Ao trazer à tona esse aspecto mais humanitário, singular e afetivo, o filme Ainda estou aqui se alimenta e retroalimenta das e nas lutas por memória e justiça, assim como as lutas contra os fascismos de hoje.
No blog da Boitempo
Vinte de janeiro é o dia de São Sebastiao, o padroeiro da cidade do Rio de Janeiro. Por isso, é feriado municipal. Trata-se do dia em que os portugueses tomaram a baía da Guanabara, até então de posse dos franceses, e que outrora fora compartilhada entre os tupinambás e toda sua cosmologia. O santo, como se sabe, tem flechas pelo corpo, o que revela as primeiras etapas da tortura que sofreu de agentes do exército romano. Exigia-se que renegasse sua fé, mas não o fez.
No 20 de janeiro de 1971, Rubens Beirodt Paiva acordara para um propício dia de banho de mar no verão carioca. Na capa do tradicional jornal diário Jornal do Brasil (JB) lia-se sobre o fato de que no ano anterior, 1970, pouco mais de 10% dos pedidos de habeas corpus haviam sido concedidos pelo Superior Tribunal Militar (STM). É STM mesmo, pois o STF encontrava-se amordaçado. A notícia explicava que o baixo número de concessões se devia ao fato de que o Ato Institucional número 5 (AI-5), de dezembro de 1968, havia derrubado esse direito “nos casos de crimes políticos”. Sinal dos tempos terríveis de ditadura, a notícia parecia antever que um corpo seria naquele dia novamente agredido, assassinado e desaparecido.
Nesse mesmo dia sua casa foi invadida, e Rubens Paiva levado para “prestar esclarecimentos”. Primeiro para o Quartel da 3ª. Zona Aérea, da Aeronáutica, e, depois, para o centro de tortura do Exército brasileiro, o DOI-CODI/RJ (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), que funcionava na rua Barão de Mesquita, na Tijuca. Sua casa permaneceu ocupada e, no dia seguinte, foram sequestradas sua esposa, Eunice Paiva, e sua filha de 15 anos, Eliane. A filha seria libertada no dia seguinte e Eunice apenas no dia 2 de fevereiro. Rubens Paiva nunca mais voltou.
No premiado e aclamado filme Ainda estou aqui, de Walter Salles (baseado no romance homônimo de Marcelo Rubens Paiva), a família Paiva vive os anos de ditadura, antes e, principalmente, após o fatídico momento em que o regime decide eliminar mais um opositor. O filme, com extrema sensibilidade e cuidado, retrata a real dimensão de uma ditadura ao mostrar os efeitos do ato violento na intimidade da família protagonista e na sociedade de modo geral. O enredo nos auxilia a entender o projeto social, econômico e político que ia muito além de uma “pausa” na democracia ou de um período de exceção com alguns “monstros ou malucos” atuando nos “porões”. Tratava-se de algo mais profundo, ameaçador e permanente.
O deputado Rubens Paiva já era odiado pelos militares desde antes do Golpe de 1964. Um ano antes, em 1963, havia participado, na Câmara Federal, da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), instituição privada financiada por órgãos do governo norte-americano para fazer propaganda anticomunista e defender uma intervenção militar no país. Por essa e outras, Rubens Paiva teve o mandato cassado pelo Ato Institucional número 1, logo após o Golpe.
Em 1971, o crime do qual foi acusado era o de manter correspondência com brasileiros exilados no Chile. As cenas do que viria a acontecer dentro do Quartel e, mais tarde, no DOI-CODI, foram narradas, a partir da reconstrução fundamentada em diversas fontes, pelo jornalista Elio Gaspari, no livro A ditadura escancarada:
Levaram-no para uma sala e acarearam-no com duas senhoras, Cecília Viveiros de Castro e Marilena Corona. Os três foram obrigados a ficar de pé, com os braços levantados. Era um fio que começara a ser puxado pelos serviços de informação do governo dois dias antes, em Santiago do Chile. Elas haviam visitado os filhos, tomaram o avião de volta ao Rio e foram presas ao desembarcar. Na bagagem de uma delas acharam pelo menos duas cartas endereçadas a Rubens Paiva. (…) Surrado, ficou estendido no chão. Horas depois anunciaram que iam levá-lo para o Aparelhão. Era o DOI da Barão de Mesquita. (…) Passava pouco de uma hora da madrugada do dia seguinte, quando Amílcar Lobo, aspirante a oficial e médico do DOI, foi acordado em casa e levado para o quartel. Subiu à carceragem do segundo andar e lá, numa das celas do fundo do corredor, encontrou um homem nu, deitado, com os olhos fechados. Tinha todo o corpo marcado de pancadas e o abdômen enrijecido, clássico sintoma de hemorragia interna. “Rubens Paiva”, murmurou duas vezes o preso, abrindo os olhos. (…) Na manhã seguinte o médico foi informado de que Rubens Paiva morrera. Pretendiam esquartejá-lo (2002, p. 326).
Na versão oficial divulgada pela imprensa a partir de uma nota do Exército, conforme consta do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), dizia-se que o deputado “quando era conduzido por agentes de segurança (…) teve seu veículo interceptado por elementos desconhecidos, possivelmente terroristas, empreendendo fuga para local ignorado”. Eunice Paiva recorreu ao STM por meio de alguns pedidos de habeas corpus, porém todos seriam recusados, tal como vimos na notícia do JB logo acima. O deputado Oscar Pedroso Horta ainda tentou promover uma apuração junto ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), mas, na sessão de análise do caso, seu presidente, o ministro da Justiça Alfredo Buzaid, desempatou a votação com decisão pelo arquivamento.
A própria existência da CDDPH mostra de modo explícito a estratégia da ditadura em se constituir de forma ambígua, com o objetivo de forjar uma forma social e institucional sólida, que pudesse durar além dos governos militares. A Comissão havia sido criada pelo Congresso Nacional em março de 1964, pouco antes do Golpe de Estado. Porém, foi em outubro de 1968, em meio à crise da repressão às manifestações estudantis, que o presidente general Artur da Costa e Silva nomeou os comissionários. Em sua instalação, o então ministro da Justiça, Antônio Gama e Silva, declarou que o funcionamento da CDDPH seria “uma resposta eloquente e afirmativa de que vivemos em um Estado de Direito”. O regime estava às portas de seu mais violento Ato, o AI-5.
Assim como na história de ambiguidades e continuidades da CDDPH — comissão que curiosamente sobreviveu em democracia até 2014, quando foi transformada em Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) —, o caso Rubens Paiva também evidencia o quanto de continuidade, de esvaziamento histórico e de impunidade vivemos em relação ao passado violento.
No único documento emitido em democracia pelas Forças Armadas sobre os mortos e desaparecidos da ditadura, de 1993, o relatório do Ministério do Exército (ainda não existia o Ministério da Defesa, criado somente em 1999) declarava que:
(…) consta que o nominado, quando conduzido para que indicasse a casa onde poderia estar um elemento que trazia correspondência de banidos que viviam no Chile, foi resgatado nas imediações do Alto da Boa Vista pelos ocupantes de dois carros que interceptaram a viatura em que viajava, após travarem tiroteio com a equipe que o escoltava […]. Em out./87, o Procurador Geral da Justiça Militar determinou o arquivamento do caso, por extinção da punibilidade do réu, com base na Lei da Anistia […]. Após o episódio da interceptação e fuga, não existe registro sobre o seu paradeiro (extraído do Relatório Final CNV, 2014).
A história que nos é apresentada no filme traz para um público mais amplo que a bolha da esquerda ao menos dois elementos chaves para a compreensão da ditadura: o impacto de conviver com um desaparecimento forçado e a luta de familiares de mortos e desaparecidos por memória, verdade e justiça. Esses dois “problemas” se constituem como as pedras no sapato de uma democracia vacilante e refém de estruturas hierárquicas, classistas, racistas e patriarcais.
Por mais que se tente “esquecer” essas histórias, proibir as homenagens e as lembranças da impunidade, certa arqueologia, própria das lutas nas quais não se negociam valores nem resultados, consegue escavar aquilo que era para permanecer enterrado.
Os desaparecidos e a luta pela verdade sobre o paradeiro, as circunstâncias, a localização e identificação dos corpos são o que tira o sono dos antigos e dos novos fascismos. Essas histórias, como a de Rubens Paiva, evidenciam a dinâmica, os responsáveis, as estratégias, a força conversadora das ambiguidades.
Ao trazer à tona esse aspecto mais humanitário, singular e afetivo, o filme Ainda estou aqui se alimenta e retroalimenta das e nas lutas por memória e justiça, assim como as lutas contra os fascismos de hoje.
Nós seguimos aqui perguntando: onde está Rubens Paiva? Onde está Amarildo? Onde está Davi Fiuza? Onde estão as inumeráveis vítimas da violência de Estado? Também seguimos questionando sobre quem são os responsáveis pelo sequestro, tortura, morte e desaparecimento de Rubens Paiva? Quem são os mandantes do assassinato de Marielle Franco? Quem são os responsáveis pela morte de Ryan? No fundo, e essa parece ser uma das potências do filme, essas lutas “menores” apontam para a macro estrutura da violência e desnudam as astutas estratégias que atuam dentro do Estado de Direito como modo de manter uma ambígua e eficaz indistinção entre o democrático e o autoritário.
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Foto: Divulgação
Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012) e no livro de intervenção O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (2018). Também assina um dos artigos do dossiê dedicado à Comissão da Verdade na revista Margem Esquerda n.19.
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O que resta da ditadura: a exceção brasileira
Bem lembrada na frase que serve de epígrafe ao livro, a importância do passado no processo histórico que determinará o porvir de uma nação é justamente o que torna fundamental esta obra. Organizada por Edson Teles e Vladimir Safatle, O que resta da ditadura reúne uma série de ensaios que esquadrinham o legado deixado pelo regime militar na estrutura jurídica, nas práticas políticas, na literatura, na violência institucionalizada e em outras esferas da vida social brasileira. O livro reúne textos de escritores e intelectuais como Maria Rita Kehl, Jaime Ginzburg, Paulo Arantes, Ricardo Lísias, Tales Ab’Sáber, Janaína de Almeida Teles e Jeanne Marie Gagnebin, que buscam analisar o que permanece de mais perverso da ditadura no país hoje.