Não existe pobre de direita. Entrevista especial com Luís Fernando Vitagliano

Para o professor, política é uma coisa e o compartilhamento de valores morais é outra, de tal modo que é preciso fugir da análise rasa e da posição elitista de que a periferia é de direita

Por: IHU e Baleia Comunicação

O ambiente digital se tornou a Caixa de Pandora do fascismo da extrema-direita. Amparados em uma estética do horror, que tem ganhado corpo nas plataformas digitais, a ultradireita tem um discurso baseado na criação de pânicos morais de toda a ordem e a certeza de que os algoritmos farão circular seus conteúdos radicalizados.

Na tentativa de pensar alternativas ao retrocesso civilizatório que esse modelo de política impõe, o professor Luís Fernando Vitagliano defende a “criação de espaços de políticas públicas e ações republicanas dentro das redes”. Segundo sugere, “é preciso permear a lógica das Big Techs com espaços e possibilidades de ações públicas e valorização do espaço público. Se a internet for essa terra sem lei e sem orientação de todos contra todos, continuará o ‘Deus nos acuda’”, pontua.

E é no alcance dos algoritmos nas mais diferentes camadas da sociedade que se revela a aproximação dessa direita extremada aos mais pobres, ao convencer a coletividade de que um dos lados simboliza o mal e o outro o bem. “Assim, não se avalia política na construção de um projeto de sociedade, de uso e formas de atuação da coisa pública, mas de uma avaliação moral dos políticos, das suas propostas vistas pelo prisma do julgamento de valores e se esse valor do candidato é compartilhado com o meu”, assinala o entrevistado. Para o pesquisador, “não existe pobre de direita. Existe pobre que é convencido de que seu voto deve levar em consideração seus valores e espelhar esses valores – o que o faz esquecer a política, porque política não trata de valores, mas de consideração a respeito da coisa pública”, explica Vitagliano na entrevista a seguir concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Em relação à América Latina, Luís Vitagliano pondera que a ascensão do radicalismo no continente está atrelado ao fracasso dos governos progressistas. É “a região do mundo com maior concentração e renda e riqueza e, mesmo com todo o prejuízo que isso causa, há um crescimento do apoio àqueles que defendem as medidas neoliberais. Isso só é possível de entender considerando que os governos progressistas têm dado respostas medíocres aos problemas sociais da América Latina”, analisa.

Luís Fernando Vitagliano é assessor da presidência do IBGE, onde coordena projetos especiais e é diretor do convênio do Instituto com o PNUD. Participa do Comitê Técnico para o 12º Censo Agropecuário, Florestal e Aquícola, do Comitê de Tecnologia da Informação e Comunicação (CTIC) e do Comitê de Afastamento para Pós-graduação (CAPG). É também graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2001) e mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (2004) e doutor (2024) em Mudança Social e Participação Política pela EACH/USP. Coordenou o projeto e formação do Instituto Luiz Inácio Lula da Silva, (2020-2023), tendo liderado projetos na área da formação política com e parcerias externas, e na Fundação Perseu Abramo, onde coordenou os cursos de Difusão do Conhecimento em Gestão e Políticas Públicas (2014-2018) e a Rede Nacional de Pesquisadores Associados (2019-2020). Foi bolsista CAPES no mestrado e FAPESP na iniciação científica.

Confira a entrevista.
IHU – Em que sentido a ultradireita trava batalha mais profunda que a eleitoral?

Luís Fernando Vitagliano – A ultradireita de hoje talvez seja o maior diferencial em relação às propostas de direita do passado recente e de momentos que antecederam o golpe civil-militar de 1964. O conservadorismo proposto por eles implica uma visão de mundo que envolve uma visão específica de família, propriedade e liberdade. Específica porque é excludente em relação à família, considerando o padrão monoparental de pai e mãe progenitores e filhos. Excluindo a complexidade do conceito desde as famílias informais, passando pelas homoafetivas, mas também essa conceituação é um problema para famílias reconstruídas.

Liberdade para a ultradireita atual é em relação ao mercado – que é uma liberdade predatória e sem nenhuma regulação. E a defesa da propriedade vai além do uso social da propriedade para a defesa radical e irrestrita do direito a propriedade. O curioso é que esses três elementos já foram julgados e recusados em outros momentos da história.

Eleitoralmente, a direita perdeu e perde eleições quando o sentido real do que essa defesa significa torna-se público sem teorias da conspiração e exageros catastrofistas. Por isso, a profundidade da proposta só ganha volume capaz de vencer uma eleição se vier com uma boa dose de deformações sobre o que a extensão desses conceitos pode significar. Ou seja, a ultradireita, uma direita radical, que significa uma direita que tem seus princípios e posições sólidas ao ponto de as tornarem inegociáveis, é uma exceção que a história já julgou e, provavelmente, vai julgar novamente como indesejada. É por isso que, também, acompanha o seu sentido um viés golpista. Faz parte do projeto como faz parte a deformação do outro lado.

IHU – Como o bafio arcaico do passado somado às ruínas do presente compõe uma certa moldura abjeta da política atual?

Luís Fernando Vitagliano – Esse bafio só é viável se você não apenas defendê-lo, mas ridicularizar o debate. Em certo sentido, infantilizar. Veja, é na infância que, para desenharmos nossa moral, os conceitos de certo e errado, que formamos um mundo binário de bom e mal para as pessoas. À medida que amadurecemos, vamos percebendo que as atitudes boas e más estão presentes em muitos lugares. Boas pessoas podem ter decisões ruins e que pessoas indigestas podem ter atitudes nobres. Isso faz parte do amadurecimento do caráter. Assim, aqueles desenhos que tínhamos heróis e vilões não fazem mais sentido na vida adulta. E o maniqueísmo dá lugar a uma vida mais complexa de escolhas com decisões e suas consequências positivas e negativas com as quais temos que conviver. Acontece que, coletivamente, é muito difícil atingir essa maturidade. Então se eu convencer pessoas de que um lado da sociedade representa o mal, logo, você votando desse lado está do lado do bem.

Assim, não se avalia política na construção de um projeto de sociedade, de uso e formas de atuação da coisa pública, mas de uma avaliação moral dos políticos, das suas propostas vistas pelo prisma do julgamento de valores e se esse valor do candidato é compartilhado com o meu. Não existe pobre de direita. Existe pobre que é convencido de que seu voto deve levar em consideração seus valores e espelhar esses valores – o que o faz esquecer a política, porque política não trata de valores, mas de consideração a respeito da coisa pública.

Ao reconhecer que tanto o pobre quanto o rico têm seus valores no âmbito privado, o desafio é fazê-los considerar que no espaço público seus valores devem considerar a relação e a convivência com outros valores. Essa segunda parte da história é, em muitos casos, desconsiderada, porque a maioria das pessoas reconhece que os valores dos outros deve se adequar aos seus valores. Quando consigo essa evolução, tenho um eleitor progressista.

IHU – Até que ponto o fascismo estende seus tentáculos sobre a política não somente no Brasil, mas em todo o continente latino-americano? Que exemplos evidenciam esses sinais do tempo?

Luís Fernando Vitagliano – Qualquer filósofo minimamente comprometido com o rigor, que for consultado para uma análise de conjuntura, vai dizer que cada época representa seu próprio desafio. Nossa época tem essa radicalização da direita com ganho social de densidade para responder ao ponto que chegamos. No caso da América Latina, muitos desafios nos colocam. Entre eles, entender por que a direita se permite ser neoliberal no subcontinente com a maior desigualdade de renda em todo o mundo. A América Latina representa a região do mundo com maior concentração de renda e riqueza e, mesmo com todo o prejuízo que isso causa, há um crescimento do apoio àqueles que defendem as medidas neoliberais.

Isso só é possível de entender considerando que os governos progressistas têm dado respostas medíocres aos problemas sociais da região. Assim como é preciso reconhecer que Néstor Kirchner foi de grandes avanços sociais na Argentina, é preciso reconhecer que os governos de Cristina e Alberto Fernández foram rasos, assim como no Brasil que teve grande sucesso com Lula I e Lula II e acabou tendo uma sequência insuficiente. Isso quer dizer também que se Lula III não mostrar a que veio, é consenso que a direita volta com mais força que chegou antes.

Isso nos leva a considerar uma reflexão: a ascensão da ultradireita é o lado oposto da crise de identidade da esquerda. Não há uma correlação causal entre elas, mas são fenômenos correlatos. Quando a esquerda é incapaz de organizar as classes oprimidas, abre espaço para setores ultrajantes da sociedade exercerem esse papel.

IHU – Quem é ou o que é, hoje, o sujeito latino-americano?

Luís Fernando Vitagliano – Imagino que sua pergunta seja no sentido de quem é o sujeito coletivo da história, como a classe operária representa essa força política para a leitura marxista. Isto foi sempre muito complicado na América Latina, onde os operários sempre foram minorias. Representaram apenas 30% da força de trabalho local, no auge da industrialização, em alguns poucos países como México, Colômbia e Brasil. Tampouco tivemos uma classe campesina no sentido trabalhado pelos intelectuais europeus. O ibero-americano, de José Martí, ou no livro “Ariel”, de José Enrique Rodó, é um debate que precisamos retomar. Abapurú, de Tarsila do Amaral, é uma boa imagem da forma distorcida que assumimos em relação à imagem do colonizador. Esse debate está em aberto.

Seremos os cristãos fervorosos que interpretam a bíblia dos católicos para formar as leis de uma nação? Ou seremos os trabalhadores empreendedores individuais que abrem mão dos seus direitos sociais e são movidos por um propósito como prega Pablo Marçal? Ou seremos o país de integração social que preconizou Stefan Zweig? Cada vez menos conseguimos falar em América Latina e latino-americano. Assim como boa parte das referências de unidade nacional e internacional tem perdido espaço, o que me permite dizer que a sua pergunta vem no sentido oposto da conjuntura; você me pergunta sobre unidade e identidade, e a conjuntura me apresenta fragmentação e desconstrução.

IHU – Historicamente, como a América Latina serviu de laboratório ao neoliberalismo? Que episódios atestam essa hipótese? Quais suas consequências?

Luís Fernando Vitagliano – A primeira experiência neoliberal na América Latina foi em 1975 com a guinada que o governo [Augusto] Pinochet fez em relação ao neoliberalismo. Ali, criou-se o primeiro laboratório de implementação do neoliberalismo no mundo. Antes de Margaret Thatcher, Ronald Reagan e Helmut Josef Michael Kohl, tivemos Pinochet como experimento no terceiro mundo. A partir dos anos 1980, além da mudança da política de juros do Federal Reserve dos EUA, as políticas privatistas de Thatcher na Inglaterra se estenderam pela Europa, mesmo que não no mesmo patamar.

Concomitante, neste mesmo período, um grupo de lideranças latino-americanas foi aliciado pelo Instituto de Economia Internacional – IEE presidido por John Williamson. O IEE fez uma série de conferências com lideranças latino-americanas para propor políticas de Estado. Essas recomendações, resumidas em dez pontos em 1989, ficaram conhecidas como “Consenso de Washington” e determinaram a política para os países da região, inclusive com pressões dos organismos multilaterais como Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional, para que os governos adotassem essas medidas.

A consequência é que isso gerou uma corrida ao individualismo e ao desmonte das políticas públicas que colocaram a desigualdade como principal chaga das sociedades latino-americanas e um problema sobre o desenvolvimento que nos une como região, tamanho é o problema gerado pelas políticas de austeridade sugeridas a partir do norte. É importante destacar que os problemas apresentados são recorrentes porque internamente há grupos sociais que se associam a essas propostas colonialistas. Não existe, portanto, essa colonização econômica sem que, internamente, não haja grupos hegemônicos que implementam os princípios básicos dessa colonização.

IHU – O discurso da ultradireita se assenta em dois pilares elementares: a produção constante e infindável de pânicos morais (e medo) de toda ordem – dos costumes à agenda econômica – e uma certa garantia de circulação dos seus conteúdos radicalizados nas plataformas digitais, inclusive impulsionado por regras algorítmicas. Como fazer frente a essa estética do horror e defender um projeto civilizatório?

Luís Fernando Vitagliano – Esse é um ponto central a se considerar. O que a ultradireita tem feito de novo é alcançar um domínio impressionante da internet. Não porque a internet é feita para a ultradireita, mas porque as necessidades da ultradireita cabem exatamente na lógica da internet que tem sinergia com a os algoritmos e a rede. Os algoritmos, por exemplo, funcionam sob a lógica da “toca de coelho”. Ou seja, valorizam os assuntos que você entra e começa a navegar dentro dele, navegar, navegar… e ficar imerso na quantidade de coisas publicadas sem nenhuma conclusão ou com a pretensão mesma de não concluir e manter o usuário viciado no tema para que acesse mais, procure mais e fique aprisionado. A ultradireita precisa desse tipo de procedimento para difundir suas teorias conspiratórias.

Por exemplo, a teoria de que as urnas são hackeadas e manipuladas ajuda a difundir uma ideia de que as eleições são elementos frágeis e a democracia precisa ser revista. O que garante a elas desafiar as instituições quando se sentir ameaçada. Também as teorias contra a vacina ou as teorias do kit gay. Tudo se encaixa nas propostas de radicalizar as posições que as lideranças de direita assumem em relação à sociedade, e o algoritmo adora. Isto aumenta o engajamento, mobiliza grupos, faz com que o tempo médio de permanência nas redes aumente e, principalmente, faz com que os usuários se tornem alvos fáceis das propagandas e manipulações das empresas que querem vender soluções. E isso precisamos também discutir: como essas empresas criam problemas para vender as soluções. Exemplo: criar a depressão para vender antidepressivo.

Para fazer frente a essa estética do horror, será preciso regular (mas não é suficiente), taxar (que também não resolve) e, principalmente, criar espaços e práticas de políticas públicas e ações republicanas dentro das redes. Veja que esse é um problema dos países liberais. Em países em que há uma política nacional que submete a internet a ela, o problema das conspirações e da influência da ultradireita é outro. Porque estão submetidos a uma concepção privada e neoliberal da rede, como espaço de lucro de multinacionais. Então, é preciso permear a lógica das Big Techs com espaços e possibilidades de ações públicas e valorização do espaço público. Se a internet for essa terra sem lei e sem orientação de todos contra todos, continuará o “Deus nos acuda”.

IHU – No Brasil, nem sequer conseguimos alcançar o Estado de bem-estar social, mas apenas direitos muito elementares a partir de 1988. Contudo existe, desde a chamada “ponte para o futuro”, um projeto agressivo de destruição de algo que nem foi plenamente construído. Esse projeto pretende colocar o que no lugar de nossos parcos direitos?

Luís Fernando Vitagliano – Esse é um problema mais profundo a respeito do que é o debate sobre as redes e o que é a ultradireita. Que é: como desenvolver e estender a cidadania à universalidade dos brasileiros? Não foram o desenvolvimentismo ou o nacional-desenvolvimentismo nem a Constituição de 1988 ou os governos progressistas que conseguiram estender a universalidade dos direitos aos brasileiros, porque uma parte da sociedade se recusa a assumir políticas que expressem a cidadania. Quando no Brasil se viajava muito de avião e pessoas que nunca tiveram condições de voar conseguiram comprar passagem, o ruído desse grupo foi que os aeroportos estavam parecendo rodoviárias e que as pessoas não sabiam se comportar como passageiros de avião.

Ou quando direitos da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT se estenderam às empregadas domésticas e os patrões se recusavam a entender-lhes os direitos. É uma sociedade ainda de mentalidade escravocrata que considera que determinados direitos só cabem a quem tem “alma” (porque a ausência de alma era uma das justificativas do direito a escravizar outros seres humanos). Assim, só os “almados” merecem direitos humanos. Aos criminosos, aos pobres (excetuando os ‘limpinhos’), aos marginalizados, não há direitos porque fazem parte de uma categoria que não é reconhecida por não terem o pré-requisito fundamental para se humanizar, que era, antes, a alma e, agora, pode ser qualquer outra justificativa, seja o padrão considerado normal, seja o cidadão de bem ou qualquer outra coisa.

O fato é que o escravismo acabou, mas a mentalidade escravagista se mantém e divide a sociedade entre o nós (os que têm os direitos incluídos – os cidadãos de bem) e os outros (os desalmados, os malditos, os degenerados – eles). Mas, ao termos resquícios dessa mentalidade escravagista, não preciso nem reforçar o argumento de que o terreno é fértil para a segregação da ultradireita.

IHU – Como sair dessa encruzilhada posta pela extrema-direita e avançar em direção a uma sociedade capaz de enxergar a si própria de maneira mais realista em seus limites e possibilidades?

Luís Fernando Vitagliano – Somos um país de sobressaltos. Colonizados até 1822, depois com o primeiro e osegundo reinados divididos por nove anos de regências. Primeiro Reinado 1822-1831. O reinado é interrompido pela Regência (1831-1840). Depois, um reinado longo de 1940-1888. A República Velha (1889-1930). Interrompida pela ditadura Vargas (1930-1945), a Segunda República (1945-1964). Outra ditadura (1964-1988) e a Nova República (1989-atual). Portanto, temos que o Segundo Reinado foi o período mais estável da nossa história com 48 anos de duração ininterruptos. Depois vem a República Velha, com 41 anos de duração; a Nova República, com os atuais 35 anos de duração. Portanto, nossa estabilidade política é baixa e instável, de modo que não podemos descartar as lições que a história ensina.

Nós podemos terminar esse período da Nova República com mais uma ruptura democrática. Uma segunda hipótese é que conseguiremos sustentar a democracia. Mas me parece que a sociedade brasileira acaba escolhendo a democracia e a república como forma de se manifestar politicamente. Pelo menos foi isso que acabou sendo o resultado dos vários plebiscitos feitos no Brasil. Em 1963 e em 1993 decidiu-se pelo presidencialismo e pela democracia. Mas, diante da instabilidade, a democracia pôde vir depois de uma ruptura institucional. Portanto, há a maneira lenta e a maneira curta de sair da situação. Mesmo com uma minoria apoiando a ruptura, a baixa organização da sociedade civil permitiria que um golpe acontecesse sem grandes resistências. O problema é que esse golpe não teria fôlego para um regime diferente, mas nos colocaria em um período longo de dominação da extrema-direita e essa é a aposta deles.

O segundo caminho é o institucional em que a extrema-direita vai ser derrotada pela sua própria ineficiência em corresponder aos anseios populares. Uma coisa é eu fazer proselitismo contra a violência na sociedade dizendo que o cidadão de bem deve se armar para se defender. Outra coisa é eu considerar isso política pública. Ou associar ao armamento civil o aumento da violência policial. Ao perceber que essas soluções são inócuas e dificultam a política, o eleitor vai rejeitar o discurso rapidamente. Isso considerando que os setores progressistas vão continuar politicamente incompetentes nesse debate. Ou seja, pela via democrática, a própria incapacidade de resolver os problemas vão tirar a ultradireita dos governos com a mesma velocidade que o neoliberalismo sucumbiu. Se esse caminho curto acontecer, optar por defender as instituições da democracia ainda que reconhecendo os seus limites acaba sendo uma opção viável.

IHU – Agora uma questão que retoma um debate subjacente a todas as anteriores: como nos ressensibilizamos em direção ao humanismo ético e plural?

Luís Fernando Vitagliano – Em uma sociedade de mentalidade escravagista, vamos ser bem-sucedidos em partes. Ou seja, de modo geral, vamos conseguir recuperar valores humanistas e éticos, ainda que a internet, as plataformas e redes sociais tenham nos colocado dificuldades circunstanciais. Mesmo que o crescimento da extrema-direita tenha se manifestado de forma imperativa em alguns casos, o efeito de ressaca também se impôs. Nos EUA, Trump conseguiu a façanha de não se reeleger. No Brasil, Bolsonaro foi o primeiro presidente da Nova República a não se reeleger desde que a lei foi aprovada. Teremos que acompanhar a Argentina de Javier Milei, mas tenho a impressão que terá muito mais dificuldades para se reeleger do que foi para se eleger. Isso porque se começa a separar o voto de protesto, da dificuldade que se tem para cumprir promessas, e também o perfil das realizações fica mais claro o caminho em dissonância com o discurso. Aí, ocorre o engano do eleitor com as confusões estimuladas pela campanha de segregação que não se justificam.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Luís Fernando Vitagliano – Um ponto importante do debate é que a democracia é pedagógica. Ela ensina a sociedade a respeito dos seus limites e possibilidades e também a respeito das perspectivas de mundo. Um grupo que aposta na segregação e na tradição num país como o Brasil, ansioso por modernidade e inclusão, está fadado ao fracasso. Ou no curto e médio prazo a direita se transforma e faz gestões que vão escandalizar seus parceiros neoliberais, ou será descartável e descartada.

A pauta de costumes recorrentemente tem efeito de escândalo, mas seu ponto de impacto é paliativo. Como já foi dito aqui, o fato de que houve falta de compreensão da esquerda em relação aos seus próprios governos permitiu que propostas fantasiosas e o desvio da pauta se fizessem. Há inclusive uma dificuldade compreensível de se fazer alguns debates como o da necessidade de direitos sociais e de direitos humanos nas redes sociais e nas plataformas que têm algoritmo atuando em favor do neoliberalismo, mas também houve erros de avaliação dos setores progressistas. Inicialmente, foi muito bem, mas depois de 2013 uma série de manifestações detonou insatisfações que as esquerdas não souberam trabalhar e faltou humildade em reconhecer que precisava rever postura e método.

As urnas são implacáveis em relação à conjuntura: se você não fizer a leitura correta da conjuntura vai sempre considerar o eleitor como ingrato. Mas, sinceramente, entre o diagnóstico de que o eleitor foi ingrato ou de que o político não entendeu as necessidades que cabem à política pública, eu fico com a segunda opção.

Luís Fernando Vitagliano (Foto: Instituto Lula)

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