É preciso falar de banheiros e bebedouros públicos

Há muito negligenciado no Brasil, o saneamento fora do domicílio é essencial para garantir o direito à Saúde e ao Bem-Estar. E a ausência pesa ainda mais sobre a população empobrecida, os trabalhadores precarizados, as mulheres e os encarcerados

Por Laura Magalhães Rocha e Silva e Fernanda Deister Moreira*, do Ondas, no Outras Palavras

Uma das provas aplicadas no Concurso Nacional Unificado para o serviço público trouxe como tema de redação a saúde no sistema prisional nacional. O enunciado tinha como base uma pesquisa1 realizada pelo Conselho Nacional de Justiça sobre óbitos e adoecimentos de pessoas sob a custódia estatal. A pesquisa apresentou também dados que sugerem um aumento no número de mortes e precarização das condições de saúde durante a emergência sanitária de Covid-19, mesmo sendo esses dados subnotificados. O cenário certamente relaciona-se às unidades prisionais superlotadas e à falta de água potável em quantidade adequada e suficiente (CNJ, 2023).

Além da precariedade vivida pela população prisional, situação conhecida e muitas vezes negligenciada e banalizada, a apresentação desses dados permite suscitar um outro tema de importância pública e essencial para o saneamento básico nacional: os serviços de saneamento nas esferas da vida além do domicílio. São instalações em espaços que vão além das residências, como por exemplo unidades de saúde, sistemas prisionais, escolas, locais de trabalho, prédios públicos, espaços públicos e a intersecção entre esses lugares.

O saneamento em espaços públicos é essencial para a manutenção das tarefas do cotidiano, do lazer, além de atender aos trabalhadores e trabalhadoras informais e formais que têm a rua como seu espaço de trabalho, e também as populações mais vulneráveis socioeconomicamente, como a população em situação de rua (Moreira et al., 2023), que já sofre com outras dificuldades, como alimentação precária, sede, frio, preconceito e violência (Valle; Farah; Carneiro Junior, 2020). A falta de serviços adequados nessa esfera da vida reforça as desigualdades sociais que perpetuam vulnerabilidades já existentes, sendo também serviços necessários para a manutenção da qualidade de vida e da sustentabilidade das cidades (Moreira et al., 2023).

O esforço para universalizar o abastecimento de água e saneamento (saneamento no vocabulário dos direitos humanos é entendido como esgotamento sanitário), embora reconhecidos como direitos humanos desde 2010, seguem a passos vagarosos no Brasil. Dentro desses serviços básicos, os serviços de saneamento além do domicílio apresentam demandas ainda maiores, tanto em quantidade e qualidade, quanto em visibilidade como política a ser debatida na sociedade e nos poderes públicos em todos os seus níveis. Apesar desse cenário de insuficiência de serviços e direitos não reconhecidos, não há no país políticas acerca da obrigatoriedade de banheiros e bebedouros públicos nos espaços públicos, o que deixa a questão à mercê da sensibilidade e priorização da visão de gestores estaduais e municipais (Moreira et al., 2023).

Uma pesquisa realizada na capital mineira revela que, no período de 2005 a 2021, foram propostos apenas doze projetos de lei municipais sobre a temática de banheiros e bebedouros públicos. No entanto, esses projetos foram arquivados, rejeitados ou vetados por distintos motivos (Moreira et al., 2021).

A presença de instalações sanitárias e bebedouros públicos está diretamente relacionada com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). O ODS 3 busca assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar até 2030, além de combater doenças transmitidas pela água, entre outras enfermidades. O ODS 6 busca assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento, além de, até 2030, alcançar o acesso universal aos serviços de saneamento e higiene adequados e acabar com a defecação a céu aberto. O ODS 11 busca proporcionar o acesso universal a espaços públicos que sejam seguros, inclusivos, acessíveis e verdes, com destaque para o acesso de mulheres, crianças, idosos e pessoas com deficiência (UNICEF, 2024; Heller, 2019).

Devido às diferentes necessidades dos usuários (e detentores de direitos), os serviços devem ser planejados e construídos com critérios capazes de proporcionar instalações com qualidade, segurança, em quantidade suficiente, com acessibilidade física e financeira. A responsabilidade sobre esse planejamento e construção é, assim como nas instalações domiciliares, do Estado. No entanto, não há clareza quanto à obrigatoriedade dos serviços de água e saneamento além do domicílio, nem diretrizes que incentivem ou facilitem a provisão desses serviços.

Embora haja ambiguidade no que se interpreta como universalização no marco legal do saneamento – que ora menciona domicílios ocupados, ora cita toda a população –, a Lei 11.445/07 e as alterações dadas pela lei 14.026/20 são excludentes para grupos como população em situação de rua e trabalhadores informais da rua. Isso porque as normas estabelecem a universalização por domicílio convencional, relegando esses grupos como “não-pessoas” devido a processos de estigmatização.

É inegável a urgência em prover serviços de saneamento domiciliares em qualidade e quantidade adequadas. Porém, essa demanda não anula as necessidades existentes desses serviços nos espaços além das residências, mas sim exacerba as lacunas presentes no setor e reforça a responsabilização do Estado em destinar recursos suficientes e regulares para amenizar progressivamente esses déficits, além de criar diretrizes, normativas e meios de regulamentar esses serviços. Os serviços de saneamento além do domicílio necessitam também de recursos financeiros e humanos para construção, manutenção e reparos, do mesmo modo que o atendimento domiciliar.

A responsabilidade dos municípios de prover equipamentos urbanos e comunitários de interesse local, dado pelo Art 2º do Estatuto das Cidades, não explicita quais são esses serviços, ficando a cargo do governo em exercício tomar as decisões ou implementar leis municipais para garantir a continuidade das ações públicas. É necessária uma política de Estado para que haja perenidade dos serviços, para que esse direito não seja interrompido conforme vontade política. Por isso, há grande importância na formalização dos direitos humanos à água e ao saneamento, uma vez que seu reconhecimento será de grande importância para a luta pelos serviços para grupos deixados para trás pelas políticas urbanas.

Assim como outras desigualdades existentes, as condições socioeconômicas, de raça, de idade, de gênero e de acessibilidade são fatores que influenciam em processos excludentes já existentes. Os espaços públicos podem ser potencializadores de desigualdades quando não se consideram as necessidades que crianças e idosos possuem ao passarem um dia de lazer em uma praça ou espaço turístico. Um banheiro público não acessível a pessoas com deficiência visual ou física reforça a construção de cidades excludentes, que não consideram as pluralidades de corpos.

A intersecção entre as camadas de vulnerabilidade potencializa a violação dos direitos para pessoas que já são historicamente marginalizadas. Um homem idoso em situação de rua é mais afetado pela falta de banheiros e fontes de água pública do que um homem jovem turista. Assim como as pessoas transexuais são mais afetadas pela falta de banheiros adequados nas escolas ou no local de trabalho. Mulheres com deficiência encarceradas sofrem mais na falta de banheiros adequados nas unidades prisionais. Todas essas camadas e suas superposições (a chamada interseccionalidade) devem ser consideradas no planejamento e tomada de decisão sobre os serviços a serem fornecidos à população.

Ao fim e ao cabo, toda a população é detentora dos direitos à água e saneamento além da moradia embora haja grupos que necessitam mais que outros e são afetados negativamente na provisão inadequada ou na falta de serviços nas esferas além do domicílio. No entanto, a disponibilidade do serviço por si só não garante que os direitos sejam assegurados. É necessário que os serviços sejam seguros, aceitos culturalmente, de qualidade, deem privacidade ao usuário ou usuária, sejam acessíveis física e economicamente e, importante, em todas as esferas da vida. Ademais, a partir da identificação dos grupos e locais que mais precisam dos serviços de água e saneamento além do domicílio é patente a necessidade de uma estratégia intersetorial que inclua, por exemplo, os setores de saúde, educação, assistência social, planejamento urbano e saneamento.

O texto finaliza, mas a luta pela promoção desses direitos continua, e deve ser incessantemente fortalecida. São muitas as demandas de serviços de água e saneamento nas esferas da vida além do domicílio, demandas essas que, muitas das vezes, se sobrepõem a outras desigualdades já existentes, ou a ambientes já precarizados como os do sistema prisional e como a maioria dos espaços públicos do país. Pela lente dos Direitos Humanos, progressivamente, deve-se lutar em ambas as frentes: pela defesa de serviços de água e saneamento domiciliares, mas também para os além desta esfera.

*Laura Magalhães Rocha e Silva é engenheira Ambiental e Sanitarista, Mestre em Saúde Coletiva, Pesquisadora no departamento de Políticas Públicas e Direitos Humanos em Saúde e Saneamento (Fiocruz Minas) e Fernanda Deister Moreira é doutora e Mestre em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos. Pesquisadora Fiocruz Minas.

Referências

CNJ – Conselho Nacional de Justiça. Letalidade prisional : uma questão de justiça e de saúde pública : sumário executivo / Conselho Nacional de Justiça; Instituto de Ensino e Pesquisa Insper; Colaboração Fundação Getúlio Vargas. – Brasília: CNJ, 2023. 30p.

HELLER, L. Human Rights to water and sanitation in spheres of life beyond the household with an emphasis on public spaces. Human Rights Council. Geneva: UN. 2019.

MOREIRA, F. D., FONSECA, P. R. F., RIBEIRO, P. S. C., MORETTI, R. S. Projetos de lei relacionados a banheiros públicos em Belo Horizonte: Uma Análise com ênfase nos Direitos Humanos. In: Encontro Nacional pelos Direitos Humanos à Água e ao Saneamento (01:2021: Brasília). Anais do Encontro Nacional pelos Direitos Humanos à Água e ao Saneamento, 09 a 11 de dezembro de 2021, Brasília ON-LINE, organizado por ONDAS. 2021

MOREIRA, F. D., FONSECA, P. R. S., HELLER, L., REZENDE, S. O Espaço Público e o Público que o Frequenta: Dilemas dos Direitos Humanos à Água e ao Saneamento. Revista brasileira de estudos urbanos e regionais, v. 25, 2023.

Valle, F. A. A. L., Farah, B. F., Carneiro Junior, N.. (2020). As vivências na rua que interferem na saúde: perspectiva da população em situação de rua. Saúde Em Debate, 44(124), 182–192. https://doi.org/10.1590/0103-1104202012413

UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. 2024 Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel

Notas:

1 Pesquisa intitulada: Letalidade prisional: uma questão de justiça e de saúde pública.

Imagem: Banheiros públicos do Setor Comercial Sul, de Brasília, foram reformados após o início da pandemia de covid, com a compreensão de que o acesso ao saneamento era ainda mais urgente. Foi criado para atender pessoas em situação de vulnerabilidade. Foto: Divulgação/SCS

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