O ano começou mal

“Em um momento grave tal como este pelo qual passa o país, acredito que seria de boa medida retomar certa tradição política dos direitos humanos enquanto potência para a luta e de abertura a outras formas e práticas.”

Por Edson Teles, no blog da Boitempo

Feminicídio, transfobia e chacina no presídio. Além da violência enquanto prática social e da pobre experiência de vida heteronormativa, binária e racista, estes tristes e graves acontecimentos remetem a um conflito em comum. Trata-se do choque entre a expectativa de instituições garantidoras do respeito à vida e o Estado como principal violador dos direitos, seja pela negligência, seja por opção pelos ricos.

O secretário de segurança amazonense declarou que não autorizou a entrada da PM visando evitar a chacina porque poderia ocorrer uma reação, a PM produzir outro “Carandiru” e o “pessoal dos direitos humanos” acusar a instituição de violação de direitos. A mulher vítima principal da carnificina de Campinas por várias vezes denunciou às instituições do Estado as ações violentas e abusivas do assassino. No caso do espancamento até a morte de Luiz Carlos cabe perguntar se os dois executores tiveram, em suas escolas ou nas instituições pelas quais passaram, aulas ou educação sobre questões de gênero.

Este parece ser o dilema dos direitos humanos na atualidade. Ao menos as duas últimas gerações nasceram e/ou cresceram sob a expectativa de relações políticas democráticas. Isto quer dizer, nas quais o valor maior estaria na construção de uma sociedade de igualdade de condições de acesso, de investimento na justiça social e de tolerância com a diferença. Estes valores, discursivamente, estariam registrados naquilo que ficou conhecido como o “politicamente correto”.

Neste caso, o “correto” refere-se a normas disciplinares e costumeiras visando o bom convívio social e em torno da ideia de uma sociedade una. Seriam válidas para todos os seres humanos, ainda que entre eles se sabe da existência de diferenças e desentendimentos profundos. Sua efetivação, na medida em que visa disciplinar o modo como os corpos, as vidas, as individualidades se relacionam, ocorre por meio da ação das instituições. As escolas, universidades, hospitais, repartições, museus e, até mesmo, as delegacias e quarteis deveriam atualizar a força deste discurso em suas práticas.

Também as tímidas políticas públicas reparatórias dos Estados nacionais, tomando os valores da equidade e dos direitos como uma espécie de dever social, fundamentaram suas ações de inclusão e reconhecimento das injustiças passadas no discurso do “politicamente correto”.

Não ficaram de fora, e não poderia ser de outro modo, as ONGs e os movimentos de direitos humanos e identitários. O lugar de força das lutas e demandas feministas, dos grupos LGBTs e dos movimentos negros passaram, em larga medida, pelo reconhecimento discursivo de um modo respeitoso das diferenças e inclusivo socialmente. As ações destes sujeitos implicaram na produção de saberes específicos e de vocabulários com potencial de expressar uma outra inserção para as subjetividades vulneráveis às violações de seus direitos.

Para que o “correto”, em um Estado de Direito, pudesse realizar transformações reais nas condições de precariedade das chamadas minorias é necessário estruturar as demandas em direitos e criar mecanismos de controle e punição às suas violações. E é justamente neste ponto, no qual se realiza a efetivação de políticas positivas e reparatórias, que a ação em torno do Estado se torna o ponto nevrálgico e central dos direitos humanos.

Outrora, em especial na América Latina durante as ditaduras militares, os direitos humanos foram os instrumentos de resistência e luta dos vários coletivos, políticos ou identitários, mas também das pessoas em condições de vulnerabilidade. Com as redemocratizações e a reorganização dos estados de direito, os direitos humanos produziram um paradoxo: quanto mais se realizava as lutas e as conquistas de direitos, acionando os poderes legislativo, judiciário e executivo, mais se descaracterizava seu aspecto de mecanismo de luta e resistência.

O protagonismo e a execução dos direitos humanos, simbolizado entre outas formas contemporâneas no “politicamente correto”, coube ao Estado e às principais instituições disciplinares da sociedade.

Em um momento grave tal como este pelo qual passa o país (seja do ponto de vista social ou político, para não dizer o econômico), acredito que seria de boa medida retomar certa tradição política dos direitos humanos enquanto potência para a luta e de abertura a outras formas e práticas.

Lá atrás, quando a atual ordem democrática começou a se constituir, foi da transpiração dos movimentos sociais em torno das demandas por direitos e de sua tradução em políticas públicas que tornou possível a experimentação de novos modos de organização e de ação política. Este foi o caso do PT nos anos 80, bem como de movimentos sociais que acabaram, por força das circunstâncias, em uma relação/ação próxima a da lógica de governo.

De modo paradoxal, as ações de direitos humanos seguiram estes dois percursos. Por um lado, produzindo, por meio dos conhecimentos históricos e da institucionalização, políticas públicas. Normalmente conduzidas, como vimos, pelo Estado. Concomitante, o outro percurso se constitui no chão dos conflitos sociais, animado pelas demandas locais, diversas, específicas. É acionado não por protagonismo daquele que iria figurar como ator principal da encenação. Porém, fruto da ação dos desqualificados, dos vitimizados, de quem está em condição marginal nos projetos de direitos humanos, aqueles que seriam seus objetos de incidência.

Neste percurso, o próprio sujeito menorizado assume para si a condução autônoma de seus atos. Trata-se da história das lutas sociais, daquilo que é produzido pelo acúmulo do saber acerca dos conflitos ou das estratégias neles envolvidos. Tal como nas esferas complexas nascidas das ações de agentes menores, as memórias formam territórios de relações políticas dos coletivos de direitos humanos.

A valorização do caráter de resistência e de luta destes territórios e práticas poderia ocorrer por meio da contestação dos discursos especializados, dos privilégios dos técnicos, da tirania das hierarquias.

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Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

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