Livro recém-lançado analisa o abandono de projeto nacional e a desesperança no século XXI. A partir da Era Digital, o Antropoceno, a mudança geopolítica e demográfica, propõe pensar novos rumos para o Brasil e romper a estrutura de poder conformada pela cordialidade
Por Marcio Pochmann e Luís Fernando Vitagliano, em A Terra é Redonda
Ao final do primeiro quarto do século XXI, certa desesperança voltou a proliferar no Brasil. Não seria novidade, pois nos parece perceptível que após a prevalência das várias experiências de mobilização popular – conforme mais recentemente registradas nos anos de 1980 (campanha das Diretas Já, 1983-1984), 1990 (Movimento dos Caras-Pintadas, 1992) e 2010 (Jornadas de Junho, 2013), vem uma onda de acomodação política e queda das expectativas sociais, políticas e econômicas de futuro.
Essa desesperança pode ter começado com a perda de perspectiva de um projeto nacional de desenvolvimento, sem um evento ou data precisa para localizá-la, mas um processo de médio e longo prazo que passa pelo reformismo progressista sempre postergado. Da supressão macro de alternativas ao establishment neoliberal ao plano micro do desalento gerado por multidões de sobrantes e sem destino desintegradas que coloca na berlinda a Era Industrial.
O emprego puxado pelas condições fabris de trabalho, o operariado e a produção perdem espaço diante da prevalência primário-exportadora na divisão internacional do trabalho reeditada pela era digital. Na forma inadequada de adesão à globalização, restou ao setor terciário da economia a proliferação de atividades de sobrevivência próprias da economia popular crescentemente disputada pela gestão social da pobreza desencadeada pela política de emergências governamentais, que foi decorado com a ação do novo sistema jagunço urbano de fanatismo religioso e banditismo social.
Tal qual ocorreu com os processos de êxodo rural na transição do agrarismo para a indústria, a massa sobrante de trabalhadores marginalizados deve ser, mas nem sempre é, uma preocupação do Estado. Isso porque inevitavelmente afeta não apenas as condições materiais de um território nacional, como também desestabiliza as formas de sociabilização e os laços sociais que dão solidez à nação.
No atual contexto, identificamos que as propostas em curso se orientam em torno de uma suspensão do futuro. Ou seja, da ausência de propostas para uma nova inserção de sociabilidade interna e participação externa do Brasil. A opção pela definição de atraso tem um problema sério que diz respeito à ausência de perspectiva para o futuro, se ignorar o fato de que o futuro é inexorável. Mas, é decisiva a ordem pela qual se moderniza uma sociedade porque o tempo define o lugar que cada nação na divisão internacional do trabalho. Ao atrasar o futuro, o Brasil sentencia sua posição à marginalidade da ordem econômica internacional.
Concomitante com a desesperança veio, porém, o avanço da extrema direita; tal como reação conservadora ao protagonismo da rebeldia popular. Recorrentemente, no Brasil (e no mundo), a extrema direita buscou ocupar espaços de redefinição de futuros, sempre que abertos ao longo do Período Republicano. Na década de 1930, por exemplo, a ascensão do movimento integralista (1933-1937) e da organização nazista (1928-1938), assim como nos anos de 1960 com a prevalência dos movimentos em defesa da tradição, família, Deus e propriedade (1960-1968). Na atual conjuntura, a disputa pelo Futuro está em suspender o futuro como projeto.
Enquanto a direita conservadora disputava alguns aspectos da sociedade por meio de propostas para as classes trabalhadoras na primeira metade do século XX, a direita da segunda metade do mesmo século se concentrava nos costumes. O neoliberalismo do século XX foi tanto social como econômico e participava da aliança neoliberal internacional. Mas, tanto no passado como no presente, a direita extremada (com o objetivo de eliminar o inimigo) representava apenas uma menor parte da direita – que crescia conforme a época e a crise.
Na década de 2010, contudo, outro momento em que foi possível a ascensão da extrema direita veio embalado pela perspectiva sinistra de uma espécie de cancelamento do futuro da nação. Ou, pelo menos, do futuro que se deslumbrava para o Brasil dos fundadores do pensamento social brasileiro para a formação nacional, projetado por figuras como Joaquim Nabuco, Manuel Bonfim, Sílvio Romero, ou mesmo os mais debatidos como Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Mário Pedrosa, Florestan Fernandes, para ficar apenas em alguns. O que transforma a atual mudança de época numa profusão de respostas imediatistas.
O atraso do futuro e o “homem cordial” pretende cobrir essa nova época histórica do Brasil. Da desistência de um projeto nacional que se abre com a formação de um pensamento nacional brasileiro representada por uma produção intelectual robusta até a ausência de perspectivas para o futuro e a preocupação imediata e de curto prazo de toda uma literatura que não se arrisca a propor alternativas ao próprio capitalismo.
O Brasil moderno não é uma imagem isolada. Assim como o Brasil colonial se olhava para a Europa como um espelho que projetava o futuro. O passado colonial nada nos dizia. O projeto de Futuro era um assalto da tradição que não tínhamos – ocidental e modernista – como o manifesto de 1922. Embora tardio, o projeto de modernidade ocidental segue sendo identificado pelas classes dirigentes como o horizonte civilizatório a alcançar as pontas mais distantes do território nacional. Assim, as visões presentistas como resíduo do passado colonial parecem professar o aprisionamento espontâneo à hegemonia do pensamento modernocentrista.
Acontece que, nos dias de hoje, o sonho progressista dos modernistas para o Brasil parece estar atormentado pelas disputas entre a anomia coletiva no campo das esquerdas e a heteronomia individualista defendida pela extrema direita. Na perspectiva histórica de Sérgio Buarque de Holanda, as raízes do mal-estar nacional estariam na cordialidade. Diferentemente da racionalidade instrumental, a afabilidade corresponderia tanto pela usurpação de domínio privado sobre a esfera pública como a encarnação do personalis- mo político de favores próprios do Estado patrimonialista.
Pela contaminação sempre presente de traços formativos do passado colonial escravista, a inflexão da trajetória percorrida pelo Brasil desde o último quarto do século XX parece não ter sido percebida integralmente. Os artistas, em geral mais sensíveis à marcha dos acontecimentos, anteciparam com ousadia e coragem o que as classes dirigentes secundarizavam, sobretudo pela irrelevância da política sob a hegemonia dos interesses econômicos e financeiros a capturar o Estado.
Antevisões especiais a respeito dos sinais de ruína da sociedade industrial brasileira podem ser encontradas, por exemplo, em Ignácio de Loyola Brandão (Não verás país nenhum, 1981), Chico Buarque de Holanda (Estorvo, 1991) e Paulo Lins (Cidade de Deus, 1997), apenas para citar alguns. No âmbito do pensamento crítico, o marco conceitual dos intérpretes da formação nacional passou a ser confrontado pela emergência do marco conceitual da deformação.
O atraso do futuro e o “homem cordial” busca narrar a trajetória que decorre da mudança de época pelo qual o Brasil se encontra no primeiro quarto do século XXI. O principal sintoma desse processo é justamente o efeito que se tem num dos processos mais arraigados na sociedade brasileira: a prática da cordialidade. Para apresentar o fio narrativo do processo em curso, destacam-se os quatro fundamentos estruturadores que desafiam a contextualização do atraso do futuro nacional e ajudam a explicar a perplexidade social que nos aprisionou no presentismo.
Inicialmente, a passagem das sociedades urbanas e industriais foi protagonizada pelo projeto de modernidade ocidental dos últimos 500 anos para a nova Era digital. Com isso, o eurocentrismo, que se fundamentou pelo domínio da guerra moderna e da indústria cultural própria da Era Industrial, perde sentido diante do avanço da revolução informacional em outras sociedades submetidas à realidade impositiva divisão internacional do trabalho.
De um lado, o bloco dos países produtores e exportadores de bens e serviços digitais e, de outro, as nações consumidoras-importadoras das mesmas mercadorias e dependentes tecnologicamente a fundamentar o neosubdesenvolvimentismo. No limite, o neocolonialismo à espreita da dominância rentista da financeirização da riqueza e dos recursos naturais e minerais a desmontar a antiga centralidade da relação capital-trabalho e a reavivar a relação débito-crédito emergente das multidões de sobrantes e sem destino futuro;
Em sequência, o fenômeno do Antropoceno, ainda pouco formulado enquanto teoria, demonstra que entramos em uma nova era geológica onde a ação humana é decisiva para as transformações da natureza. Sob o paradigma do Antropoceno, parte significativa do debate sobre mudanças climáticas e aquecimento global reconhece que é necessária a mudança de perspectiva em relação ao uso dos recursos naturais, mas o impacto econômico e na distribuição de recursos trava uma batalha que tem como resultado a paralisia intelectual.
Nesse sentido, a perspectiva trazida pelo Papa Francisco (Economia de Francisco e Clara, Laudato Si) sobre o sistema econômico que mata no cenário mundial da desigualdade, pobreza e consumo predatório dos recursos naturais converge com a reação latino-americana e caribenha ao projeto de modernidade ocidental. Assim, o conceito do bem viver e a positivação dos direitos da natureza (Pachamama) evidenciam a busca pelo desenvolvimento como liberdade e de harmonia na relação entre ser humano e planeta Terra.
Da mesma forma, o curso da mudança do centro dinâmico mundial do Ocidente para o Oriente. Em pleno primeiro quarto do século XXI, mais de 2/3 da expansão econômica concentra-se no Oriente, tendo o Sul-Global, não mais o Norte-Global, como dinamismo da economia-mundo.
A maior parte do comércio mundial já não atravessa mais o oceano Atlântico em direção à Europa. O passado da centralidade do Mediterrâneo ficou para trás, deixando de ser o principal eixo de navegação do mundo. Cada vez mais, o oceano Pacífico assume a centralidade como eixo dinâmico dos fluxos globais de bens e serviços assentados no protagonismo do Oriente, especialmente chinês, o que se aproxima a certa “normalidade histórica” do que prevalecia antes do século XVI.
Por fim, porém não menos importante, o aparecimento do novo regime demográfico que tem negado a trajetória iniciada no século XVIII de aceleração contínua do aumento populacional, pressionado pela queda na fecundidade e até o possível decréscimo da população mundial. Menos jovens e mais concentrados em categorias específicas são características populacionais que estão mudando a geografia mundial. Universidade da terceira idade, longevidade com métodos e estudos médicos mais avançados, nascimentos em queda no Ocidente com crescimento populacional negativo representam novos desafios demográficos; sem contar com o fato de que somente em dois países onde se localiza o distanciamento do ocidentalismo.
Esses quatro elementos conceituais são estruturantes do debate, fazem parte da fundamentação que usamos para definir a mudança de época e, portanto, estão presentes em todos os momentos dessa narrativa: desde a redefinição do lugar do Brasil na divisão internacional do trabalho até a crise política sobre o futuro incorporada pelo presentismo que contamina a política contemporânea.
Diante do estreitamento das possibilidades do progresso material, o neoconservadorismo não se constituiu fenômeno isolado. Com a perda de energia do projeto de modernidade ocidental, o progressismo de vanguarda pareceu ter sido expirado, cada vez mais desassistido de criatividade. Sem mais conseguir validar o horizonte de expectativas superiores de realizações ilimitadas à coletividade, prevaleceu o impulso político à individualidade da valoração hedonista e narcisista catapultada pelas inovações das tecnologias de comunicação e informação. O que nos leva a um terceiro elemento da derrocada do projeto ocidental: a indústria cultural e a dominação estética do Ocidente baseado na exaltação do indivíduo.
Dessa forma, a estética dominou, seja pela busca da beleza extrema, da vaidade consumista e da ostentação nas redes sociais. O individualismo competitivo em torno de micropoderes nas relações pessoais fundamentou o prazer pessoal imediato a dominar a perspectiva da coletividade, desconsiderado de suas consequências.
Em grande medida, os imperativos econômicos e as mudanças nas formas de intervenção estatal fizeram como que a pauta do progressismo fosse sendo deslocada das lutas de modernização socioeconômica das classes para a modernidade estética. Assim, o esvaziamento da política do pertencimento de classe a empolgar o futuro de transformação de realidades facilitou o deslocamento para a redefinição das identidades reparatórias do passado frente às consequências sociais ditadas pelas exigências dos ajustes econômicos aos limites do projeto de modernidade.
Este livro vai tratar dessa ambivalência entre a deformação e o abandono de um projeto de desenvolvimento, não apenas econômico, mas social, político, ambiental, cultural, nacional e civilizatório. A sobrevivência do “homem cordial” das catacumbas do agrarismo brasileiro como uma proposta de acomodação do atraso diante do projeto nacional de desenvolvimento representado pela Era industrial brasileira na verdade significou sua deformação e acomodação aos interesses das elites tradicionais e conservadoras. De outro lado, a mudança em toda órbita internacional, não apenas recente, mas desde o neoliberalismo dos anos 1980 do século passado, forçam o Brasil a buscar seu lugar ao mundo.
Em função das incertezas de futuro superior, compatível com os riscos de regressão e relação ao passado, ganhou espaço o desejo por certezas crescentemente focadas no plano do existencial. Para tanto, o papel atuante e crescente tanto da retomada das tradições naturalistas como da renovação religiosa a convergir no lastreamento da ascensão neoconservadora.
Uma nova e inédita perspectiva de o Brasil enfrentar em novas bases os traumas herdados do passado, alterando profundamente a estrutura de poder conformada a partir do conceito de “homem cordial”. Em se confirmando essa via, a oportunidade de haver rompimento com o predominante neoconservadorismo se torna efetiva, desde que o protagonismo do progressivo seja recuperado e sustentado na singularidade própria da transformação digital em curso na sociedade brasileira.
Para tanto, o resgate do pensamento social crítico assume protagonismo necessário. Sem atacar o existente, busca discernir e ampliar o conhecimento em busca de novos horizontes conceituais para a interpretação contemporânea do Brasil frente à marcha histórica que se impõe atualmente, movida por uma profunda mudança de época.
Atualmente, para uns poucos ganharem e muitos perderem, está em curso um projeto nacional de deliberada recusa da perspectiva de futuro que se converte na corrente de via única. Atrasar o debate e impedir que a esperança se torne verbo e mobilize as forças sociais progressistas é o projeto no qual nos opomos. Por isso, apresentamos esta obra na perspectiva oposta: queremos abrir a discussão e apresentar uma modesta contribuição ao debate nacional sobre o Brasil e seus rumos possíveis.
Movidos por esse impulso, apresentamos o presente livro. Boa leitura.
Marcio Pochmann, professor titular de economia na Unicamp, é o atual presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Autor, entre outros livros, de O sindicato tem futuro? (Expressão Popular). [https://amzn.to/416ZDtN]
Luís Fernando Vitagliano é doutor em “Mudança social e participação política” pela EACH-USP.