O que podemos aprender com a vida do ex-guerrilheiro e melhor presidente de esquerda do Uruguai, Pepe Mujica.
Por Guillermo Bervejillo / Tradução: Pedro Silva, Jacobin
Conheci o “presidente mais pobre do mundo” no final de 2023. Eu já o tinha visto antes, em um evento em Washington, D.C., dez anos antes, mas, naquela época, ele estava cercado por uma multidão de bajuladores — apertando mãos, tirando selfies, beijando bebês. Você poderia pensar que ele era um influenciador pop star em vez de um homem beirando os oitenta anos e presidente em exercício de um pequeno e distante país sul-americano. Mas esse era o fascínio de Pepe: ex-guerrilheiro, prisioneiro político que virou presidente, fenômeno viral, filósofo, fazendeiro, sobrevivente.
Quando finalmente tive a oportunidade de conversar pessoalmente com José “Pepe” Mujica, ele já não era o presidente do Uruguai e havia recentemente renunciado ao seu assento no Senado do país devido a problemas de saúde. Encontramo-nos no El Quincho de Varela, um modesto espaço com telhado de palha construído em torno de uma churrasqueira, perto da sua fazenda. Ao longo dos anos, tornou-se um local sagrado, atraindo políticos, ativistas, celebridades e pensadores, de Angela Davis a Lula. Entrar ali foi como chegar a um retiro de eremita nas montanhas. Conversamos sobre a situação dos movimentos sociais nos Estados Unidos e o nosso lugar na longa duração da história. Mesmo tendo se afastado da vida pública, Pepe ainda demonstrava curiosidade sobre os movimentos sociais no exterior e estava aberto a conhecer novas ideias.
É fácil entender por que Mujica era uma fonte de fascínio sem fim. Depois de se tornar chefe de Estado em 2009, ele se recusou a mudar para o palácio presidencial, optando por ficar em sua casa de fazenda de três cômodos, em ruínas, nos arredores de Montevidéu — vigiada apenas por dois policiais e sua cadela de três patas, Manuela. Ele continuou cuidando de seu jardim, dirigia para o trabalho em um Fusca 1987 azul-claro, doava 90% de seu salário para instituições de caridade e iniciou seu mandato com menos de US$ 2.000. Esse desprendimento lhe rendeu a reputação global de chefe de Estado mais modesto que se poderia encontrar.
Ex-membro de um movimento revolucionário marxista armado, Mujica passou mais de uma década em confinamento solitário após o golpe militar de 1973 em seu país. Quando a democracia foi restaurada em 1985, ele saiu da prisão defendendo o desarmamento e uma mudança para a política eleitoral. Ele foi cofundador do esquerdista Movimiento de Participación Popular (MPP) e iniciou uma ascensão improvável no governo democrático. No início dos anos 2000, tornou-se um membro de alto escalão do gabinete e, em 2009, foi eleito presidente. Durante seu mandato de cinco anos, ele administrou com rigor, ganhou as manchetes internacionais com grandes reformas progressistas e viu seu país manter um forte impulso nos indicadores econômicos e sociais. Depois disso, ele continuou a atuar como um dos senadores mais influentes do país.
Ao longo de seu mandato, Pepe se mostrou um avô sem filtros, com sacadas rápidas de “causos” e lições de vida, história e filosofia. Ele não se apresentava como político, nem falava como tal. Não preparava argumentos para debates e quase nunca usava terno. Era como se fosse apenas mais um vizinho conversando em um bar, tomando chimarrão na praça.
Em entrevistas, Mujica respondia a clichês jornalísticos com uma mistura de franqueza irreverente e digressão filosófica, lançando de vez em quando uma declaração enigmática de sabedoria. Quando a mídia tentou apontar que seu estilo de vida era estranho para um presidente, ele deu de ombros: “A culpa é dos outros presidentes, não minha”, disse ele:
Eles vivem como minoria em seus países. Mas as repúblicas surgiram para defender um conceito: ninguém está acima de ninguém. Elas foram uma resposta ao feudalismo e às monarquias absolutas: aquelas com perucas empoadas, tapetes vermelhos e os vassalos tocando instrumentos quando o senhor ia caçar, tudo isso. E a democracia deveria ser baseada no governo da maioria.
“Vivo como a maioria das pessoas no meu país”, insistiu Pepe. “Caso contrário, você acaba sendo dominado pelo seu modo de vida.”
No geral, Mujica, que morreu em maio aos oitenta e nove anos, era a espécie mais rara de político. Não só era extremamente popular, como também politicamente astuto, um comunicador inspirador e um administrador eficaz. Nunca se vendeu. Pepe desafiou todas as expectativas negativas: não diluiu sua política em busca de aprovação centrista nem se inebriou pelo poder. Era escrupulosamente democrático e, à medida que sua saúde começou a declinar, afastou-se da política, inaugurando uma geração mais jovem de progressistas — incluindo o presidente recém-eleito, Yamandú Orsi, um sucessor do MPP. Embora tivesse uma mentalidade prática, manteve-se fiel aos seus ideais, continuou a criticar o status quo e instou a que a luta continuasse.
Mujica já se foi, mas ainda há muito a ensinar aos defensores da justiça social e econômica em todo o mundo. A vida e a carreira política de Pepe oferecem lições sobre política feita de dentro para fora: como os movimentos podem levar campeões ao poder e confrontar as contradições da política eleitoral sem abandonar a luta mais ampla por um mundo melhor.
Sua recusa em viver como aqueles em altos cargos normalmente vivem não era apenas simbólica. Ela apontava para uma forma diferente de governança democrática, baseada na prestação de contas ao povo, não à elite.
Quem foi Pepe Mujica?
José Alberto Mujica Cordano, chamado de “Pepe” desde pequeno, nasceu em 1934 em uma pequena fazenda a oeste de Montevidéu. Na década de 1940, a pobreza rural no Uruguai era extrema. Antes que o futuro presidente completasse seis anos, seu pai faleceu e sua família perdeu a fazenda. Mujica cresceu à margem geográfica e política de um país que veria sua próspera economia de guerra ruir rapidamente, à medida que uma Europa em reconstrução se voltava para si e não mais demandava os produtos agrícolas do Cone Sul.
No norte do Uruguai, os cañeros — trabalhadores das plantações de cana-de-açúcar — suportavam condições de trabalho cruéis e, durante a crise econômica, foram relegados à fome. A frustrada iniciativa de sindicalização desses trabalhadores, combinada com a vitória da Revolução Cubana em 1959, radicalizou o jovem Mujica. Ele logo rompeu com seu ativismo inicial na ala jovem do tradicionalista Partido Nacional, um dos dois partidos dominantes no Uruguai, e se juntou aos Tupamaros, um movimento guerrilheiro urbano leninista composto por ativistas políticos, sindicalistas, estudantes e ex-cañeros.
O grupo ganhou notoriedade por suas operações ousadas ao longo da década de 1960, incluindo sabotagens, assaltos a bancos, sequestros e ataques com armas de fogo contra policiais, elites locais e atores políticos estrangeiros. Mas, em 1972, os Tupamaros entraram em colapso sob a implacável repressão militar e policial. A partir de 1973, uma ditadura militar brutalmente opressiva assumiu o controle do país e governou o Uruguai por doze anos. Ao longo do final da década de 1960 e início da década de 1970, Pepe foi procurado pela polícia. Ele foi baleado seis vezes em um confronto e preso quatro vezes, escapando duas vezes em fugas em massa.
Em 1972, ele foi capturado pela última vez. Pelos doze anos seguintes, Mujica e outros presos políticos foram transferidos entre vários locais secretos e mantidos em confinamento solitário. Pepe passou dois anos em um poço úmido e sete anos sem nada para ler. Ele suportou meses com as mãos amarradas atrás das costas com arame e sobreviveu a longos períodos na escuridão total, isolado do contato humano, alucinando e tendo apenas aranhas como companhia.
A ditadura finalmente começou a perder força no início da década de 1980, enfraquecida pela crise econômica, pela resistência civil em massa e pela crescente pressão internacional. Mobilizações populares — incluindo grandes greves, protestos estudantis e um crescente movimento de direitos humanos — forçaram o regime a iniciar negociações com a oposição. Em 1985, após um acordo democrático, o governo civil foi restaurado. Naquele mesmo ano, Mujica, então com cinquenta anos, foi libertado sob uma anistia geral para presos políticos. Pepe emergiu de mais de uma década de cativeiro em um país transformado: uma democracia ainda frágil, mas novamente aberta à contestação social e política.
A mudança para a política eleitoral desencadeou intenso debate interno entre ativistas no final da década de 1980. Mujica nunca se desculpou por sua participação na luta armada; ele a via como uma resposta necessária à opressão estatal e à injustiça sistêmica. Mas também argumentou que não se tratava de uma panaceia — que, em última análise, havia se mostrado tão ineficaz na transformação da sociedade quanto a política eleitoral naquele período.
“A luta armada não pode ser um objetivo de vida”, argumentou ele. “Em certas circunstâncias, pode ter parecido um caminho a seguir — mas não pode durar para sempre. Porque sociedades não podem ser construídas com base nisso. Não faz sentido.”
Nas duas décadas seguintes, o partido de Mujica, o MPP, tornou-se a organização política mais influente na política uruguaia, distinguindo-se por sua base popular sofisticada, aparato eleitoral altamente eficaz e ideologia progressista claramente definida. Em 1989, juntou-se a uma coalizão conhecida como Frente Amplio e, em 2004, alcançou uma vitória histórica. Em campanha após a crise financeira de 2002, que devastou a economia uruguaia e abalou drasticamente a confiança pública no establishment político, Tabaré Vázquez — ex-oncologista e prefeito de Montevidéu — foi eleito presidente por uma esmagadora maioria nas urnas. Foi a primeira vez na história do Uruguai que a presidência foi conquistada por alguém de fora dos dois partidos tradicionais do país.
Os sucessos do primeiro governo do Frente Amplio levaram a vitórias contínuas e, em 2009, o Uruguai elegeu um presidente ainda mais progressista, Pepe Mujica. Embora os presidentes uruguaios não possam exercer mandatos consecutivos, a coalizão venceu três eleições presidenciais consecutivas, garantindo o mandato de Mujica entre 2010 e 2014, bem como o retorno de Tabaré Vázquez para um segundo mandato, de 2015 a 2019. Os dois presidentes tornaram-se membros-chave da Maré Rosa da América Latina, uma onda de governos de esquerda que varreu a região nos anos 2000 e início dos anos 2010, desafiando a ortodoxia neoliberal e priorizando a justiça social.
Entre 2005 e 2019, o Uruguai vivenciou um período de crescimento robusto e inclusivo, sendo aclamado como uma história de sucesso regional. Os gastos sociais aumentaram drasticamente, possibilitando um programa de transferência de renda expandido que alcançou mais de 30% das famílias e amplas reformas no sistema de saúde que garantiram acesso universal e equitativo. Essas políticas contribuíram para uma queda drástica na pobreza, que caiu de quase 40% em 2005 para menos de 9% em 2019. Isso posicionou o Uruguai como o país sul-americano com os menores níveis de pobreza e desigualdade.
Em 2019, a saúde de Pepe começou a piorar e ele optou por não concorrer a um segundo mandato presidencial. Pouco depois, aposentou-se completamente da política nacional, mas continuou seu ativismo nos últimos anos. Em fevereiro de 2024, ajudou a organizar um encontro transnacional de ativistas progressistas, líderes sindicais e políticos eleitos em Foz do Iguaçu, Brasil, que fez um apelo por mais internacionalismo como estratégia para expandir o campo de possibilidades na América Latina.
A substância da autenticidade
Há muitas lições que podem ser tiradas da história de Pepe. Mas, para ativistas fora da América Latina, três ideias são particularmente relevantes.
Uma primeira lição é que a autenticidade não pode ser comprada de um consultor de relações públicas. Há um truísmo frequentemente repetido na política eleitoral e na defesa de políticas públicas de que você deve falar autenticamente com as pessoas que deseja representar — que elas devem sentir que você é uma delas. E, no entanto, nenhuma quantidade de mensagens e pesquisas é suficiente para fazer Kamala Harris parecer genuína. Hakeem Jeffries vestiu moletons, Nancy Pelosi se ajoelhou em um pano Kente, Andrew Cuomo tirou a gravata e se filmou em um parque em Manhattan, mas seus esforços nunca parecem alcançar o que buscam alcançar.
O que torna alguém como Pepe Mujica diferente? O que os faz sentir autênticos?
Pepe mostrou que a verdadeira substância da autenticidade reside na própria política — no trabalho, nos compromissos, nas escolhas. Se você ignorar isso, terá uma geração de cosplays de Barack Obama, um desfile de imitações superficiais. Mujica demonstrou que autenticidade é mais do que mensagem ou representação; é uma função do comprometimento político. Sua imagem global viral de “o presidente mais pobre do mundo” não foi um golpe. Ele viveu um estilo de vida austero com sua companheira Lucía Topolansky — uma força política por mérito próprio — durante seus quarenta anos de vida pós-ditadura. Foi menos uma escolha do que um reflexo do que ele via como suas obrigações para com o povo do Uruguai e do mundo.
Antes de conquistar a presidência, Pepe era visto como um candidato irreal por grande parte da grande mídia uruguaia. Ele era muito rude. Era carismático, claro, mas constantemente cometia gafes e quebrava os protocolos estabelecidos por políticos eleitos. Comentaristas políticos viam sua relutância em adotar os adereços e privilégios de cargos mais altos como evidência de sua falta de seriedade.
Mas Mujica falou com orgulho de seu estilo de vida minimalista, declarando: “Não sou pobre. Minha definição de pobre é aquele que precisa demais. Porque quem precisa demais nunca está satisfeito.”
Esta era a expressão de uma visão de mundo única, moldada pela experiência vivida e fundamentada pelos insights da economia política marxista. Em uma entrevista comovente, ele explicou sua filosofia: “Ou você consegue ser feliz com muito pouco — com pouca bagagem porque a felicidade está dentro de você — ou não vai conseguir nada”, argumentou. “Mas desde que inventamos uma sociedade consumista, e a economia precisa crescer — porque se não crescer, é uma tragédia — criamos uma montanha de necessidades supérfluas. E você tem que jogar coisas fora e viver comprando e jogando fora, enquanto o que estamos realmente desperdiçando é o nosso tempo de vida.”
Um jornalista que cobriu vários presidentes uruguaios me contou como Mujica se destacava — até mesmo do colega presidente do Frente Amplio, Tabaré Vázquez. Enquanto a maioria dos presidentes mantinha distância da imprensa, Mujica tratava os repórteres como iguais. Em viagens ao exterior, ele dispensava sua equipe de segurança e saía do seu quarto de hotel, vestindo um pijama nada presidencial, para tomar um drinque com a imprensa no bar do hotel.
Mas ele não usou suas amizades com jornalistas para melhorar a própria imagem. Quando questionado sobre o histórico de seu governo em relação à pobreza, Mujica recusou o roteiro autocongratulatório. “Tiramos muitas pessoas da pobreza extrema”, admitiu, “mas não as transformamos em cidadãos — transformamo-las em melhores consumidores, e essa é a nossa falha”.
No entanto, os números falam por si. Sob Mujica, a pobreza caiu de 21% para 9,7%, os salários reais subiram quase 4% ao ano e o PIB per capita cresceu a uma média de 4,4% ao ano. Os gastos sociais aumentaram de 21% para 23% do PIB, expandindo a rede de seguridade social e fortalecendo os serviços que sustentam as famílias das classes trabalhadora e média.
A desigualdade também diminuiu: o salário mínimo real aumentou 37%, enquanto a parcela da renda nacional dos 10% mais ricos caiu mais de 10%. Por qualquer critério convencional, Mujica cumpriu as principais promessas da esquerda, mesmo se recusando a assumir o crédito por isso.
O estilo de vida de Pepe era um reflexo de quem ele era e de seus compromissos políticos com a sociedade. A lição é que nossos líderes não devem nos representar; eles devem ser um só conosco. O que importa é como eles mantêm um relacionamento recíproco conosco — como demonstram deferência, como honram a dívida que têm com a comunidade.
Com muita frequência, vemos o oposto acontecer na política, especialmente nos círculos liberais. Políticos que antes pertenciam às nossas comunidades insinuam que lhes devemos deferência por seu sucesso pessoal. Mas, na realidade, o que eles conquistaram foi uma saída — um distanciamento — das próprias comunidades que afirmam representar. Ao abraçarem as armadilhas de cargos eletivos, os protocolos, os privilégios, eles se vinculam a essa posição de poder e criam um compromisso material com o status de elite. Eventualmente, eles começam a acreditar que a reeleição é o que mais importa.
Um compromisso material com a maioria pode ajudar a mitigar as tendências inerentes à posse do poder estatal. É claro que não se chega à presidência sem uma certa sede de poder, e alguns na esquerda ainda descrevem Mujica, em particular, como um caudilho, uma espécie de homem forte. Mas seu modo de vida o manteve próximo das pessoas comuns e lhe deu uma perspectiva crítica ao receber conselhos de especialistas profissionais e da elite econômica.
A responsabilidade é um compromisso, não apenas boas intenções
A segunda lição a aprender com Pepe é sobre como garantir que compromissos pessoais se transformem em resultados políticos. É difícil manter uma genuína responsabilidade perante a classe trabalhadora e os movimentos sociais em sistemas democráticos modernos. Repetidamente, ativistas colocaram aliados em cargos públicos apenas para vê-los ceder às pressões corporativas e neoliberais. Ou, inversamente, testemunham líderes tentando estabelecer controle sobre um sistema político e acabam se voltando para o autoritarismo. Existem poucos mecanismos institucionais que permitem que autoridades eleitas evitem esses caminhos e afirmem um mandato progressista consistente, especialmente diante da resistência constante da mídia, dos interesses corporativos e do establishment político.
Talento político excepcional não basta. Sem apoio estrutural, a probabilidade de decepção é alta. Sem uma estrutura duradoura e independente por trás dos esforços eleitorais, a responsabilidade não pode ser garantida.
Sem dúvida, Pepe Mujica era um talento político excepcional, mas foi a responsabilidade estrutural única do Frente Amplio que lhe permitiu manter-se firme e receptivo à sua base. Ela se destaca como um exemplo institucionalizado fundamental de um verdadeiro partido de massas na América Latina. Ao criar mecanismos para mantê-lo vinculado aos interesses e preocupações de seus apoiadores de base, o Frente é um exemplo singular e valioso de política participativa.
O Frente Amplio não é um partido único. É uma coalizão de movimentos políticos, incluindo o MPP, em combinação com uma rede de comitês de base locais. Esses centros de base — que são independentes de facções internas — organizam membros em seus bairros, estimulam o debate, mobilizam apoiadores e conectam as comunidades diretamente à liderança do partido. Os comitês são a fonte de trabalho voluntário para campanhas eleitorais. Mas eles também se reúnem regularmente para discutir propostas de políticas e eleger delegados que participam de importantes processos decisórios nacionais. Metade dos delegados no Plenário Nacional da Frente Amplio, o principal órgão decisório do partido, bem como números significativos em outras posições de responsabilidade, vêm desses comitês de base.

Embora os comitês não sejam tão ativos quanto antes, eles continuam a moldar a dinâmica interna do Frente Amplio e inspiram um grau incomum de participação política. O poder decisório interno na coalizão não se baseia apenas na parcela de votos conquistada nas eleições gerais: o sistema recompensa as facções que conseguem construir redes locais fortes e ativas. Na prática, isso não funciona perfeitamente. Os comitês às vezes são ignorados ou se tornam excessivamente partidários. Mas alcançam um grau de responsabilidade perante as vozes populares raramente visto na política eleitoral moderna.
Essa estrutura foi crucial para a ascensão de Mujica. Facções moderadas dentro do Frente Amplio — representando profissionais de classe média mais abastada e funcionários públicos — frequentemente se opunham a ele, expressando muitas das mesmas críticas que os democratas centristas nos Estados Unidos fazem aos progressistas. Esses grupos exerceram influência significativa, produzindo líderes como Tabaré Vázquez, importantes ministros das Finanças e muitos dos especialistas em políticas e administradores da coalizão. No entanto, apesar de seu apelo e recursos, eles foram contrabalançados pela estrutura interna estabelecida da coalizão, que amplificou as vozes de ativistas organizados.
Essa estrutura não só ajudou Mujica a ascender, como também o ajudou a se manter responsável quando assumiu o cargo. Foi a base organizacional — não apenas a virtude individual — que permitiu a Mujica permanecer alinhado com as comunidades que o levaram ao poder.
As estruturas eleitorais nos Estados Unidos dificultam a replicação desse processo, mas ativistas podem tomar medidas nessa direção codificando a democracia interna das organizações que compõem a ecologia mais ampla dos esforços eleitorais progressistas. Podemos perguntar: de que maneiras esses grupos — além dos esforços eleitorais — formalizam sua responsabilidade perante os movimentos sociais? Há muita coisa no mundo da organização comunitária sem fins lucrativos, da pesquisa política e da advocacy que alega refletir os interesses das pessoas comuns, mas, na verdade, é impulsionada pelas escolhas de conselhos de organizações sem fins lucrativos, financiadores filantrópicos e consultores políticos. Quando essas organizações buscam engajar sua base, geralmente o fazem em caráter consultivo limitado — por exemplo, colocando um representante simbólico da comunidade em um conselho, onde se espera que o representante se integre e assine.
Em vez disso, seguindo o exemplo do Frente Amplio, os grupos deveriam priorizar a construção de estruturas onde os aliados eleitos não apenas sejam apoiados, mas também responsabilizados perante as pessoas que os mobilizaram. Sem esse tipo de infraestrutura duradoura, os líderes progressistas estarão sempre lutando sozinhos contra sistemas projetados para absorvê-los, cooptá-los ou isolá-los.
Mantenha a pressão — mesmo com amigos no poder
Esse foco nas estruturas internas de responsabilização se sobrepõe a uma terceira lição que podemos tirar da carreira de Mujica: a importância de movimentos sociais ativos e independentes fora da administração eleita ou do partido político.
Os compromissos pessoais de Mujica e a estrutura organizacional do Frente Amplio moldaram sua abordagem como líder. No entanto, a força crucial por trás de muitas das reformas progressistas do Uruguai durante sua presidência veio de um conjunto mais amplo de forças que operavam além dos corredores do poder. A pressão externa exercida pelos movimentos sociais — o “jogo externo” — provou ser essencial para impulsionar mudanças significativas.
Recentemente, conversei com um assessor próximo de Pepe, um esquerdista de longa data, leninista convicto e ex-funcionário eleito. Ele se mostrou constrangido em admitir que, de fato, não existe um quadro formal ou uma estrutura rígida de cogovernança no Uruguai que vá além da coalizão eleitoral. Embora o Frente Amplio tenha uma forte base popular, suas relações com a sociedade civil e movimentos sociais mais amplos têm sido dispersas, às vezes informais, às vezes até antagônicas. Mesmo com sua administração mais progressista no poder, as principais decisões executivas foram, em última análise, tomadas por Mujica e seu círculo íntimo de confiança.
No entanto, muitas das vitórias que definiram a presidência de Mujica não foram suas batalhas escolhidas. A legalização da maconha, o aborto legal e o casamento entre pessoas do mesmo sexo tornaram-se reformas icônicas do governo Pepe, mas não estavam originalmente em sua agenda. Em vez disso, foram resultado da pressão de movimentos sociais bem organizados.
Mujica era politicamente inteligente e conectado o suficiente com sua base para se mostrar receptivo a essas demandas externas. Ele reconheceu a dinâmica por trás dessas ideias, manteve-se flexível e evitou o apego rígido a um plano pré-determinado. Mas, embora essas reformas se tornassem algumas de suas principais realizações durante seu mandato, ele teve que ser pressionado a defendê-las.
A legalização da maconha, por exemplo, foi impulsionada por uma coalizão de ativistas que combatiam tanto as normas internacionais arraigadas da política de drogas quanto o conservadorismo local. Grupos como a Asociación de Estudios de Cannabis del Uruguay e a Proderechos organizaram marchas, pressionaram legisladores e mantiveram a questão sob os holofotes da mídia, tornando as mudanças politicamente viáveis. Seus esforços coincidiram com a crescente pressão para encontrar estratégias criativas de combate ao tráfico de drogas após a fracassada “guerra às drogas” promovida pelos Estados Unidos.
Quando os ativistas pró-cannabis começaram a se mobilizar no início dos anos 2000, a opinião pública inicialmente se opôs a eles — dois terços dos uruguaios se opunham à legalização. O próprio Mujica expressou reservas. Entrevistado sobre o tema, ele disse: “Não pensem que estou defendendo a maconha […] O amor é o único vício saudável na face da Terra. Todos os outros vícios são uma praga, cujos danos têm graus variados.” Mas o movimento ganhou força ao vincular a causa a uma agenda de direitos mais ampla, defendida por estudantes, grupos LGBTQIA+, sindicatos e outras forças da sociedade civil.
Em 2012, o crescente temor em relação à insegurança urbana abriu o debate. A legalização foi reformulada como uma medida de segurança, uma forma de reduzir os lucros dos narcotraficantes e separar a cannabis das drogas mais pesadas. Em 2013, o Uruguai se tornou o primeiro país do mundo a legalizar a maconha recreativa. No final, o apoio de Mujica e a maioria do Frente Amplio no Congresso levaram a Lei 19.172, a medida de legalização do país, à sua conclusão. Mas foi a organização implacável dos movimentos sociais que transformou a questão de uma causa improvável e impopular em uma vitória política.
Esta é uma lição crucial para os movimentos sociais que buscam mudanças progressistas: ter aliados no poder, mesmo um presidente com profundos compromissos políticos com a população, não é suficiente. Os movimentos sociais impulsionam a possibilidade política, expandindo a janela de Overton e forçando os governantes eleitos a irem além de suas zonas de conforto. O poder político, mesmo quando exercido por líderes bem-intencionados, é limitado pela inércia institucional, por interesses conflitantes e pelos limites da vontade política.
A história do Uruguai ressalta a importância de manter a pressão, da agitação estratégica e do engajamento público — mantendo as questões vivas a
lém dos ciclos eleitorais e dentro dos corredores do poder. Aliados no poder podem abrir portas, mas os movimentos devem atravessá-las. Mujica frequentemente se descrevia como relutante, até mesmo cético, mas também era excepcionalmente aberto a pressões. Ao contrário de líderes que se isolam após assumirem o poder, Mujica manteve a porta entreaberta.
Continuar a luta
O legado de Pepe Mujica não vem apenas das leis aprovadas sob sua gestão, mas também da maneira como ele incorporou um tipo diferente de política: uma política fundamentada, uma política de responsabilização e uma política de participação democrática. Ele insistiu que a liderança deve emergir da vida cotidiana e que as instituições democráticas só prosperam quando a sociedade civil é forte o suficiente para responsabilizar os poderes públicos. Em 2024, no evento pós-eleitoral de Orsi, Mujica disse aos presentes que estava lutando contra a morte. “Sou um velho que está muito perto de começar a partida da qual não há retorno”, disse ele. “Mas estou feliz! […] Porque quando meus braços se forem, haverá milhares mais para continuar a luta. Durante toda a minha vida, disse que os melhores líderes são aqueles que deixam para trás uma equipe que os supera de longe — e hoje, vocês estão aqui.”
Pouco depois, refletindo sobre sua jornada, ele acrescentou: “Passei meus anos sonhando, lutando, batalhando. Eles me espancaram muito e tudo mais. Não importa, não tenho dívidas para cobrar.”
–
*Guillermo Bervejillo é pesquisador sênior associado do Whirlwind Institute e pesquisador do Ayni Institute. Geógrafo econômico, escritor e ativista, seu trabalho se concentra em geopolítica latino-americana, economia política e movimentos sociais.
