Missão impossível?

Brasil tem a meta de erradicar o trabalho infantil até o final de 2025, compromisso firmado com a ONU em 2015. Especialistas, no entanto, veem a meta como distante, e cobram mais investimentos na fiscalização e em políticas públicas de assistência social, educação e geração de renda

André Antunes, EPSJV/Fiocruz

Erradicar o trabalho infantil, em todas as suas formas: esse é o desafio do Brasil até o final deste ano de 2025 que se inicia. Trata-se de um dos compromissos firmados há uma década, quando o país se tornou signatário dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030, um plano de ação da Organização das Nações Unidas (ONU) adotado por 193 países em setembro de 2015.

Mas números recentes divulgados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (Pnad Contínua) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, apesar de o número de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil ter voltado a cair em 2023 após um crescimento durante a pandemia de covid-19, os dados ainda são preocupantes. E, segundo as instituições brasileiras envolvidas nesse enfrentamento, tornam a missão de acabar com o trabalho infantil até o final deste ano uma missão muito difícil.

Objetivo ousado

Essa é uma das 169 metas distribuídas em 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, que envolvem desde a erradicação da pobreza e da fome até a garantia do acesso à Saúde e Educação, passando pela proteção ao meio ambiente e o combate às mudanças climáticas e pela promoção do trabalho decente, que é o oitavo objetivo. A meta 8.7 é a que cobra “medidas imediatas e eficazes” para erradicar não só o trabalho infantil, mas também o trabalho forçado, a escravidão moderna e o tráfico de pessoas. Para o trabalho infantil, no entanto, foi estabelecido um prazo mais curto que para as demais metas, que podem ser cumpridas até 2030. “É das poucas metas em que isso acontece. Havia na época uma grande expectativa de que isso seria possível”, explica Maria Claudia Falcão, coordenadora do Programa de Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “Essa meta é muito importante, especialmente nessa agenda global, em que pela primeira vez aparece o tema do trabalho, ausente, por exemplo, dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, do início dos anos 2000”, completa. Só que no meio do caminho havia uma pandemia, diz ela.  “Acabou dificultando o que já era um grande desafio, em razão do aumento global do desemprego e o fechamento das escolas, fatores que catalisam o trabalho infantil. Dificilmente o Brasil e o mundo conseguirão alcançar essa meta em 2025”, lamenta a representante da OIT. Na verdade, a organização identificou um aumento do trabalho infantil em nível global: em 2021 havia 160 milhões de jovens entre 5 e 17 anos em situação de trabalho infantil em todo o mundo, 8,4 milhões a mais do que os dados da estimativa anterior produzida pela OIT, de 2016.

Retrocessos

No Brasil não foi diferente. Por aqui, a legislação considera trabalho infantil aquele realizado por crianças e adolescentes abaixo da idade mínima permitida pela Constituição Federal, que é de 16 anos, sendo autorizado o trabalho de adolescentes a partir de 14 anos na condição de aprendiz. No caso do trabalho noturno, perigoso, em condições insalubres ou em atividades que constam da chamada lista TIP, as Piores Formas de Trabalho Infantil, a proibição se estende aos 18 anos incompletos. O número de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil no Brasil vinha caindo desde 1992, ano em que bateu 7,8 milhões, de acordo com a Pnad.

Vinte e sete anos depois, esse número era de 1,76 milhão, uma redução de 77%. Com a crise sanitária provocada pela covid-19, os números voltaram a crescer, chegando a 1,88 milhão em 2022, um aumento de 7%. Uma em cada 20 pessoas entre 5 e 17 anos estavam em situação de trabalho infantil no país ao fim da pandemia.

Luísa Rodrigues, procuradora e coordenadora nacional de Combate ao Trabalho Infantil e de Promoção e Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes do Ministério Público do Trabalho (Coordinfância/MPT), argumenta que, além da pandemia, o retrocesso também se deu devido a um desmonte de estruturas que contribuíram para a queda na taxa de trabalho infantil ao longo das últimas décadas, como a Conaeti, a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil. Criada em 2003 com o objetivo de implementar as convenções da OIT que tratam do trabalho infantil e coordenar a implementação do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil, a comissão foi extinta pelo decreto 9.759 em 2019, junto com dezenas de outros colegiados ligados à administração pública federal, sendo recriada em 2020 por um decreto do então presidente Jair Bolsonaro, que excluiu de sua composição entidades como o MPT e a OIT. “Foi uma recriação ‘para inglês ver’”, critica Rodrigues. “Ela foi recriada como uma comissão temática dentro do Conselho Nacional do Trabalho. Não contava com a participação da sociedade civil, do sistema de justiça. Não era autônoma nem democrática”, completa. Em 2023 a comissão voltou a contar com representantes da sociedade civil, como o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), e também do MPT e da OIT. “O Brasil tem boas políticas públicas e espaços de diálogo para enfrentamento ao trabalho infantil. Nem sempre são tidas como políticas de Estado, e com as mudanças de governo sofrem retrocessos ou avanços, a depender da importância que se dá a essa pauta”, pondera Rodrigues.

Movimentações recentes parecem indicar que a pauta voltou a ganhar importância. No início de dezembro, o MTE foi à Itália representar o governo brasileiro em uma reunião da OIT referente a uma campanha lançada pela entidade para mobilizar esforços para o cumprimento da meta 8.7 dos ODS. A campanha inclui a seleção de “países pioneiros”, que se candidatam voluntariamente para reforçar o compromisso com essa pauta em âmbito global. Para serem aceitos, os países precisam submeter à OIT um plano de como acelerar a erradicação do trabalho infantil, definindo prioridades e indicadores nacionais para medir o progresso. “O Brasil foi aceito como pioneiro, e agora tem que implementar o plano, monitorar e prestar contas anualmente”, explica Maria Cláudia Falcão.

A assessoria do MTE informou à Poli que a Inspeção do Trabalho, que capitaneia o combate ao trabalho infantil no ministério, vem intensificando suas ações de fiscalização e planeja, para 2025, a retirada de 2.450 crianças e adolescentes de situações de trabalho infantil, a maior meta dos últimos anos, segundo o órgão. Além disso, a Inspeção do Trabalho projeta que, com a entrada, em 2025, dos novos Auditores Fiscais do Trabalho aprovados no Concurso Nacional Unificado realizado em 2024, as Coordenações Regionais de Fiscalização do Trabalho Infantil serão fortalecidas tanto na fiscalização quanto na sensibilização para prevenção do trabalho infantil e articulação com os demais órgãos envolvidos com essa agenda. O ministério também informou que, a partir de 2025, o Grupo Especial Móvel de Combate ao Trabalho Infantil (GMTI) da Inspeção do Trabalho passará a contar com equipes permanentes de Auditores Fiscais do Trabalho, “para realizar, de forma periódica e em todo o território nacional, operações em graves focos de trabalho infantil que apresentem maior complexidade técnica, operacional, socioeconômica ou de articulação interinstitucional, inclusive as que envolvam áreas geográficas isoladas e atividades classificadas entre as piores formas de trabalho infantil”. Por fim, também estão previstas, para 2025, no âmbito da Conaeti, coordenada pelo MTE por meio da Inspeção do Trabalho, a conclusão e apresentação do 4º Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e também dos Fluxos Nacionais de Atendimentos a Crianças e Adolescentes Vítimas de Trabalho Infantil com explorador identificável, em regime familiar e sem explorador identificável, além de um Fluxo Nacional de Atendimento a Crianças e Adolescentes Vítimas de Exploração Sexual.

Números atuais

Dados da Pnad Contínua divulgados no final do ano passado apontaram uma redução de 14,6% no número de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos em situação de trabalho infantil no Brasil em 2023. Foram identificados 1,607 milhões de crianças e adolescentes nessa situação naquele ano (contra 1,881 milhão em 2022). Isso representa 4,2% da população total entre 5 e 17 anos daquele momento (38,31 milhões). Quarenta e um por cento delas realizavam atividades presentes na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (586 mil), uma queda de 22% em relação a 2022, quando 756 mil crianças e adolescentes estavam nessa situação. O levantamento mostra ainda que a redução em nível nacional não se deu de forma homogênea e linear. Em 22 dos 27 estados houve queda no trabalho infantil, indo de 51,6% no caso do Amapá e Rio Grande do Norte para 6% no Maranhão. No Distrito Federal e em outros quatro estados – Tocantins, Amazonas, Rio de Janeiro e Piauí – foi constatado um aumento no período, chegando a 45% no Tocantins.

O maior contingente dos trabalhadores infantis estava no Nordeste (506 mil pessoas), com Sudeste (478 mil), Norte (285 mil), Sul (193 mil) e Centro-Oeste (145 mil) vindo a seguir. O Norte tinha a maior proporção de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil: 6,9% de sua população de 5 a 17 anos de idade. O Centro-Oeste (4,6%) e Nordeste (4,5%) também superavam a média nacional (4,2%), enquanto o Sudeste (3,3%) e o Sul (3,8%) tinham as menores proporções.

Segundo a Pnad, quase dois terços desses jovens são pretos e pardos (65,2%), acima do percentual de pretos e pardos na população dessa faixa etária (59,3%). Quase metade dos casos de trabalho infantil se deram no comércio e reparação de veículos (26,7%) e na agricultura, pecuária, produção florestal, pesca e aquicultura (21,6%), com alojamento e alimentação (12,6%), indústria geral (11,0%) e serviços domésticos (6,5%) vindo a seguir. Desigualdades raciais e de gênero também podem ser constatadas entre os trabalhadores infantis. O rendimento médio daqueles do sexo masculino era de R$ 815, enquanto os do sexo feminino recebiam R$ 695. Entre os pretos ou pardos, o rendimento médio era de R$ 707, aumentando para R$ 875 entre os brancos. Outro dado da pesquisa mostra como o trabalho infantil afasta as crianças e adolescentes da escola: enquanto 97,5% da população de 5 a 17 anos eram estudantes em 2023, entre os trabalhadores infantis a taxa era menor, 88,4%. A discrepância é maior entre as pessoas de 16 e 17 anos: 90% da população desse grupo etário frequentava a escola, contra apenas 81,8% dos trabalhadores infantis nesta faixa de idade.

Vácuos assistenciais e invisibilização

Katerina Volcov, secretária-executiva do FNPETI – entidade que completou 30 anos em 2024, e que coordena a Rede Nacional de Combate ao Trabalho Infantil – chama atenção para as enormes diferenças regionais no Brasil, um grande desafio para a erradicação do trabalho infantil. “Quem mora no eixo Brasília, Rio, São Paulo, acha que o Brasil é só isso, mas não é. Tem muito de Norte, de Nordeste, de interior, de Centro-Oeste, onde tem muito trabalho infantil doméstico super naturalizado. As meninas que saem do Norte, do Nordeste, que vêm ao Sudeste ‘trabalhar’ em casas de família são um exemplo. Muitas dessas mulheres hoje sendo resgatadas por trabalho análogo à escravidão foram trabalhadoras infantis domésticas”, alerta Volcov. Ela cita também a geografia amazônica como um complicador. “Um conselheiro tutelar que recebe uma denúncia em Melgaço, no Pará [município com o pior IDH, o Índice de Desenvolvimento Humano, do Brasil], depende de uma lancha. Ele vai levar às vezes oito horas para chegar à comunidade onde teve a violação. Só que ele não tem nem lancha nem diesel. Como é que faz para chegar?”, questiona. Segundo ela, também acontece de eventuais denúncias serem negligenciadas por uma “falta de política pública” que garanta que aquela criança não precise trabalhar. “Se o menino trabalha na produção da farinha e eu o retiro de lá, que política pública eu coloco no lugar para que ele não trabalhe e a família consiga ter renda? Num lugar que não tem indústria, não tem uma rede de serviços, o que a gente faz?É um problema sério”, diz. Ela lembra ainda que o Bolsa Família, principal política pública de redistribuição de renda do país, paga às famílias apenas R$ 50 para cada filho entre 7 e 18 anos incompletos, contra R$ 150 para cada filho abaixo de 7 anos. “Vai fazer uma enorme diferença naquela família. E a grande maioria das crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil tem mais de 7 anos”, aponta Volcov.

Luisa Rodrigues, do MPT, vê a erradicação do trabalho infantil como algo distante. “Precisamos fazer muita coisa”, afirma. Ela cobra, por exemplo, uma maior destinação orçamentária a órgãos como a Auditoria Fiscal do Trabalho, área do MTE que segundo ela vem sofrendo um processo de “precarização há muito tempo”. O sindicato nacional que representa a categoria, o Sinait, tem denunciado um déficit de auditores no país, que ficou de 2013 a 2024 sem que fossem realizados concursos públicos para o cargo. Ano passado foi realizado um concurso com 900 vagas para Auditores Fiscais do Trabalho no Concurso Público Nacional Unificado, também chamado de ‘Enem dos concursos’. O déficit, no entanto, pode ser de mais de 3,5 mil desses profissionais. A OIT recomenda um auditor a cada 20 mil pessoas economicamente ativas, o que significa que no Brasil seriam necessários 5,4 mil profissionais dessa área para uma população economicamente ativa de 108,8 milhões. O país conta atualmente com 1,9 mil auditores em atividade. Luisa Rodrigues complementa: “A gente precisa de uma lista suja do trabalho infantil, como existe no trabalho escravo. A gente precisa do estímulo à aprendizagem profissional. São aspectos importantes que precisamos fortalecer com prioridade”.

Apesar dos avanços nas últimas décadas, o trabalho infantil ainda é amplamente subnotificado no país. É o que alerta Katerina Volcov. Segundo ela, isso faz com que boa parte dos casos permaneça ausente das estatísticas oficiais e invisível aos olhares da fiscalização e das políticas de prevenção e acolhimento aos jovens em situação de trabalho infantil. Além da “naturalização” do trabalho infantil doméstico, ela cita ainda o exemplo do trabalho de crianças e adolescentes no tráfico de drogas, que consta da Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil da OIT ratificada pelo Brasil. “Mas isso é tratado como ato infracional. E não aparece na Pnad. Só que a gente observa, quando escuta esse adolescente, que ele tem regras, horário, responsabilidades e atividades para cumprir. É trabalho infantil”, pontua a secretária-executiva do FNPETI. “São adolescentes que estão ali ‘no corre’ para sobreviver. Às vezes são até obrigados. E não é algo circunscrito ao Rio de Janeiro ou a São Paulo. Tem isso no Norte, no Nordeste”, reforça. O problema é que o Estado brasileiro não entende a prática como trabalho infantil, o que gera um vácuo assistencial para essa população. “O adolescente que está numa atividade como essa vai ser visto como autor de ato infracional, vai ser julgado e receber uma medida socioeducativa. Recai sobre ele um julgamento injusto. É uma contradição do nosso sistema”, afirma Volcov. À subnotificação e fiscalização deficitária se soma ainda uma falta de investimentos em áreas sociais, de acordo com a secretária-executiva do FNPETI. “Diante do quadro de controle dos gastos nas áreas sociais [a partir do Novo Arcabouço Fiscal], me parece que a gente não tem como contar muito com a Assistência Social. Na área de Educação, não estou vendo construção de escolas em tempo integral nas localidades que mais têm trabalho infantil, por exemplo. Não estou vendo investimentos na ampliação de escolas rurais ou em políticas de geração de renda para as famílias mais pobres. Então, é muito improvável falar em erradicação do trabalho infantil”, conclui.

Foto: EBC

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