Feira de produção indígena na Raposa Serra do Sol mostra que os indígenas não passam fome e produzem a sua própria alimentação saudável

Feira de produção indígena como forma de fortalecimento da produção sustentável e geração de renda

CIR

Desde a decisão definitiva da Terra Indígena Raposa Serra do Sol há sete anos, grupos políticos, latifundiários e demais invasores que ocuparam por longos anos o território tradicional ainda tentam de várias formas reverter a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que decidiu pela posse permanente e usufruto exclusivo dos povos indígenas Macuxi, Wapichana, Taurepang, Patamona e Ingaricó, conforme o decreto homologatório de 15 de abril de 2005. Os políticos tentam com suas inverdades difamar e menosprezar uma luta de mais de 30 anos.   

As tentativas são constantes por parte dos políticos, aliados, inclusive, aos meios de comunicação local e nacional que propagam inverdades sobre a vida dos povos indígenas e que usam dos argumentos mais absurdos, como o de dizer que “índios da Raposa Serra do Sol passam fome, não produzem nada e estão no lixão de Boa Vista”. Esse argumento também foi reproduzido, recentemente, pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, durante o julgamento das Ações Civis Ordinárias (ACOs) 362 e 366, realizado no último dia 16 de agosto no STF.

As quatro regiões que compreendem a terra indígena Raposa Serra do Sol, Serras, Surumu, Baixo Cotingo e Raposa, nos últimos anos, vem realizando as feiras regionais como forma de fortalecer a produção sustentável e a geração de renda nas comunidades indígenas, mas também de contrapor tais declarações que de certa forma, tem inquietado as lideranças indígenas que no dia a dia da lutam pelo  bem viver do seu povo, após décadas de invasões, ameaças e perseguições.

Entre as regiões, a região da Raposa, localizada no município de Normandia, realizou no final de semana, 8 a 10 de setembro, a sua III Feira da Agricultura Familiar Indígena, no Centro Regional Lago Caracaranã, o sagrado Lago Caracaranã, símbolo de reconquista dos povos indígenas de Roraima.

Apesar da enchente que atingiu várias comunidades indígenas da terra indígena Raposa Serra do Sol, no mês de maio, incluindo, as comunidades da Raposa, com algumas ainda ilhadas por conta do acesso que ficou intrafegável, as comunidades conseguiram chegar com a sua produção até a feira da agricultura familiar indígena. A feira reuniu pelo menos 10 comunidades indígenas, das 48 que existem na região, sendo que 44 são membro do Conselho Indígena de Roraima (CIR) e outras 4 fazem parte de outras organizações indígenas.

A abertura da feira contou com a presença do atual coordenador geral do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Enock Barroso Tenente, do povo Taurepang e juntamente com a família, foram recepcionados com a dança do parixara e canto tradicional na língua Macuxi. A recepção, feita pelos estudantes indígenas da Escola Estadual Indígena Índia Petrolina da comunidade indígena do Bismark, mostrou que as comunidades indígenas também fortalecem e valorizam a sua cultura indígena.

“É motivo de felicidade estar no meio de vocês, principalmente num evento como esse. Para os parlamentares que vivem falando que Raposa Serra do Sol se tornou um lugar abandonado e que não existe nada, um evento desse, mostra para essas pessoas que tudo é mentira o que eles falam” expressou Enock Taurepang recordando as falas de políticos e até do ministro Gilmar Mendes de que não há produção na TI Raposa Serra do Sol e que os indígenas passam fome.

Além da coordenação geral do CIR, a mesa de abertura contou com a presença de lideranças indígenas da região, como o Tuxaua da comunidade Guariba, Pedro de Souza da Silva, a coordenadora das mulheres indígenas, Rosineide Lima Rosas, a coordenadora de saúde indígena regional, Lina da Silva Raposo e o Secretário Municipal de Agricultura de Normandia, Afonso Nivaldo de Souza.

Também na abertura o coordenador regional da Raposa, Valério Eurico, lamentou a perda da produção provacada pela enchente, assim como o tráfego que ficou prejudicado impossibilitando a chegada das comunidades indígenas até o Centro Regional e até mesmo a falta de transporte para escoar a produção.  “Praticamente, 60% das comunidades indígenas perderam a sua roça, perderam tudo o que tinha e os que tinham chegaram com o produto aqui na nossa feira. Ainda tem pessoas ilhas, por isso não chegaram. A chegada era ontem (7/09), mas a gente sabe muito bem que não temos transporte, os povos indígenas sofrem por não ter transporte. Mas vamos trabalhar para conseguir. Somos indígenas e somos capazes de conseguir para trabalhar melhor com o povo” justificou o coordenador sobre a ausência das comunidades indígenas na feira.

Da mesma forma, o Tuxaua da comunidade indígena Guariba, Pedro de Souza Silva, comentou sobre os prejuízos causados pela enchente, mas como afirmou de que mesmo com a enchente, as comunidades têm a sua a produção. “A gente estar aqui para apresentar, expor a nossa produção, nesta terceira feira de agricultura familiar, apresentar os produtos nativos e tudo que se vê é nativo, não tem semente híbrida e nem transgênico, tudo é natural e sem defensivo agrícola” comentou o Tuxaua manifestando satisfação pela realização da feira e afirmou que na próxima, haverá mais produção.

O trabalho e o cultivo da produção, não é um trabalho somente dos homens, porque tradicionalmente, é um trabalho feito pelas mulheres que dedicam o seu cotidiano em busca de uma alimentação saudável para os filhos. A coordenadora regional das mulheres indígenas, Rosineide Lima Rosas, como produtora e representantes das mulheres, falou da importância de valorizar o trabalho de produção e destacou que esse ano, como mulher que trabalha na confecção da panela de barro, não teve o produto, porque priorizou o trabalho da roça.

“Primeiramente, nós temos que valorizar esse nosso trabalho, onde as mulheres, os homens trabalham na roça, alguns são funcionários, mas a maioria (produtores) são os que trabalham na roça, cuida dos filhos, do esposo. A gente cuida de um tudo, vive trabalhando dia a dia. Esse ano não teve panelas de barro, ano passado tinha bastante, mas esse ano eu me preocupei mais com a roça” contou Rosineide.

Após a abertura do evento, os particpantes tiveram a oportunidade de apreciar a produção agrícola vinda das comunidades indígenas, Cachoeirinha, Cedro, Bismark, Matiri, Guariba, Macaco, Santa Cruz, Xumina, Jawari e Jibóia. Entre a produção, farinha, goma, beiju, pajuaru, pimenta, banana, laranja, milho, cana, abóbora e até carne bovina (carne de sol), tudo oriundo de uma produção orgânica cultivada nas comunidades indígenas.

Para abrir as vendas da feira foi realizado o concurso da farinha mais bonita e o ganhador foi o Tuxaua da comunidade indígena Matiri, Paulo Manharau da Silva, que participou pela primeira vez da feira. A comunidade Matiri possui 17 famílias e uma população de 111 indígenas.

O Tuxaua contou das dificuldades de transportar o produto, e afirmou que é mentira o que os políticos falam de que eles (indígenas) da Raposa Serra do Sol não produzem nada e pontuou que a maior dificuldade é a falta de transporte e o acesso, porque que nem estrada a comunidade tem e sobrevive através de um caminho que utilizam para poder sair.

“Nós sentimos muita dificuldade de transportar o nosso produto, e essa é a primeira vez que estou participando. A gente tem como produzir, só não tem como transportar devido o acesso. E essas conversas mentirosas que vários deputados comentam contra nós, povos indígenas, isso tudo é mentira. A verdade é que nós produzimos, mas não temos como transportar devido o acesso. Fizemos duas viagens de trator para transportar o nosso produto para a feira, não tivemos como trazer mais. E dizer que estamos passando fome, é pura mentira. Plantamos, produzimos e temos para sustentar a nossa família e até para a nossa região quando a gente colabora quando tem um evento, como carne e outros produtos” contou o Tuxaua Paulo sobre as dificuldades de acesso, transporte e também, sobre a fartura que existe na comunidade indígena.

Outra realidade não muito diferente vem da comunidade indígena Cachoeirinha, uma comunidade que possuem 9 famílias e um total de 53 de população, que está há um ano ao comando da Tuxaua Narlen da Silva, 50 anos, que também relatou sobre as mesmas dificuldades, inclusive, sobre as visitas de políticos que só chegam a comunidade em época de campanha eleitoral. “O lugar para lá está muito ruim, igarapé, cheio de buraco, passamos no igarapé e está tudo cheio de palha, de madeira que colocaram para gente passar. Não tem como a gente trazer produto, não trouxe macaxeira, banana, porque não teve como trazer. Mas trouxe farinha, goma, pajuaju, tapioca e pimenta. Para trazer de lá, como podemos trazer, se é longe. Não tem estrada e de bicicleta não tem como” relatou Narlen.

“Sobre isso, que estamos passando fome, não estamos passando fome, não. Nós temos bastante mandioca, milho, peixe, e se a gente for caçar, pescar, meu menino acha caça, jabuti, veado. Dizem que estamos passando fome, mas fome de quê. Não estamos passando fome, para isso a gente faz caxiri, pajauru, beiju, farinha, tapioca, tudo é a gente que faz. Para lá é difícil entrar político, como eles dizem que estamos passando fome” relatou a Tuxaua indignada ao saber sobre as declarações de que depois da homologação estão passando fome.

A feira de produção indígena é também um dos resultados da gestão dos territórios feito pelos próprios indígenas que buscam cada vez mais autonomia para gerir ações e projetos voltados para a sua própria sustentabilidade. O Centro Regional Lago Caracaranã, é o segundo centro regional existente na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, depois da região do Baixo Cotingo, onde funciona o escritório regional destinado para as atividades de elaboração e execução de projetos voltados para o desenvolvimento sustentável das comunidades indígenas.

Inaugurado no final do ano de 2016, o Centro Regional tem sido referência para grandes eventos, tantos da região quanto para outros eventos estaduais, como a Assembleia Geral dos Povos Indígenas, seminários da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial das Terras Indígenas, encontro dos Agentes Territorial e Ambiental Indígena, entre outros, que já foram realizados no local.

É visível o trabalho coletivo das comunidades indígenas, não só das regiões da Raposa Serra do Sol, mas como demais etnoregiões do estado de Roraima, seja na área produtiva, pecuária, piscicultura, e até no trabalho de levar formação e informações sobre direitos indígenas, mudanças climáticas, sustentabilidade, educação, saúde, mas que às vezes, são poucos considerados pelos poderes públicos, pela sociedade que ora reconhece, ora discrimina, mas nem por isso, as comunidades e os povos indígenas deixam de viver o seu dia a dia do trabalho, da construção e da transformação social, política e econômica, sempre valorizando os seus costumes tradicionais.

Foto: Mayra Wapichana

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