A CPI foi suspensa pela justiça federal, mas a terra indígena Kurussu Ambá, no sul do estado, sofre novos ataques
Izabela Sanchez, Top Mídia News
A CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), – iniciativa da deputada Mara Caseiro (PMB)- , que buscava investigar supostas ações do Conselho nos processos de retomada de terras pelos povo indígenas em Mato Grosso do Sul, foi suspensa pela 4ª Vara da Justiça Federal de Campo Grande. A CPI foi, desde o início, considerada inconstitucional, por ferir o objeto que assegura a instalação de uma Comissão do tipo em uma Casa de Leis.
“Preliminarmente, rechaço a alegação de existência de conflito federativo alinhada pelo Estado de Mato Grosso do Sul, porquanto a União e a FUNAI (Fundação nacional do índio) não pugnaram pela intervenção no feito, enquanto que a DPU (Defensoria Pública da União) não atua na defesa de interesses da União, mas da comunidade indígena. Ainda que diferente fosse, tal conflito, em ordem a ensejar a competência do Supremo Tribunal Federal, só se configura quando presente relevância suficiente para fragilizar os laços de harmonia da Federação (STF – ACO 1606 AGR/MS), o que não é o caso”, afirma o documento, contestando suposto conflito na decisão.
Proferida pelo juiz Pedro Pereira dos Santos, a decisão atende o pedido da DPU. O deputado estadual Pedro Kemp (PT), contrário ao teor da CPI, comemorou o acontecimento. “Desde o início quando foi proposta a CPI eu já contestei a abertura porque eu dizia que não havia ato determinado como prevê a abertura, achei muito frágil, inconsistente. Uma outra questão é que a CPI não pode investigar uma entidade de caráter privado como o Cimi, acho que essa liminar confirmou o que a gente já previa”, declarou.
O secretário executivo do Cimi, Cleber César Buzatto, considera a decisão como uma forma de reconhecer o estado democrático de direito. “Nós recebemos a notícia com serenidade e claro nos alegrou a decisão, é positiva, importante e reestabelece o estado democrático de direito, no sentido de que a Assembleia tem responsabilidades, mas também deve se ater aquilo que é da sua competência, e não é competência da Assembleia essa CPI”.
“Não temos nada a esconder, não atuamos de forma ilícita em momento algum, acho que é um fator positivo e no nosso entendimento nos dá mais fôlego, para focar nossa atenção nas urgências que nos são apresentadas pelos povos de indígenas de Mato Grosso do Sul”.
Violência no Conesul continua
Apesar da suspensão da CPI ser um fator que retira parte da criminalização da luta indígena no estado, a violência na região sul do estado continua. A comunidade Guarani e Kaiowá Kurussu Ambá, que fica a cerca de 40 quilômetros do município de Coronel Sapucaia, distante 420 quilômetros de Campo Grande, sofre ataques constantes desde domingo (31).
Além disso, uma decisão da 1ª Vara Federal de Naviraí concedeu reintegração de posse à fazenda Brasília do Sul, que incide na retomada Guarani e Kaiowá Lechucha, na terra Taquara, próximo ao município de Juti, distante cerca de 300 quilômetros da capital.
“Nós entramos em contato com as lideranças, até poucos instantes nenhuma autoridade teria estado presente, tenho informações de famílias que perderam tudo, foi feita uma coleta pra ser levada até a comunidade, porque estavam passado fome e o que sobrou da doação foi queimado no ataque. Temos relatos de crianças passando fome, parte desses alimentos foi destruída, a comunidade está sem comida, sem casa”, contou Cleber, sobre a situação em Kurussu Ambá.
As lideranças relataram que além de ataques a tiros, os acampamentos foram queimados, destruindo moradias, alimentos e obrigando os indígenas a se refugiarem. Kurussu Ambá é um tekoha, lugar onde se é, dividido em três acampamentos.
Durante a manhã desta segunda-feira (1), Valdelice Veron, liderança da terra Taquara, explicou que as lideranças de Kurussu Ambá pedem socorro. “Queimaram toda a casa, espancaram e torturaram o Inocêncio, uma liderança, e também torturaram o sogro da liderança Gilmar Lopes, que se entregou no lugar do Gilmar. Ele está desmaiado e o Elizeu Lopes, liderança do Kurussu Ambá 3, também foi atacado com a comunidade do acampamento, ele fugiu e está machucado”, contou ela.
Cleber espera que o foco do novo ano parlamentar na Assembleia seja voltado a CPI do genocídio, que busca investigar o assassinato de pessoas indígenas no estado nos últimos 15 anos. “Esperamos que o foco agora seja voltado para a CPI do genocídio, para buscar as causas estruturantes dessa situação no estado, e também buscar os autores desses ataques que tem acontecido de forma frequente desde o final de 2014”.
Reintegração de posse pode expulsar comunidade em Taquara
Já em Taquara, o momento é de tensão. A comunidade recebeu o mandado de reintegração de posse, obrigando os Guaranis e Kaiowás a desocuparem as terras até o dia 08 de fevereiro, que está marcado para ser efetuada a ordem de despejo.
“Todo mundo está tenso e muito triste. Dona Julia, nossa matriarca, não vai aguentar. Ela chorou muito hoje e junto com todos os anciãos e familiares decidiu ocupar e não vai sair. Ela afirma que vai morrer aqui antes que as forças policiais cheguem”, contou Valdelice Veron.
A comunidade esteve em reunião junto ao Ministério Público Federal, representado pelo Antropólogo do MPF, Marcos Omero. Os indígenas irão recorrer da decisão. “Perdemos na 1ª instância, mas o MPF vai recorrer no TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª região)”.
“Diferente do que estão falando, nós não entramos na Sede da fazenda. Não queremos nada de lá. Também não queremos soja. A única coisa que queremos é a terra e a nossa fonte de água”, afirmou Valdelice.
Kurussu Ambá e Taquara
As duas terras são tekohas tradicionais do povo Guarani e Kaiowá. Acuadas pela omissão do Governo Federal no processo de demarcação, as comunidades estabeleceram retomadas ao longo dos últimos anos. No último dia 30, indígenas de Kurussu Ambá teriam retomado parte do território cerceado pela fazenda Madama, e os proprietários teriam reagido incitando os ataques de pistoleiros. A primeira retomada da comunidade aconteceu em 2007. Hoje, cerca de 300 pessoas vivem nos três acampamentos, que aguarda parecer da Funai de Brasília sobre relatório entregue por grupo técnico em dezembro de 2012.
Taquara também sofre ataques constantes, o último teria ocorrido no dia 24. A nova retomada incidiu sobre a terra conhecida como Lechucha, que integra o tekoha Taquara. Em 2003 o cacique Marco Veron foi assassinado após ser torturado e espancado por jagunços. Outras denúncias também contêm casos de estupros coletivos contra mulheres do tekoha. Atualmente a comunidade ocupa cerca de 300 hectares, divididos entre mais de 600 pessoas.
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Adendo de Combate Racismo Ambiental (enviado por Luiz Henrique Eloy Amado):
Decisão do juiz Pedro Pereira dos Santos
“DECIDO. Preliminarmente, rechaço a alegação de existência de conflito federativo alinhada pelo Estado de Mato Grosso do Sul, porquanto a União e a FUNAI não pugnaram pela intervenção no feito, enquanto que a DPU não atua na defesa de interesses da União, mas da comunidade indígena.
Ainda que diferente fosse, tal conflito, em ordem a ensejar a competência do Supremo Tribunal Federal, só se configura quando presente relevância suficiente para fragilizar os laços de harmonia da Federação (STF – ACO 1606 AGR/MS), o que não é o caso. Sem desmerecer a gravidade da denúncia, pretende-se com a CPI apurar simplesmente se um órgão de caráter privado tem contribuído de forma ilícita em invasões de terras pelos indígenas.
Ressalte-se que o Supremo Tribunal Federal tem afastado a existência de conflito federativo nas questões agrárias envolvendo interesse indígena até mesmo quando o Estado, a União e a FUNAI figuram no processo. Cito um precedente: AGRAVO REGIMENTAL NA AÇÃO CIVIL ORIGINÁRIA. FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO – FUNAI. DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. ETNIA GUARANI-KAIOWÁ. FAZENDA BRASÍLIA DO SUL. ÁREA ALIENADA PELO ESTADO DE MATO GROSSO. QUESTÃO SOBRE OCUPAÇÃO DAS TERRAS POR INDÍGENAS NA DATA DA ALIENAÇÃO. PEDIDO DE INGRESSO NO FEITO PELO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL. ALEGADO RISCO RESPONSABILIZAÇÃO COMO SUCESSOR DO ALIENANTE ORIGINÁRIO. INTERESSE MERAMENTE PATRIMONIAL. CONFLITO FEDERATIVO NÃO CONFIGURADO. INCOMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL (ART. 102, INC. I, AL. F, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA). AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO.(ACO 1606 AgR, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 06/11/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-234 DIVULG 27-11-2014 PUBLIC 28-11-2014)
Ademais, reconheço a competência da Justiça Federal para apreciar e julgar a presente ação, na forma do art. 109, XI, da CF: compete aos juízes federais processar e julgar a disputa sobre direitos indígenas. Note-se, conforme tem decidido o Supremo Tribunal Federal (RHC 117097, RICARDO LEWANDOWSKI), que a competência da Justiça Federal em relação aos direitos indígenas não se restringe às hipóteses de disputa de terras, eis que os direitos contemplados no art. 231 da Constituição da República são muito mais extensos.
No caso, a Assembleia Legislativa decidiu pelo desencadeamento de CPI tendo como objeto apurar, em síntese, se o CIMI incita e financia invasões de propriedades particulares por indígenas. Ora, a peça inaugural da CPI já admite que os beneficiários dos possíveis financiamentos são indígenas. Estes também estariam sendo alvo dos incitamentos. De forma que não é possível apurar os fatos atribuídos ao CIMI de forma isolada, desconsiderando as pessoas dos respectivos beneficiários. É óbvio, destarte, que a comunidade indígena radicada neste Estado tem o lídimo direito de contestar as propaladas práticas ou, se admitidas, defender a sua lisura. Acrescente-se que as ações consideradas ilícitas no ato de proposição da CPI estão ligadas a disputa de terras. Nessas circunstâncias considero que a Justiça Federal é competente para processar e julgar a presente ação, independentemente da manifestação da FUNAI negando-se a participar do feito e da omissão da UNIÃO quando lhe foi dada oportunidade de intervir ou não no processo. É que a competência não está sendo reconhecida com fundamento no art. 109, I, da CF, mas no art. 109, XI.
Por outro lado, não restou caracterizada a litispendência que aventei quando tomei conhecimento de outra ação versando sobre o mesmo tema. Como mencionei acima, a presente ação foi proposta e distribuída para esta Vara no dia 23 de novembro de 2015. Na mesma data determinei a citação do réu, o que se concretizou no dia 25 daquele mês e ano (f. 25). Por força do art. 219 do CPC, é a data da citação o marco para fins de aferição da prevenção ou litispendência. Por conseguinte, se porventura há litispendência entre esta ação e aquela distribuída para a 2ª Vara Federal – autos nº 00244887220154030000 (fls. 106-23) é aquele processo que deve ser extinto, porquanto, apesar de distribuído em data anterior, 21 de outubro de 2015 (f. 106), nele ainda não ocorreu a citação.
Pois bem. Segundo Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco as Comissões Parlamentares de Inquérito destinam-se a “reunir dados e informações para o exercício das funções constitucionais conferidas ao Parlamento” … não se controverte que tudo quanto se inclua no domínio da competência legislativa do Parlamento pode ser objeto de investigação. Numa federação, isso permite enxergar uma limitação de competência específica: uma CPI legislativa federal não pode invadir área da competência constitucional dos Estados ou Municípios (Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Saraiva, 2007, p. 816-7). Prosseguindo os doutrinadores transcrevem o art. 146 do Regimento Interno do Senado, que dispõe “não se admitirá comissão parlamentar de inquérito sobre matérias pertinentes: a) à Câmara dos Deputados; b)às atribuições do Poder Judiciário; c) aos Estados”. Acerca dessas limitações ensinou o Ministro Paulo Brossard no voto proferido no HC 71.039:”… de longa data se entende que o poder de investigar é inerente ao poder de legislar e dele ancilar ……a possibilidade de criação de CPI se não duvida, nem se discute; é tranquila, sobre toda e qualquer assunto? Evidentemente, não; mas sobre todos os assuntos de competência da Assembleia; assim, Câmara e Senado podem investigar questões relacionadas com a esfera federal de governo; tudo quanto o Congresso pode regular, cabe-lhe investigar; segundo Bernard Schwartz, o poder investigatório do Congresso se estende a toda a gama dos interesses nacionais a respeito dos quais ele pode legislar.(…) O mesmo vale dizer em relação às CPI estaduais; seu raio de ação é circunscrito aos interesses do Estado; da mesma forma quanto às comissões municipais, que hão de limitar-se às questões de competência do Município. … Enfim, o poder de investigar é ancilar ao poder de legislar e, por conseguinte, dele coextencivo. Esta a regra fundamental…. Se a Comissão Parlamentar de Inquérito é uma projeção da Câmara da qual emerge, seus poderes tem nos da Câmara a sua medida; nem mais, nem menos. … A criatura não é, nem haveria de ser maior que o criador. Desse modo a competência do Congresso, da Assembleia estadual, da Câmara Municipal, é o limite do poder investigatório da comissão federal, estadual ou municipal…. “A competência das comissões de inquérito deve comportar-se no quadro da competência do Poder Legislativo, escreve Raul Machado Horta”. ” … a competência do órgão delimita o campo operacional das comissões de inquérito, de modo geral, … o seu âmbito de investigação está sempre predeterminado pela área de competência atribuída ao órgão legislativo. A natureza instrumental da comissão de inquérito torna de óbvio entendimento a submissão do elemento acessório à competência do órgão que lhe dá vida” (Rev. De Direito Público, V. 5, p. 36…. Assim, se é verdade que a amplitude do poder de investigar acompanha o de legislar, do qual é coextensivo, forçoso será concluir que ele não pode estender-se ao que a lei não pode dispor … por mais amplo que seja o poder não pode ele transcender a fonte donde promana.
Logo, diante da competência privativa da União para legislar sobre populações indígenas (art. 22, XIV da CF), considero que a augusta Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul não detém competência para desencadear a CPI aludida nestes autos. Convém lembrar que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são de propriedade da União e destinadas à posse permanente dos ocupantes, na forma do art. 20, XI, da CF e art. 231, 2º, da CF. É importante ressaltar que as invasões de propriedades particulares por indígenas em Mato Grosso do Sul são, com raríssimas exceções, relacionadas a imóveis reconhecidos pela FUNAI como terras tradicionais indígenas, pelo que, se é certo que a FUNAI, União e MPF não avalizam atos de força praticados pelos silvícolas, invariavelmente defendem a permanência deles na área litigiosa.
Como se vê, os financiamentos e incitamentos que animaram os ilustres deputados a instalar a CPI não fazem parte de um contexto do qual só o CIMI participa. Nele devem ser inseridos os beneficiários dessas ações, ou seja, os indígenas, os quais, depois da obtenção da posse dos imóveis têm recebido o apoio de órgãos federais para que ali permaneçam, sempre com fundamento nos referidos arts. 20, XI, e 231, 2º, da CF, o que também reforça o interesse federal.
Segundo o Estado de Mato Groso do Sul seu interesse na CPI estaria ligado à segurança pública. No entanto, por força do art. 144, IV, da Constituição cabe à Polícia Federal exercer com exclusividade as funções de polícia judiciária da União, pelo que, aliás, como ressaltou o representante do MPF foi este o órgão encarregado do IPL desencadeado justamente para apurar a atuação no CIMI em invasões de terras por indígenas. O fato de a Polícia Militar ter sido requisitada pela Justiça Federal para auxiliar a Polícia Federal e/ou a Força Nacional nas reintegrações deferidas pela Justiça Federal decorre simplesmente da estrutura no tocante ao quantitativo de pessoal.
Diante do exposto e por reconhecer a legitimidade da Defensoria Publica da União para propor ação civil pública em favor das populações indígenas, sabidamente hipossuficientes, defiro o pedido de liminar para suspender a CPI desencadeada pela Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul, através do Ato nº 06/15 do Gabinete da Presidência.
Intimem-se. Notifique-se.
Manifeste-se a autora sobre a contestação apresentada, esclarecendo se pretende produzir outras provas.
Ato Ordinatório (Registro Terminal) em : 28/01/2016″