Ao publicar artigo de Bolsonaro, Folha de SP tenta normalizar a ultradireita — assim como fez com o regime militar, dando apoio às perseguições políticas ou chamando-o de “ditabranda”. E até a esquerda institucional cai nessas armadilhas, como mostram dois casos recentes
“Aceitem a democracia”, diz o título de um “artigo de opinião” publicado no jornal Folha de São Paulo em 10 de novembro de 2024 pelo golpista e genocida Jair Bolsonaro. Por quais motivos um jornal de tal alcance referendaria tal publicação? “É a tentativa de normalizar a extrema-direita”, comentaram acertadamente colegas nos momentos seguintes à difusão do artigo, trazendo reflexões sobre o contexto político atual, em um quadro global de Mileis, Trumps, Marçais, Bolsonaros e tudo que suas ideias e ações concretizam.
Está longe dos propósitos deste texto aprofundar as necessárias discussões sobre bolsonarismo, conservadorismo, neoliberalismo ou sobre as disputas em torno do conceito de democracia. As linhas que seguem têm um objetivo que, embora modesto, pode contribuir com o debate: elas são menos sobre o autor do texto, e mais sobre o veículo que o recompensou com um espaço nobre de exposição. Afinal, essa não foi a primeira vez que a Folha de São Paulo tentaria normalizar a extrema-direita, tampouco que apoiaria regimes autoritários.
No ano passado, na véspera de completar mais um ano do golpe de 1964, o editorial do jornal, ou seja, o espaço em que o veículo manifesta aquilo que pensam seus editores-proprietários, já havia chamado atenção. Sob o sugestivo título “Bolsonaro de volta”, afirmava que “O bolsonarismo até poderia, se abandonasse a violência e o autoritarismo, liderar uma oposição saudável ao PT. Esse não é infelizmente, o desfecho mais provável.”
Agora, pasmem, essa foi a “versão melhorada” de uma anterior. Publicada na edição virtual e corrigida horas depois, o editorial precedente dizia o seguinte: “Opondo-se ao petismo, o bolsonarismo pode dar vigor à política brasileira – desde que abandone a violência, a atitude antidemocrática e a polarização irracional”.
Sabemos que a dissimulada reivindicação por democracia presente no título do artigo de opinião está longe de significar um “abandono da atitude antidemocrática”, tal como demanda o editorial. Nos dois momentos, estão em pauta estratégias para a “normalização” do bolsonarismo, dessa extrema-direita que compactuou com a morte de mais de 700 mil pessoas durante a pandemia covidiana, que planejou o golpe de 08 de janeiro de 2023, que faz constantes ataques às populações indígenas, negras, LGBTQIAPN+, e que defende a ditadura militar.
Não podemos esquecer que, ainda como deputado federal, em 2016, o voto de Jair Bolsonaro no processo de impeachment foi acompanhado da frase “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”. Talvez não seja demasiado ressaltar que esse “coronel” homenageado por Bolsonaro é um dos maiores torturadores da ditadura militar. As sequelas deixadas pela repressão e pela tortura permanecem até hoje na sociedade brasileira, como podemos observar em muitas pesquisas acadêmicas sobre o tema, em testemunhos publicados e no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
A tortura foi uma prática sistemática durante a ditadura. Homens, mulheres e crianças sofreram torturas. Lésbicas, bissexuais, gays, travestis. A ditadura militar também sequestrou, torturou e assassinou pessoas indígenas, camponesas, negras. O Relatório Final da CNV é ambíguo nesta questão. Divulgado no final de 2014, as mortes e desaparecimentos teriam atingido 434 pessoas. No entanto, levantamentos feitos por seus Grupos Temáticos apontam quase 1.200 camponeses e mais de 8 mil indígenas mortos durante a ditadura. O belo livro “Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura”, escrito pelo jornalista Rubens Valente e publicado pela editora Companhia das Letras em 2017, é uma referência inescapável sobre o tema.
Diante dessas informações, seria possível amenizar o que foi a ditadura no Brasil? Para a Folha de São Paulo, sim. Basta recuperar o editorial “Limites a Chávez”, de 17 de fevereiro de 2009, no qual o jornal usa o termo “ditabranda” para dizer que, no Brasil, a ditadura não teria sido “dura”, mas “branda”.
Vamos ao dicionário. Brando: aquilo que se caracteriza pela docilidade, pela flexibilidade; afável. Que reflete suavidade, doçura. De pouca intensidade. Macio.
O que a ditadura deveria ter feito para ser considerada “dura” pela Folha de São Paulo? Talvez compactuar com a morte de 700 mil pessoas? Bem, o já citado editorial de 31 março de 2023 dá a entender que nem isso seria o suficiente.
Vale pontuar que o Grupo Folha, dono do jornal, não deu apenas apoio financeiro e ideológico ao golpe de 1964, mas apoio material à repressão contra quem fazia a oposição à ditadura. Recorrendo novamente ao Relatório Final da CNV, encontramos a confirmação de que a empresa emprestava seus veículos para a Operação Bandeirante (Oban), um centro de investigações do Exército que combatia as organizações de esquerda. Essas denúncias já haviam sido assinaladas pela excelente pesquisa de doutorado de Beatriz Kushnir, publicada pela editora Boitempo em 2004 com o título “Cães de Guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à constituição de 1988”.
O recorte acima não deve levar à falsa conclusão de que a imprensa hegemônica (ou parte dela) seria a única responsável pela normalização da extrema-direita – ainda que os ataques protagonizados pela Folha de São Paulo e por outros veículos de comunicação aos governos petistas tenham fortalecido uma direita extremista, que, pouco tempo depois, se voltaria contra essa própria imprensa. De todo modo, o crescimento da extrema-direita e a propagação de ideais antidemocráticos fazem parte de um panorama internacional, no qual há uma intrínseca combinação entre os interesses do mercado e a moralidade conservadora – combinação esta característica do neoliberalismo, como ensina Wendy Brown.
Além disso, quando voltamos à conjuntura nacional, o cenário é bastante complexo e encontramos até mesmo dentro da esquerda institucional ações que contribuem para a normalização da extrema-direita. Citemos dois exemplos.
O mais recente foi a participação de Guilherme Boulos, então candidato à prefeitura de São Paulo pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), em uma sabatina promovida por Pablo Marçal, candidato do Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB) que ficou em terceiro lugar no primeiro turno da capital paulista e cuja plataforma e ações políticas são notadamente coadunadas à extrema-direita.
O segundo exemplo vem do governo federal. Em março deste ano, o presidente Lula, do Partido dos Trabalhadores (PT), cancelou solenidades programadas e impediu a realização de cerimônias relacionadas aos 60 anos do golpe de 1964. Em entrevista para uma rede de televisão no final de fevereiro, chegou a dizer que não ficaria “remoendo” esse passado e que o golpe já faria “parte da história”. Mais que evitar atritos com os militares, o Lula os defendeu: “os generais que estão hoje no poder eram crianças naquele tempo. Alguns acho que não tinham nem nascido ainda naquele tempo”, disse na ocasião.
A ascensão, a consolidação e a normalização da extrema-direita nos deixam com desafios imensos, comprometendo nossa imaginação política. O reconhecimento dos diferentes responsáveis por essa situação é um passo fundamental para o enfrentamento da atual distopia neoliberal.
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Danielle Tega – Professora da UFG. Autora de “Tempos de dizer, tempos de escutar: testemunhos de mulheres no Brasil e na Argentina” (Intermeios/Fapesp, 2019).
Imagem: Luciano Salles / TaquiPraTi