Os grandes processos de difamação pública me entendiam um pouco.
Já passei por alguns deles e vi amigos e conhecidos também sofrerem por conta. Baseados na intenção sacana de uma pessoa, um grupo ou uma instituição, eles – não raro – são ações conscientes em que os envolvidos sabem que a história não é verdade, mas contam com a ignorância popular para fazer correr sua versão.
Agora, o que me fascina são os pequenos processos difamatórios do dia a dia.
Que funcionam como cebolas: parecem grandes, suculentas e sólidas mas, retirando casca por casca, encontra-se apenas ar lá dentro. Pequenas difamações que surgem da incapacidade de alguém de interpretar um texto (tirando conclusões mirabolantes a partir do que o autor quis dizer), da dedução equivocada guiada, não por evidências, mas pelo desejo pessoal daquilo ser realidade (Sakamoto é de esquerda, logo deve ser fã de Nicolás Maduro) ou da incompetência em usar as redes sociais.
Este último item pode chocar, mas é verdade. Certo dia, percebi que havia um rosário de lamentações contra mim no Twitter por conta de uma frase preconceituosa que eu nunca postara. Caçando a origem, percebi que eu havia sido marcado em uma postagem e, ao longo de retuitadas, o autor se perdeu e fiquei só eu, como se aquilo fosse meu. O que bastou para dezenas de pessoas defenderem que fosse queimado em praça pública.
Se a ciência parasse de se dedicar a coisas irrelevantes, como a cura da Zika e do câncer, e concentrasse esforços no que realmente importa, já teríamos uma tabela para entender quantas retuitadas, compartilhamentos ou likes são necessários para um pequeno erro se tornar boato e de lá verdade suprema. Tipo, 30 retuitadas e já era: ninguém mais vai acreditar que aquilo não procede. Ou seja, foi validado coletivamente, game over.
No começo, tolinho, tentei até explicar que isso não procedia. No que tive que ler um sonoro:
– Agora que pegou mal, quer tirar o corpo fora, né mané? Você é um idiota e um covarde!
Na verdade, tinha mais palavrões, mas como hoje é domingo, optei por uma versão família.
Mais ou menos o sentimento de ler O Processo, de Kafka, no qual Josef K. é preso e obrigado a passar por um longo e tenebroso processo por conta de um crime que ninguém lhe explica qual é. A primeira publicação do livro é de 1925, mas segue atual pacas. O mundo digital deu apenas rapidez à eternamente presente ignorância humana.
Estou falando das pequenas difamações porque as grandes são alvos de notas de repúdio, direitos de resposta, protestos indignados, processos judiciais, fact checkings, enfim. Já as pequenas, as minúsculas do dia a dia, passam despercebidas. E vão, aos poucos, definindo os contornos do entendimento sobre determinado assunto, pessoa, lugar ou ideia sem que nos atentemos para tanto.
O problema é que os grandes difamadores, os profissionais, se valem da inocência útil dos pequenos, em sua maioria formada de leigos, para conquistar seus objetivos. Um processo de alfabetização digital, como sempre digo aqui, cairia bem. Fomentar o bom senso e o senso crítico na criançada desde pequena também. Mas tudo isso é educação, e portanto, irrelevante.