Escassez hidrorracial: é normal não ter acesso à água?

Estudo aponta que, no Rio de Janeiro, a população negra é a mais afetada pela interrupção frequente no abastecimento de água tratada. O nome disso é racismo ambiental

Hosana Silva*, Le Monde diplomatique

Armazenar água, saber o calendário de interrupções no abastecimento, adaptar a organização das atividades domésticas para dar conta da vazão fraca nas torneiras, tudo isso são aprendizados comuns na vivência da população periférica brasileira — majoritariamente negra. Acesso à água, que é um direito fundamental estabelecido pela Organização das Nações Unidas e um direito de todos brasileiros (segundo a Lei Federal nº 11.445/07) é determinado, principalmente, pela localização onde moramos.

Na última semana, a falta de água afetou a população do Rio de Janeiro e de mais sete cidades da Baixada Fluminense, deixando milhares de pessoas sem abastecimento por vários dias. O corte no fornecimento foi justificado pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE) e pela concessionária Águas do Rio como consequência da necessidade de operações de manutenção no Sistema Guandu, que abastece a região.

O comunicado da concessionária Águas Rio, emitido em 25/11, alertou a população de que o Sistema Guandu seria paralisado pela CEDAE, interrompendo o abastecimento durante um dia. Diante do não cumprimento deste prazo, a empresa emitiu comunicados seguintes com a promessa de reestabelecimento do sistema até o último final de semana de novembro. No entanto, este prazo também não foi cumprido, impondo aos moradores um longo período de espera para a normalização do fornecimento de água.

A paralisação gerou impactos em diversos setores. Comércio, universidades, escolas, tribunais e até mesmo hospitais precisaram suspender atividades devido à falta de água. O cenário se torna ainda mais crítico diante da onda de calor que atingiu a região nas últimas semanas. “Tivemos que nos deslocar para tomar banho na casa de parentes”, conta Sophia Santos, moradora do Morro do Turano, zona norte da capital fluminense. Ela ressalta que contratar o serviço de caminhão-pipa não foi uma opção viável: “O veículo não consegue chegar ao pico da comunidade e não temos dinheiro para isso, agravando ainda mais as dificuldades enfrentadas”, concluiu.

Contudo, o estudo Justiça Hídrica e Energética nas Favelas, da Rede Favela Sustentável, demonstrou que esta é uma realidade habitual nas periferias cariocas. A análise aponta que 17% dos moradores de favelas do Rio de Janeiro convivem com interrupções no fornecimento de água, pelo menos, duas vezes na semana. Isso significa que mais de 270 mil pessoas são afetadas nas 15 comunidades analisadas na região metropolitana.

Segundo a pesquisa sobre a escassez hidroracial publicada pela Revista Política e Planejamento Regional, o conceito de racismo ambiental dá conta de explicar este cenário de escassez hídrica imposta à população periférica e negra no Rio de Janeiro, compreendendo que é discriminação racial impor sistematicamente a falha no suprimento de um direito fundamental, que é o acesso à água tratada. Este entendimento é traduzido em números no Censo Demográfico de 2022, publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no qual pretos e pardos representam 72% da população sem acesso adequado à água, enquanto a população branca soma 24%.

A Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas estabeleceu, em 2010, o acesso à água limpa como direito humano essencial para gozar plenamente a vida e todos os outros direitos humanos, no entanto, no Brasil, a água ainda não é classificada como direito fundamental. A fim de endereçar este problema, a “PEC da Água”, como foi apelidada a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 6/2021, que altera o artigo 5º da Constituição Federal de 1988, para nele inserir o acesso à água potável como um direito e garantia fundamental, tramita neste momento na Câmara dos Deputados. Aprovado pelo Senado em 2021, a proposta está parada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).

Enquanto pobres e pretos não tiverem acesso à água de qualidade, no país com a maior reserva de água doce do mundo, o uso de um bem fundamental, seguirá impedindo a justiça climática e racial do Brasil.

*Hosana Silva é uma mulher negra, nordestina, mestra em Políticas Públicas e Governo pela FGV. E também, repórter do Centro Brasileiro de Justiça Climática (@cbjc_br).

Foto: Reprodução/Esquerda Diário

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