência. Para o capitalismo, o crescimento deve ser imparável. Para o capitalismo, parar significa morrer: um ferreiro medieval poderia ferrar o mesmo número de cavalos diariamente ao longo da sua vida e ser feliz, sendo pago e remunerado por isso. Um capitalista moderno deve crescer, caso contrário o capital deixa de render.

4.

O problema é que a Terra é uma esfera limitada, que se caminharmos em linha reta acabaremos por regressar ao ponto de partida, que a quantidade de oxigênio, água e minerais, por maior que seja, também é finita. Que, portanto, o capitalismo não pode crescer indefinidamente, mas acabará, mais cedo ou mais tarde, colidindo com a redondeza limitada do nosso planeta (e, em muitos aspectos, já está fazendo isso). Mas para o capitalismo, entendido como o funcionamento da economia, o crescimento é uma condição inalienável. Daí, como escrevi em outro lugar, vem o repetido anúncio, ano após ano, de que em dois anos começará a mineração de asteroides, em dez uma base na Lua estará habitável, em vinte a primeira instalação em Marte. Mas estas promessas já nos foram anunciadas há vinte, dez, cinco anos, sempre idênticas, e nunca foram cumpridas. Deve haver uma razão pela qual, depois de os humanos terem deixado a sua marca na Lua pela sexta vez em 1972, ninguém pôs os pés no nosso satélite durante mais de meio século. E a exploração de minerais é, na melhor das hipóteses, uma ilusão e, na pior das hipóteses, um enorme engano fraudulento, uma vez que no nosso sistema solar o corpo celeste que contém mais minerais é este pequeno planeta em que vivemos. Assim, na exploração espacial acredita-se que é um artigo de fé e como tal é apoiado pelos seus defensores e, sobretudo, por Bezos que fez dela (quase) a sua razão de viver.

Bezos vem vendendo aos poucos ações da Amazon há anos (em julho deste ano vendeu 5 bilhões de dólares) para financiar o resto de suas atividades, mas principalmente para abastecer a Blue Origin, sua empresa de exploração espacial, fundada em 2000, quando a Amazon foi listada nos mercados de ações por apenas três anos e ainda não obteve lucro. A Blue Origin deveria abrir caminho para colonização espacial. Uma das frases mais citadas de Bezos expressa bem a natureza messiânica do seu compromisso espacial:

Dispomos dos recursos para construir espaço para um bilhão de seres humanos neste sistema solar, e quando tivermos bilhões de seres humanos teremos mil Einsteins e mil Mozarts. E esta seria uma civilização incrível.

Bezos disse isso em uma longa palestra (51 minutos), que está disponível no YouTube, na qual descobriu que a Terra não pode sustentar o crescimento infinito da economia, da população e das necessidades. Assim, propõe a construção de inúmeras estações espaciais rotativas perto da Terra (para produzir gravidade), todas enormes, de diferentes tipos, algumas destinadas ao lazer, outras equipadas com arquitetura futurista, e outras mais capazes de replicar cidades com elevado conteúdo artístico (uma captura de tela mostra uma réplica de Florença envolta em uma enorme bolha espacial) [4], enquanto a Terra se tornaria uma reserva natural para a qual as pessoas retornariam temporariamente. Perguntamo-nos onde conseguiriam o oxigênio, a água e os minerais necessários para construir e manter estas estações, que supostamente abrigariam bilhões de seres humanos. Um gênio logístico como Bezos não pode deixar de detectar a irrealidade desses sonhos de ficção científica dos quadrinhos para crianças. O fato é que Bezos nunca deixou de ler ficção científica – “Hoje continuo com o meu hábito de ler ficção científica e fazer isso me parece sempre estimulante, porque me faz sempre pensar” – e que já tinha esses mesmos sonhos, que ele nunca abandonou, quando era pivete. Quando ele fez um breve discurso após se formar no ensino médio na Flórida, em 1982, aos 18 anos, um jornal local noticiou que sua intenção era “tirar todos da Terra e transformá-la em um enorme parque nacional”.

A verdade é que até agora a única coisa que Bezos conseguiu com a Blue Origin foi um voo suborbital a 100 quilômetros de altitude (a Terra tem 12 mil quilômetros de diâmetro), um salto de pulga que, no entanto, permitiu ao seu irmão mais novo, Mark, seu companheiro de voo, descreve-se na página da Wikipedia como “um turista espacial estadunidense”. Este esforço em que Bezos está literalmente deitando milhares de milhões de dólares fora da Terra demonstra mais uma vez a verdade que todos nós experimentamos em primeira mão, nomeadamente, que ninguém tem uma inteligência omnimoda (tous azimuth, diriam os franceses), mas em todos nós existe uma área cinzenta mais ou menos vasta no nosso próprio raciocínio. É claro que o fracasso garantido desta empresa advém também do fato de que aqui Bezos está jogando, fora da seu área, um esporte para o qual não está treinado: embora seja muito bom no seu trabalho, o de procurar o “êxtase do cliente”, o problema é que nesta empresa espacial não há clientes para satisfazer com astronautas cagando no asteroide: ele é seu próprio cliente. Em outras palavras, o seu brinquedo interplanetário é muito caro, o equivalente orbital de um trem elétrico. Na realidade, tudo isto parece uma espécie de mausoléu espacial tão inútil quanto aqueles construídos pelos antigos magnatas na esperança de perpetuar a sua memória.

5

Porque, por mais adolescente que seja, até Bezos ocasionalmente vislumbra sua própria mortalidade. E não pode evitar ser acometido pela dúvida expressa numa esplêndida frase de Max Weber, contida em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo: “Mas é precisamente isto que parece tão incompreensível e enigmático ao homem pré-capitalista. O fato de um ser humano poder ter como objetivo de todo o trabalho de toda a sua vida ir para a sepultura carregado com o maior peso possível de dinheiro e bens, só lhe parece explicável como produto de impulsos perversos, do auri sacra famas”. [5] . Mas mesmo à finitude da vida humana, Bezos aplica a mesma lógica que parece irrefutável à finitude dos recursos da Terra: face à perspectiva inelutável da morte, a única solução é, precisamente, não morrer. E se o dinheiro pode comprar tudo, também pode comprar anos, décadas (por que não séculos?) mais de vida: basta investir e investir bem.

E assim, em 2011, Jeff Bezos, juntamente com Peter Thiel, cofundador do PayPal, fundaram a Unity Biotechnology, uma empresa que pesquisa como eliminar células envelhecidas do corpo. Ao eliminar estas células, a empresa espera retardar, parar ou reverter doenças relacionadas com o envelhecimento. Em 2022, Bezos relançou e redobrou a aposta: junto com Yuri Millner, outro bilionário, e Robert Nelsen, fundador do fundo de investimento ARCH Venture Partners de Chicago, desembolsaram US$ 3 bilhões para Altos Lab, a start-up biológica mais bem financiada das últimas décadas, cuja “missão é reverter as doenças, lesões e incapacidades que ocorrem ao longo da vida, restaurando a saúde celular e a resiliência alcançada através do rejuvenescimento celular”, como proclama o seu site.

O Altos Lab baseia seu programa de pesquisa na descoberta da “reprogramação celular”, que em 2012 rendeu o Prêmio Nobel ao cientista japonês Shinya Yamanaka, que preside o conselho consultivo científico da empresa. Yamanaka descobriu que adicionando apenas quatro proteínas, conhecidas como “fatores de Yamanaka”, as células podem ser ordenadas a retornar ao seu estado primitivo, readquirindo as propriedades das células-tronco. Em 2016, esta técnica foi experimentada em ratos vivos, mostrando sinais de reversão de idade que alimentaram a esperança de que a reprogramação celular pudesse ser a “fonte da juventude” pintada por Luca Cranach, o Velho. Mas os resultados destas experiências com ratos, por mais promissores que fossem, também foram assustadores: dependendo do nível de reprogramação celular, alguns ratos desenvolveram tumores embrionários mortais (teratomas), enquanto noutros casos alguns tecidos mostraram sinais de rejuvenescimento.

Sejamos claros: Bezos não é o único bilionário que espera tornar-se imortal com seu dinheiro. Na verdade, está em muito boa companhia: como escreveu Antonio Regalado em artigo publicado no MIT Technological Resenha dedicada ao Altos Lab, “os jovens sonham em ser ricos, enquanto os ricos sonham em ser jovens”. Em 2013, os fundadores do Google, Larry Page e Sergey Brin, investiram na Calico, uma “empresa de saúde e bem-estar” dedicada a retardar o envelhecimento. Quase um ano antes, tinham convencido Arthur Levinson, força motriz da gigante da biotecnologia Genentech e presidente da Apple, a supervisionar a nova empresa, dotada de 1,5 bilhões de dólares provenientes igualmente da empresa-mãe da Google, a Alphabet, e da empresa farmacêutica AbbVie (em 2021, os dois patrocinadores relançaram o seu investimento com mais mil milhões de dólares). Por outro lado, Larry Ellison, cofundador da Oracle, já havia financiado estudos sobre envelhecimento com US$ 335 milhões. Foi até criado um Prêmio de Longevidade de Palo Alto, no valor de um milhão de dólares, para quem contribuir significativamente no prolongamento da vida de um mamífero.

Mark Zuckerberg e sua esposa Priscilla Chan co-fundaram o Breakthrough Prize, que concede anualmente um prêmio de US$ 3 milhões a cientistas especializados no envelhecimento “que fazem avanços significativos na compreensão dos sistemas vivos e na extensão da vida humana”, de acordo com seu site. Mas como isso não nos ocorreu antes? Basta agitar a promessa de imortalidade debaixo do nariz dos tolos que fará com que bilhões de dólares fluam. Normalmente, porém, os novos bilionários escolhem seus peculiares caprichos extravagantes (ou fantasias adolescentes): a conquista do espaço (como é o caso de Elon Musk ou Richard Branson da Virgin) ou a busca pela imortalidade (como é o caso de Peter Thiel, Larry Page ou Mark Zuckerberg). Em vez disso, Bezos persegue os dois sonhos simultaneamente: conquistar (comprar?) o universo inteiro e, ao mesmo tempo, viver para sempre. É como se transferisse para o nível existencial a ansiedade totalizante que funcionou tão bem com a Amazon: a Amazon é desde o seu início uma corporação dotada de uma vocação totalitária, que pretende cobrir todos os aspectos da vida de todos os seres humanos no mundo, acumulando também a enorme quantidade de dados que registra não só o nosso histórico de compras, mas também o arquivo de todos os nossos gestos domésticos capturados pela Alexia, quando este aplicativo presta sua ajuda nas residências, e armazenando toda essa enorme massa de dados em suas nuvens digitais. Mas o que à escala comercial é uma estratégia de expansão cada vez maior, ao nível existencial só pode parecer uma ilusão de onipotência.

Notas:

1 Lucien Febvre y Henri-Jean Martin, L’apparition du livre, París, Abin Michel, 1958.

Ibid., p. 394.

3 Benedict Anderson, Imagined Communities: Reflexions on the Origin and Spread of Nationalism [1983], Londres, Verso, 2016; ed. cast.: Comunidades imaginadas: Reflexiones sobre el origen y la difusion del nacionalismo, Madrid, 2006.

4 Estas capturas de pantalla son visibles entre los minutos 15 y 17 del videoclip.

5 Max Weber, Sociologia delle religioni, 2 vols., Turín, UTET, 1976, vol. I, p. 159. I.

Destaque: Hieronymus Bosch – A Violent Forcing Of The Frog (detalhe).

 

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