A grande expiação, por Vladimir Safatle

Na Folha

“Sete citados na Operação Lava Jato viram ministro e ganham foro privilegiado”, “Novo ministro dos Transportes é suspeito de desvio de verba de merenda escolar”, “Itamaraty fornece passaporte diplomático a pastor citado na Lava Jato”, “Brasil tem pela primeira vez presidente acusado de ser ficha suja”, “Gilmar Mendes [quem mais?] reenvia processo contra Aécio Neves à Procuradoria-Geral da República em menos de 24 horas”, “Novo líder do governo na Câmara é acusado de homicídio”.

Digamos que todo o processo de “impeachment” de Dilma Rousseff tivesse sido, de fato, impulsionado pela indignação popular contra a corrupção sistêmica no governo.

Se este fosse realmente o caso, teríamos, neste exato momento, um barulho ensurdecedor de panelas, milhares de pessoas iradas vestindo verde e amarelo nas ruas e a imprensa em coro pedindo a destituição do presidente interino e seu governo postiço de corruptos. Uma semana bastou para mostrar ao mundo o grau zero de comprometimento contra a corrupção da oligarquia que tomou de assalto o poder.

Mas não, meus amigos, vocês não estão ouvindo panelas, nem vendo seu vizinho urrar impropérios contra o governo, nem o senhor Sérgio Moro continua no noticiário com sua pretensa caça implacável e destemida contra usurpadores do bem comum.

Não há nada no horizonte das famílias que tiravam selfies com a Polícia Militar que indique um desejo incontido de gritar “agora, é fora Temer”. Na verdade, agora é “ordem e progresso”, ou se quiserem uma versão mais honesta do lema positivista, agora é “repressão e espoliação direta”, com direito a ministros falando sobre o fim da universalidade do SUS, cortes na construção de 11 mil casas populares e preparação da população para mais uma reforma previdenciária com limitação de direitos trabalhistas. Em outras palavras, a violência de sempre.

Mas se, de fato, toda esta história sobre indignação contra a corrupção era uma farsa tosca, o que realmente aconteceu? Digamos que o Brasil viveu nestes últimos meses uma grande expiação, uma espécie de Carnaval macabro de liberação da frustração social que tinha como única finalidade tirar dessa liberação sua potência de transformação real e transformá-la em uma ação espetacular e improdutiva. Como em uma terapia catártica, a frustração social foi expiada por meio da imolação de uma presidenta. E assim tudo pode depois voltar ao normal.

Era claro que o Brasil entrara, desde 2013, em um compasso insuportável de frustração. Haviam prometido ao povo brasileiro que nosso país seria a quinta economia do mundo, que a Copa do Mundo e as Olimpíadas seriam momentos mágicos de aquecimento da economia e reconstituição da infraestrutura de nossas cidades, que estaríamos nadando em dinheiro do pré-sal com 75% destes rendimentos aplicados em educação.

No entanto, o que se viu foram cidades cada vez mais excludentes com preços exorbitantes de imóveis, serviços públicos sucateados, desenvolvimento concentrado e aumento exponencial do endividamento das famílias. Contra isso, o governo Dilma só ofereceu imobilismo e o discurso de que “o Brasil tinha avançado muito, mas precisa avançar mais”.

Ninguém precisa ser PhD em psicologia social para perceber a situação explosiva em que nos encontrávamos. Duas saídas eram possíveis.

A primeira era a consolidação de uma dinâmica de transformações sociais radicais por meio da abertura de espaço à emergência de novos sujeitos políticos com clara força de atualização de visões alternativas de desenvolvimento social. Mas isto não ocorreu, a classe política brasileira estava completamente envelhecida para abrir tal espaço, até mesmo as forças oposicionistas eram incapazes de mobilizar alguém em prol de um projeto. Elas só conseguiam mobilizar as pessoas contra algo.

Sobrou então a segunda alternativa, a saber, a simples tradução deste desencantamento generalizado em frustração social bruta, com direito a rituais de expiação e espetáculos de liberação de falas “politicamente incorretas” contra inimigos imaginários. Falas que repetem o mero prazer infantil de enunciar palavras proibidas marchando ao lado de patos gigantes e bonecos infláveis que pareciam saídos de desenhos animados. A temática da corrupção foi apenas a senha para começar esse Carnaval impotente. Seu destino era terminar ali.

Expiada a frustração, sacrificados os inimigos, todos podiam então voltar para casa e se submeter aos mesmos políticos corruptos de sempre, enquanto eles espoliam ainda mais nossos direitos. Assim, a era das panelas em fúria terminou. Agora, a verdadeira era da indignação pode começar.

Comments (1)

  1. Preconceito e Ódio de classes

    Desde o início do primeiro governo Lula estava claro que o “Brasil” não via com bons olhos a mudança de comando da gestão. Lula não era( e continua a não ser) um “nobre”, um doutor. As TV´s sempre disponibilizou câmeras e microfones para quem estivesse disposto a atacar o novo presidente, xingar, desqualificar. Observava como os maiores beneficiários da era Lula, conscientes ou não, também nutriam o mesmo preconceito. Políticos oportunistas se instalaram no governo como agentes duplos, e construíram suas estratégias para retomada do poder. O PT se comportou com se tivesse sido convidado e aceito na festa, enquanto sempre foi visto como um intruso.

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