Contra os likes. Por Luis Felipe Miguel

As reações automatizadas nas plataformas sociodigitais estão substituindo as trocas com outras pessoas por pseudocontato humano

Em Amanhã não existe ainda/Substack

Mudei do Facebook e do Instagram para o Substack em busca de um ambiente virtual mais saudável. Um ambiente sem anúncios (como disse alguém, as plataformas da Meta deixaram de ser redes sociais para se tornarem e-commerce). Um ambiente em que o algoritmo não fosse soberano, em que eu não fosse a matéria-prima para mineração e comercialização de dados. E em que os textos, enfim, fossem o mais importante.

Na verdade, as coisas já estavam mudadas por aqui. Com a seção de notas, a possibilidade de postar vídeos, os podcasts, parece que Substack ganhou a cara de ser mais um competidor no terreno das mídias sociais do que um blog/newsletter para escritores e jornalistas, como era a proposta original.

Vi gente incomodada porque outro dia o chefe dessa plataforma elogiou Elon Musk e a “liberdade de expressão” tal como entendida pela direita. Não me espantou. Com raras exceções, esse pessoal das novas tecnologias todo tem um pezinho no ultraliberalismo, simpatia por algo próximo do anarcocapitalismo, fantasias de meritocracia, o pacote completo. Até Julian Assange, que tantos serviços prestou à democracia e que merece toda a nossa solidariedade, tinha no horizonte desregulação e redução do Estado.

Não migrei para o Substack com a ilusão de que seria uma plataforma progressista, gerida por capitalistas bonzinhos. Só considerei que seria um espaço menos doentio para publicar o que escrevo.

O que me incomoda, mesmo, é a presença de likes – “curtidas”, no nosso português. Ou então “gostos”, na bizarra tradução automática do próprio Substack (que, entre outras coisas, não conta os “caracteres” das postagens, mas os “personagens”, claramente um tradução automática desleixada de characters; uma atençãozinha à versão em português cairia bem).

Se eu fosse dado a declarações retumbantes e levianas, diria: o surgimento do like é um marco da decadência da civilização. De maneira mais comedida, é possível reconhecer que eles são uma arma de destruição em massa das interações humanas.

Grudada na telinha do seu celular, passando por coisa e outra no seu feed interminável, de anúncios e fake news impulsionadas pelo algoritmo a publicações de seus conhecidos, a pessoa é motivada a “reagir”.

Um amigo está de férias na praia? Like. Morreu a mãe de um colega de trabalho? Like. Aniversário de alguém? Like. Gatinho fofo? Like. Um primo foi hospitalizado? Like. Não, ele foi promovido no trabalho! Like. Um texto bom comentando um seriado de televisão? Like. Restaurante novo perto de casa? Like.

Com o like, estamos “reagindo” ao que nos é apresentado, sem, na verdade, nos engajarmos em qualquer troca real com os outros.

Na outra ponta, como uma vasta literatura mostra, as pessoas se tornam dependentes dos likes, com graves consequências para sua autoestima e saúde mental. Aquela faísca de dopamina trazida pelo coraçãozinho que pula da tela se torna mais e mais importante.

O algoritmo estimula: as pessoas produzem para ganhar likes, voltam aos aplicativos vezes e vezes para conferir quantos likes ganharam, entregam cada vez mais de seu tempo, seu trabalho, sua energia, sua privacidade, sua autonomia.

Passam dias, talvez semanas, sem ter uma conversa significativa com qualquer outra pessoa, mas colecionam centenas e centenas de likes por fotos produzidas, frases bem sacadas, iscas de chantagem emocional. E quando o algoritmo muda a própria lógica e essa quantidade cai, se sentem perdidas, sem chão, deprimidas até.

E vão investir mais tempo, trabalho, energia, para se adaptar às novas regras, em busca dos likes perdidos.

Não é exagero, não é piada. As plataformas sociodigitais são uma desgraça social, política, humana, ambiental. E o like é uma das ferramentas que fazem com que elas sejam assim.

Como coletividade, devíamos tomar a decisão de proibi-los. Simples assim.

É isso. E eu sei que, se você chegou até aqui e gostou do texto, vai deixar seu like aí embaixo.

Andrea Mantegna, detalhe de Minerva expulsando os Vícios do Jardim da Virtude (c. 1480)

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