O que leva ao bolsonarismo? Por Luis Felipe Miguel

Base social da extrema-direita brasileira difere da Europa e dos Estados Unidos

em Amanhã não existe ainda

Na Folha de ontem, Maria Hermínia Tavares de Almeida anotou as diferenças entre o populismo brasileiro e seus congêneres da Europa e dos Estados Unidos.

Prefiro evitar o uso da palavra “populismo”, que remete a um conceito pouco definido, usado com diferentes sentidos em diferentes contextos. Pior ainda, no discurso corrente do jornalismo e da ciência política convencional, o populismo é o espantalho que serve para igualar os extremos, suspirando de nostalgia por um pretenso centro virtuoso. “Populista” pode ser tanto Bolsonaro pregando a redução da maioridade penal quanto Lula falando que a política econômica não deve estar a serviço dos banqueiros.

E, por indicar o excesso de influência das pessoas comuns na política como fonte de problemas, o uso de “populismo” como estigma político tem um inegável subtexto demofóbico.

Mas o texto trata, de fato, da singularidade da base social do bolsonarismo. Quando se olha para os países do Norte, os apoiadores da extrema-direita vêm dos setores economicamente mais vulneráveis. São os perdedores das últimas décadas: aqueles que ficaram sem empregos com a desindustrialização de seus países, que empobreceram, que viram seus horizontes de vida se estreitarem.

Como escreveu o cientista político Yascha Mounk, no livro que publicou após a vitória de Donald Trump em 2016, a crise da democracia se liga ao fato de que, pela primeira vez desde o final da Segunda Guerra, as pessoas têm a expectativa de levar uma vida menos segura e menos confortável do que a de seus pais. A revolta e a frustração são canalizadas para supostos privilegiados, como os integrantes de grupos beneficiados por ações afirmativas, e a nostalgia dos pretensos bons tempos adquire uma tonalidade regressista, em que emprego farto e consumo ascendente se mesclam a submissão das mulheres, hierarquias raciais e despreocupação ambiental.

No artigo da Folha de ontem, Almeida citou como exemplos os eleitores do próprio Trump, cuja base primária é formada por trabalhadores brancos pobres (embora, na nova eleição, ele tenha avançado no eleitorado formado por trabalhadores hispânicos e negros), do antigo Front National (hoje Rassemblent National) francês e do AfD alemão – que concentra seus votos na antiga Alemanha Oriental, cuja população se sente frustrada com as promessas não cumpridas do capitalismo e que, em vez de prosperar, viu seu padrão de vida decair desde a queda do muro.

Seria possível, talvez, incluir na lista os argentinos que escolheram Javier Milei, mostrando que não se trata de um fenômeno exclusivo da América do Norte e da Europa. Mas aí o caso merece mais atenção (e recomendo a coletânesa Está entre nosotros, organizada por Pablo Semán e publicada por Siglo XXI, para uma aproximação à discussão).

No Brasil, no entanto, a extrema-direita conta com a simpatia do eleitorado mais endinheirado e com educação superior, além de uma multidão de ferrados que passaram a respirar um pouco com as políticas compensatórias dos governos petistas. Como diz Almeida, “os simpatizantes da extrema direita local não são deserdados da sorte, mas, antes, beneficiários – em maior ou menor grau – da bonança econômica da primeira década do século, puxada pelo boom das commodities e pelas políticas de inclusão”.

Sua hipótese é que o “populismo” brasileiro “não parece se alimentar do ressentimento, do sentimento de perda e da expectativa de volta a um passado melhor”, mas apela “a uma noção de sociedade e de país baseada na crença no progresso como fruto do esforço individual; no desprezo pelas formas coletivas de ação; no moralismo em matéria de costumes; na rejeição ao setor público, tido como fonte de corrupção e desperdício”.

A questão, no entanto, é por que esse tipo de discurso (que é o discurso do bolsonarismo e de seus arredores) está arregimentando essa gente. Creio que há uma confluência de dois fatores.

A nossa classe média alta manifesta sua lendária alergia à igualdade, que a faz embarcar contra qualquer projeto política que vise reduzir a vulnerabilidade dos mais pobres. Ela é muito ciosa da distância que a separa destes pobres, fundamental para a manutenção da auto-imagem que deseja sustentar. Por isso, mudanças aparentemente folclóricas – como a popularização do acesso ao transporte aéreo – têm impacto em suas simpatias políticas. É o que pode ser chamado de “doutrina Danuza Leão”, em homenagem à falecida colunista social que disse que viajar a Paris ou Nova Iorque tinha perdido a graça, porque havia o risco de encontrar o porteiro do seu prédio no avião.

Não são só questões simbólicas. Quando os governos do PT combateram a pobreza extrema, ampliaram a capacidade de barganha das fatias inferiores da força de trabalho, prejudicando a classe média que se beneficiava de uma mão de obra disposta a trabalhar por preço vil – no emprego doméstico ou no setor de serviços pessoais. E a democratização do acesso ao ensino superior, outra marca das administrações petistas, arriscava retirar vantagens comparativas de um grupo social que, carente de patrimônio, legava a seus filhos o diploma. (Trato de tudo isso no livro Democracia na periferia capitalista, publicado pela Autêntica.)

Isso ajuda a explicar a adesão desse setor mais bem de vida ao bolsonarismo. Ao mesmo tempo, muitos dos beneficiários dos programas governamentais do primeiro ciclo petista são reticentes em reconhecer o papel que essas políticas tiveram em sua relativa (bem relativa) prosperidade, atribuindo-a antes a dois outros fatores: o esforço pessoal e Deus – como mostram, há uma década já, os estudos sobre as bases sociais da nova direita, conduzidos por Esther Solano e outros.

Aqui, pesa o fato de que o PT no poder jamais se esforçou para disputar as mentalidades e para produzir uma identidade política de classe trabalhadora. Ao contrário, investiu na ficção do “país de classe média” – sendo que o que caracteriza a classe média, no imaginário, é exatamente sua separação da posição de trabalhador – e permitiu a expansão do discurso hiperindividualista que se manifesta nas ilusões da meritocracia e da teologia da prosperidade.

Gustavo Marinho

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