Integrantes do Instituto de Direito Sanitário traçam um histórico do financiamento do SUS, em contexto turbulento de ameaças de cortes em gastos sociais. Alertam: momento exige coragem política para evitar os retrocessos que tenta impor a Faria Lima
por Gabriel Brito, em Outra Saúde
O ano político brasileiro termina com tensões que antecipam as disputas que marcarão a segunda metade do governo Lula. Com o triunfo eleitoral das direitas, ficou flagrante o movimento, amplamente ecoado pela mídia comercial, de luta pelo orçamento de 2025. O debate divide o próprio governo, a opor uma agenda de disciplina fiscal, apoiada pela Fazenda, às áreas sociais. No meio disso, um Congresso ávido pela garantia da farra das emendas, uma notória contradição que desmoraliza a pauta de “austeridade” e é responsável pelo impasse que rasgou todos os prazos de publicação da Lei Orçamentária de 2025.
Por ora, a ministra Nísia Trindade não entrou no cenário, protagonizado por outros colegas em oposição a cortes orçamentários que afetariam áreas essenciais. No entanto, a saúde é alvo central deste fiscalismo que praticamente cria um poder executivo paralelo nas mãos do legislativo e poupa o brutal serviço da dívida pública amparada em juros altíssimos. Afinal, trata-se do ministério de maior orçamento.
Para profissionais e ativistas que defendem o SUS, a síntese é simples: não é um direito humano essencial que se submete ao orçamento, mas o inverso. “Desde a implantação do SUS o direito à saúde acabou pautado pela questão do financiamento, e que se arranjasse com pouco dinheiro. E é importante realizar esse casamento da pauta econômica com o direito à saúde no sentido de afirmar que é a pauta econômica que deve se submeter aos direitos fundamentais”, falou Lenir Santos, advogada e economista com pesquisa em saúde, ao Outra Saúde.
A construção do conceito
Como explica Fernando Aith, doutor em Saúde Pública e mestre em filosofia do direito, tal noção foi fundada com o advento do SUS e sua afirmação foi um processo evolutivo que percorreu todos os governos. “Durante muito tempo, o financiamento da saúde era dado pelo orçamento da Seguridade Social e disputava recursos com a Previdência Social. Até que o Adib Jatene virou ministro da Saúde, viu que a saúde era muito subfinanciada e não dava para montar o SUS com os recursos da Seguridade Social que estavam sobrando para a saúde. Foi aí que ele criou a CPMF”, explica.
Com passagem pelo Ministério da Saúde nos anos 90, lembra que tal debate foi marcante no governo FHC, a opor figuras como Pedro Malan e o então ministro da pasta, José Serra. “Vimos movimentos muito fortes de consolidação do direito sanitário no Brasil, com uma produção legislativa muito forte de proteção à saúde, a exemplo da Lei da Vida, a Lei da Injeção, a Lei dos Embriões”, resgata Aith.
“Isso começa a ser forte com a epidemia de aids no Brasil, no final da década de 80, começo da década de 90 e ao longo da década de 90. Os primeiros antirretrovirais eram muito caros e a doença alcançava a classe média e a média-alta, pessoas com maior acesso à justiça, mais conhecedoras da nova Constituição e dos novos direitos. Quando elas viram que o medicamento era inacessível, começaram a levar demandas ao judiciário pedindo que o SUS pagasse. E o judiciário, numa mudança de postura, começou a definir, em nome do direito à saúde, a prestação direta do Estado de serviços ou do fornecimento de medicamentos específicos a depender da necessidade de saúde de quem demandava. Isso foi um momento chave da afirmação conceitual do direito à saúde”, explicou Aith.
Ameaça de retrocesso
Com a retomada da direção do Estado pela visão de mercado, em especial a partir de 2016, alguns debates parecem ter voltado aos estágios iniciais. O tema serve para se observar que não é só o bolsonarismo que impõe retrocessos ao pacto democrático e constitucional com seu golpismo aberto. Entrevistas como a de Armínio Fraga à Folha, a dizer que o SUS não cabe no orçamento, são uma velha cantilena que voltou com força e precisa ser desconstruída novamente.
“Ele deixou nas entrelinhas que este direito vive a reboque do orçamento. Quando fala que o SUS deve ser híbrido entre público e privado, quer dizer que deve ser um sistema de saúde para pobres. O sistema já tem hibridismo entre público e privado, mas quando se requenta essa pauta é porque querem uma fatia maior para o privado”, atacou Lenir Santos.
Neste momento, o movimento sanitarista reitera a defesa da manutenção do orçamento a saúde sem tergiversações. Paralelamente, pautas como o fim da escala 6×1 que une trabalhadores precarizados e ganhou tração na opinião pública podem oferecer a luz que tire o governo do cerco do mercado.
Como alerta Fernando Aith, são tempos que exigem coragem política, pois a radicalização ideológica não é exclusiva de fanáticos como o autor do atentado ao STF na noite do dia 13 de novembro. “Eu nunca tinha visto tão abertamente o discurso (de se mexer no piso orçamentário da saúde), mesmo no âmbito do Ministério da Fazenda, inclusive a afetar a educação, que antes não entrava no alvo. Apesar dos discursos de Lula de que Saúde é investimento, vejo uma reação ainda bem tímida do ministério”.
Nota:
As entrevistas que compõem esta matéria foram feitas no contexto do congresso Direito Sanitário e Economia da Saúde, realizado pelo Instituto de Direito Sanitário (Idisa) nas dependências da Unicamp, entre 14 e 16 de outubro. Ativista do SUS e presidente do Idisa, Lenir Santos foi uma das organizadoras do evento que reuniu dezenas de palestrantes, em encontro que fortaleceu a defesa do direito à saúde em suas formas práticas, isto é, por meio de sua ligação objetiva com as decisões do Estado na destinação da riqueza social.