Trabalho infantil recua, mas números ainda preocupam

Meta brasileira firmada com a ONU por meio dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável é de erradicação até o final de 2025. Para procuradora do Ministério Público do Trabalho, missão é quase impossível

Por André Antunes – EPSJV/Fiocruz

Levantamento do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) divulgado no início de novembro apontou uma redução de 14,6% no número de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos em situação de trabalho infantil no Brasil em 2023. Foram registrados 1.606.937 crianças e adolescentes nessa situação no ano passado, contra 1.881.062 em 2022. Chamado de ‘Diagnóstico Ligeiro do Trabalho Infantil – Brasil, por Unidades da Federação’, o levantamento sistematiza dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e mostra que a redução à nível nacional não se deu de forma homogênea e linear pelos estados do Brasil. Em 22 das 27 unidades da federação foi constatada redução no contingente de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, indo de 51,6% no caso do Amapá e Rio Grande do Norte a 6% no caso do Maranhão. O aumento ocorreu em cinco estados – Distrito Federal, Tocantins, Amazonas, Rio de Janeiro e Piauí – com taxas variando entre 6% no Piauí até 45% no Tocantins.

A legislação brasileira considera trabalho infantil todo aquele realizado por crianças e adolescentes abaixo da idade mínima permitida, que é de 16 anos, sendo autorizado o trabalho de adolescentes a partir de 14 anos na condição de aprendiz. No caso do trabalho noturno, perigoso, em condições insalubres ou atividades que constam da chamada lista TIP, das Piores Formas de Trabalho Infantil (baseada em uma convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) ratificada pelo Brasil em 2000) a proibição se estende aos 18 anos incompletos. Pouco mais de um terço dos casos registrados em 2023 foram de atividades consideradas entre as piores formas de trabalho infantil: 586 mil. Essas atividades foram responsáveis por 76,1% dos casos no Amapá e 16% no caso de Roraima.

Apesar da diminuição geral os números ainda são preocupantes. O número de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil em 2023, segundo o levantamento, equivale a 4,2% da população total nessa faixa etária naquele ano (38 milhões). Número considerado alto, principalmente se levada em conta a meta 8.7 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), da qual o Brasil é signatário, e que defende a erradicação do trabalho infantil em todas as suas formas até o final de 2025. Meta que tem sido reforçada na comunicação do governo sobre o tema.

Meta factível?

Luisa Carvalho Rodrigues, procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) e coordenadora nacional de Combate ao Trabalho Infantil e de Promoção e Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes (Coordinfância), avalia que é importante abordar a meta com o intuito de cumpri-la, mas avalia que será “muito difícil, para não dizer impossível” atingir esse objetivo. “O que não significa que a gente não deva, de fato, empreender o máximo esforço possível para isso. Porque é uma meta internacional e isso tem importância, não só pelo simbolismo, mas também pelo 1,6 milhão de crianças e adolescentes, ao menos, que estão diariamente tendo seus direitos violados”, diz Rodrigues. Segundo ela, isso significa fortalecer as iniciativas, políticas públicas e instituições que atuam no enfrentamento ao trabalho infantil. “Para isso a gente precisa de mais dados e informações. Destaco a importância do Censo de 2022, que tem um módulo sobre trabalho infantil, mas que ainda não foi divulgado. O Censo é importante porque ele tem dados muito mais abrangentes, com recortes municipais e permite terá realização de ações mais estratégicas e efetivas, para saber onde está acontecendo o trabalho infantil e erradicá-lo”, explica a procuradora.

O número de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil no Brasil vinha em uma trajetória descendente desde 1992, ano em que esse número bateu 7,8 milhões, de acordo com a série histórica da PNAD. Quase três décadas depois, em 2019, esse número era de 1,76 milhão, uma redução de 77%. Com a pandemia de covid-19, no entanto, esses números voltam a crescer, em parte devido à piora do cenário econômico provocado pela crise sanitária e a explosão do desemprego no país. De 2019 a 2022, o trabalho infantil cresceu 7%, chegando a 1,88 milhão de pessoas. A partir de 2023, os números voltaram a cair, chegando aos atuais 1,61 milhão.

Segundo Luísa Rodrigues, além das dificuldades econômicas e sociais impostas pela pandemia, o período foi de retrocesso no enfrentamento ao trabalho infantil também devido ao processo de desmonte de estruturas como a Conaeti, a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil. Criada em 2003, ela tem o objetivo de implementar as convenções nº 138 e 182 da OIT, que tratam, respectivamente, da idade mínima para o trabalho e da proibição aos piores tipos de trabalho infantil, além de coordenar a implementação do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil. Em 2019 a comissão foi extinta pelo decreto 9.759, junto com dezenas de outros colegiados ligados a administração pública federal, sendo recriada em 2020 por um decreto assinado pelo então presidente Jair Bolsonaro, que excluiu de sua composição entidades como o MPT e a OIT. “Foi uma recriação ‘para a inglês ver’, critica Rodrigues. “Ela foi recriada como uma comissão temática dentro do Conselho Nacional do Trabalho, então não tinha autonomia, foi enfraquecida. Não contava com a participação da sociedade civil, do sistema de justiça. Ela não era democrática”, completa. Em 2023 a comissão voltou a contar com representantes da sociedade civil, como o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, e do MPT e OIT. Sob a coordenação do MTE, a Conaeti é composta por representantes do poder público, de empregadores, trabalhadores, sociedade civil organizada e organismos internacionais. “O Brasil tem boas políticas públicas, espaços de diálogo, iniciativas para enfrentamento ao trabalho infantil. A gente sabe que nem sempre são tidas como políticas de Estado, e com as mudanças de governo sofrem retrocessos ou avanços, a depender da importância que se dá para essa pauta”.

Além da recomposição da Conaeti e retomada de políticas públicas de enfrentamento ao trabalho infantil, Rodrigues cita ainda a redução do desemprego como um fator importante para a queda na população de 5 a 17 anos em situação de trabalho infantil em 2023.  “Houve um aumento de geração de renda para as famílias, que acabam por não depender desse valor extra de um trabalho infantil. E houve um aumento na contratação de aprendizes pelas empresas, uma forma de trabalho protegido, que foca no direito fundamental à profissionalização casado com a educação.  Você garante uma inserção protegida no mercado de trabalho sem que seja uma situação de trabalho infantil, mantendo aqueles adolescentes na escola”, explica.

Mas a coordenadora nacional do Coordinfância ressalta que os avanços devem ser vistos “com cautela”. “A gente ainda precisa fazer muito mais para atingir a meta de erradicação, estamos muito longe disso”, afirma. Ela cobra, por exemplo, uma maior destinação orçamentária a órgãos como a Auditoria Fiscal do Trabalho, área do MTE que segundo ela vem sofrendo um processo de “precarização há muito tempo”. O sindicato nacional que representa a categoria inclusive tem denunciado um déficit de auditores no país, que ficou de 2013 a 2024 sem que fossem realizados concursos públicos para o cargo. Esse ano foi realizado um concurso com 900 vagas para auditores fiscais do trabalho no bojo do chamado ‘Enem dos concursos’. O déficit, no entanto, pode ser de mais de 3,5 mil desses profissionais. A OIT recomenda aos países um auditor a cada 20 mil pessoas economicamente ativas. Isso significa que no Brasil seriam necessários 5,4 mil auditores para dar conta de uma população economicamente ativa de 108,8 milhões de pessoas. O país conta atualmente com 1,9 mil auditores em atividade.

Segundo Rodrigues, também faltam recursos para os equipamentos do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) para lidar com o trabalho infantil. “A gente sabe que essas áreas têm pouco orçamento, então tem que ter destinação orçamentária prioritária para esses órgãos. A gente precisa, por exemplo, de uma lista suja do trabalho infantil, como existe no caso do trabalho escravo; a gente precisa do estímulo à aprendizagem profissional. Todos esses são aspectos importantes que a gente precisa fortalecer com prioridade para conseguir avançar no cumprimento dessa meta de erradicação do trabalho infantil”, cobra a procuradora.

Foto: EBC

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