São Tomé e Príncipe: Não podiam ser chefes. Resistiam a ser escravos

São Tomé e Príncipe tem o peso de um tempo em que os casais mistos eram proibidos – homens negros a quem os pais brancos não quiseram dar o apelido, mulheres mestiças que viveram toda a vida amantizadas. A miscigenação fazia-se na clandestinidade.

Por  (texto), Dário Pequeno Paraíso (retratos) (vídeo), em Público

Um dia, a mãe de Isaura Carvalho decidiu, à revelia dos avós, ir viver com o homem por quem se apaixonara. Ela, negra, era a única filha. O avô não queria que vivesse como amante de um português branco, destino mais que provável para um casal misto naquele tempo. Mas os pais de Isaura “bateram de frente” um no outro e apaixonaram-se. Nessa altura não era permitido socialmente em São Tomé e Príncipe um branco e uma negra casarem-se, constituírem família, deixarem descendência mestiça. 

Isaura Carvalho (n. 1957) lembra-se das cartas que a avó portuguesa escrevia ao seu filho dizendo que “não queria uma preta na família”. Aos netos — ela, Isaura Carvalho, e os sete irmãos — a família paterna chamava “os mulatitos”. Havia até uma tia de Viseu que propôs ao pai de Isaura enviar uma das suas filhas para a “ensinar a ser costureira”. “A minha mãe esperneou”, lembra a historiadora e uma das fundadoras da Fundação Cacau, o mais dinâmico espaço cultural de São Tomé e Príncipe. Cada vez que chegava uma carta da metrópole, o pai de Isaura Carvalho tentava escondê-la para a mulher não perceber que ela, negra, “era sempre o objecto da rejeição”.

Viver com esta realidade não foi pacífico, conta: “Não percebia porque tinha de ser assim [, se todos os outros tinham famílias que se aceitavam].”

A mãe decidiu que não ia continuar a viver amantizada, como se dizia na altura. Quis, portanto, o estatuto de mulher casada — que acabou por conseguir, já Isaura Carvalho tinha uns “seis ou sete anos”. Afinal, a sua própria mãe já tinha vivido com esse estigma. “A minha avó não queria que a minha mãe passasse pelo mesmo. O meu avô não regressou a Portugal, vivia com a minha avó, mas nunca se quis casar. Deu a dignidade de uma esposa, mas não o papel — isso na altura era mesmo muito importante”, conta.

O avô foi administrador de uma roça e deixou de organizar eventos sociais porque a avó era negra e “não queria discriminá-la”. “Havia todas as proibições imaginadas. Em nova, a minha mãe quase não saía, [os meus avós] criaram uma redoma.” No final a redoma serviu para repetir a história familiar, e ela abandonaria a casa dos pais.

A família emigrou para Angola em 1964, justamente porque a mãe se queria distanciar: “Não havia muitos casais mistos — havia muitos mestiços, mas não casais. Estas famílias tinham de encontrar alguma protecção, a nossa foi sair de São Tomé e Príncipe.”

Ainda hoje a mãe de Isaura Carvalho não gosta de ir a São Tomé e Príncipe, vive em Lisboa. Isaura Carvalho regressou ao país depois da independência.

Muita da miscigenação em  São Tomé e Príncipe fez-se na clandestinidade. Manuel Jorge de Carvalho do Rio, 54 anos, director executivo da ONG Marapa, conviveu directamente com o choque racial durante a sua infância. A mãe era são-tomense e o pai português, branco, mestre-de-obras numa grande empresa agrícola. “Sentíamos o reflexo da raça. Havia escalões. Não gostavam que nós, filhos de branco, nos misturássemos com as sanzalas.”

Em  São Tomé e Príncipe, a mãe era a companheira não oficial do pai, português, branco. Tiveram cinco filhos. Oficialmente, o pai era casado com uma portuguesa, que vivia em Portugal com os outros filhos. “Isso prejudicou-nos, porque, como o meu pai era casado, não podia perfilhar os filhos cá, apesar de vivermos e convivermos com ele.”

Até morrer, o pai nunca deu apelido aos filhos são-tomenses, mesmo tendo-os educado durante a infância, mesmo tendo-lhes ensinado a ler e a escrever. Em 1975 houve o retorno dos portugueses que trabalharam nas roças e o pai de Jorge Rio foi um deles. “Se bem que houve alguns que ficaram na roça a trabalhar, mesmo na companhia de que fazíamos parte. Mas o meu pai tinha a sua família lá, cinco filhos em Portugal, portanto foi.”

Jorge teria 12 anos na altura. Levou-o ao porto, ao barco que partiu da ilha. Despediram-se, chorando. Nada podiam fazer. Manteve um contacto esporádico com o pai através de carta. Mas nunca mais se viram o resto da vida. Foi a mãe, sozinha, quem educou os cinco filhos. Mais tarde, já o pai tinha morrido, Jorge marcou viagem para Portugal. Foi ver a freguesia onde ele viveu, visitou a família portuguesa, que o recebeu, e aos irmãos são-tomenses, “muito bem”. Os irmãos portugueses “não atingiram os mesmos níveis” profissionais dos irmãos são-tomenses. “Sentimos também que a ausência do meu pai durante muito tempo prejudicou os filhos que estavam lá, não lhes conseguiu dar a formação que nos deu a nós.” Mas repete, magoado: “O grande mal é que o meu pai não nos podia reconhecer oficialmente como filhos, porque era casado — e nós não tínhamos culpa de ele ser casado. Isso foi uma marca que me deixou ferido. Ser gerado por um pai, conviver com ele, e não ser reconhecido… Até hoje não consigo engolir isso.”

Jorge e os irmãos conseguiram o apelido do pai depois de irem a tribunal, batalharem legalmente. Mas nunca deu o apelido paterno aos seus próprios filhos. Escolheu  Carvalho, em honra da mãe. “As pessoas não entendem porque é que nós não temos nacionalidade portuguesa se [somos filhos de um português] — e eu também não. Não tenho culpa de ter nascido na altura colonial. Conseguimos o registo só depois da independência, por isso não nos dão a nacionalidade.”

Eurocentrismo e colonialismo

Killa Z, 30 anos, rapper, faz uma música entre o tradicional e o contemporâneo. “Usei o rap e outros estilos modernos e fiz uma fusão com os estilos tradicionais como o tchiloli”, explica sentado num dos pátios contíguos à Casa da Cultura. Está numa salinha a produzir um disco com outros músicos, ao lado um homem pinta um quadro. O edifício de arquitectura colonial no centro da cidade tem as paredes exteriores degradadas.

“Se olhar à volta, é tudo colonial: está aqui, está no estado em que está e parece que são edifícios [feitos por colonos] que só eles mesmo é que conseguem gerir”, comenta com a sua voz pausada e ponderada.

É um crítico da desvalorização de África e do colonialismo, já reflectiu bastante sobre o tema, inclusivamente nas suas músicas. Antes da colonização, observa, África tinha reinos, sociedade, civilização, religião. “Mas entretanto começa o eurocentrismo, em que a Europa é o centro de tudo, e isso ainda se nota. São poucas as coisas aqui que são produtos nossos. Quando plantas uma bananeira, ela nunca vai dar maçã — plantaste para dar banana e ela vai dar banana. O colonialismo foi criado para que as sociedades estivessem hoje à mercê do que é o eurocentrismo.”

O resultado é que 500 anos depois São Tomé e Príncipe vive “numa dependência total do que é europeu”. “Temos uma independência política, mas em muitos casos foi feito copy-paste da Europa para cá. Quando África se afirmar no seu todo, vai-se fazer a reviravolta da História — de certeza que isso é uma das grandes preocupações dos países de primeiro mundo que preparam os destinos de África para que eles estejam sempre assim”, conclui.

Para muitos jovens como Killa Z é esta relação de São Tomé e Príncipe com África que se torna o foco da conversa sobre relações raciais. Katya Aragão (n. 1986) fez animação cultural, administração, “um pouco de tudo”, fez um talk show na Televisão São-Tomense, apresentou o jornal das 13h, é organizadora do evento Ted Ex São Tomé; nasceu em São Tomé e Príncipe, viveu em Angola e em Portugal, e relata o típico episódio que representa para si a mentalidade do colonialismo que perdura: “Há mais respeito se for um branco a dar uma ordem do que se for um preto, nacional.” Isso ela própria experiencia com a diferente forma de tratamento entre ela e o patrão branco feita pelo segurança da empresa onde trabalha.

Falta orgulho em ser são-tomense, em falar a língua (o forro), nota. Para determinadas pessoas, quem tem dinheiro ainda é o ex-colono, quem detém a maior parte das empresas é o ex-colono. “Até nos mais jovens [isso se nota]. Não tem nada que ver com racismo, tem que ver com o sentir que se deve uma obediência, com um complexo de inferioridade.”

Estudou na escola portuguesa e “tinha pouca relação com aquilo que é São Tomé e Príncipe”, confessa. Mas havia uma professora que ensinava o pan-africanismo, o que “foi muito importante”. “Acho que há necessidade de o pan-africanismo ser mais divulgado, é a partir daí que a identidade africana vai ser aprofundada. Aqui há uma grande mistura. Somos uma ilha e por acaso estamos no golfo da Guiné. Mas só me senti mais africana depois de estar num país africano, ver como os africanos do continente são realmente. E nós não somos como eles. Somos muito ocidentalizados, sofremos muitas influências e não pegamos no que é nosso. É normal que os miúdos estejam confusos e não saibam o que é isso de identidade africana, sobretudo quando não estão expostos a isso. Tenho tido necessidade de partilhar o meu despertar com outros colegas, com os mais novos sobretudo.”

A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie é uma das suas grandes inspirações. A verdade é que, querendo ou não, em África a ligação ao mundo ocidental é forte. Por exemplo, “há um grande movimento de cabelo natural dos afro-americanos nos Estados Unidos”, comenta, a rir. “Estamos a ser mais africanos, mas esse movimento vem dos Estados Unidos, de pessoas que nunca vieram a África.”

Tem umas longas tranças, cuidadas, e usa uma camisola com tecido africano. Edlena Barros, 29 anos, recebe-nos em sua casa no bairro do Quilombo. Bem no centro, o bairro é feito com casas pré-fabricadas. A sua casa de banho parece um cabeleireiro, comenta a rir, quando fala dos produtos que compra para o cabelo, muitos trazidos de fora.

Estudou no Brasil e agora trabalha como assistente de comunicação num projecto ligado ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Lamenta que em São Tomé e Príncipe o jovem que fala forro seja aquele que foi à procura — pois era uma língua proibida e non grata para a elite. A história de São Tomé e Príncipe é pouco ensinada, ainda para mais no seu caso, pois frequentou uma escola portuguesa “e a partir do 5.º ano era praticamente uma estrangeira, não estudava nada relacionado com São Tomé e Príncipe”, diz. “Para saber coisas sobre o meu país, precisei de ir consultar o livro de um estrangeiro.” Quanto ao colonialismo, era ensinado com uma “versão portuguesa dos factos”. “Quando se falava da época colonial, falava-se de todos os países por alto. Aprendíamos o que os alunos portugueses aprendiam. É uma visão muito simplista, acredito que é uma visão muito: ‘É o meu lado, defendo o que eu fiz.’”

Só mais tarde, quando tinha 14, 15 anos, é que começou a questionar esta versão dos factos.

Se pudesse voltar atrás no tempo, Maísa Bom Jesus preferia que não tivesse havido colonialismo. “Muito da minha cultura foi apagado, para além de sermos pequenos. Sinto que não somos tão africanos como os africanos da África continental. A cultura deles é muito mais evidente do que a nossa. A minha cultura é como se fosse café e leite e houvesse mais leite do que café no copo”, diz esta jovem, que estuda em Taiwan e está de regresso, a passar uma temporada em São Tomé e Príncipe.

“Colonizar um país, tirar o que é a raiz desse povo e transformá-lo em pequenos portugueses não concordo”, acrescenta. Maísa Bom Jesus nasceu na “segunda república e não sentiu na pele nada de negativo em relação ao colonialismo”. Nota muito da influência portuguesa, inclusivamente critica o facto de haver tanta ajuda lusa: “Ainda é como se fôssemos filhos de Portugal.”

E lembra-se de um episódio que espelha a diferença geracional na forma como se olha para o colonialismo. O avô tinha um jardim enorme, “a coisa que cuidava com mais carinho”. “Nós passávamos e pisávamos e estava sempre a ralhar. Dizia muitas vezes: ‘Meu Deus, os pretos não conseguem fazer nada, estão sempre a destruir tudo, é por isso que digo que os brancos é que sabem fazer as coisas.’ Se havia algo errado, era logo: ‘Os brancos é que têm de tomar conta de São Tomé.’”

Ora, ela consegue “criticar os portugueses”, algo que o avô “não conseguia fazer”.

Negar o racismo

O atelier do artista plástico Kwame de Souza, 35 anos, é um open space que lhe serve também de casa. Tem várias telas suas espalhadas pelas paredes, algumas inacabadas, o chão tem tintas. O dia está quente, a ventoinha alivia o calor. Kwame de Souza viveu em vários países africanos, como Angola e Moçambique, e viveu em Portugal, onde ainda vai regularmente. Agora vive entre Itália e São Tomé e Príncipe. Não gosta, não quer, não vê utilidade em falar de racismo em São Tomé e Príncipe. “Não existe branco nem preto dentro da minha cabeça. Temos muito para trabalhar. Estamos num país em que passa no telejornal o primeiro-ministro a preocupar-se com elevadores e água na torneira. Se ficar doente, agora apanho o avião para Lisboa. A diferença entre branco e preto importa? Não. A independência que estamos a festejar agora chama-se ‘dependência’. Isso é mais importante para mim do que a diferença que ficou lá atrás”, argumenta com vigor. “Não precisamos das pessoas que nos vêm chamar ‘pretinhos, coitadinhos’.”

Kwame diz que estudou o período da escravatura, mas nunca encontrou provas de que tenha realmente existido em São Tomé e Príncipe, nunca viu chicotes nas roças. “Houve escravatura onde? Nunca vi nenhum livro a dizer que são-tomense era escravo.”

Também afirma que um “são-tomense não lembra se existe um branco ou preto”. “Acho que até seria bom não lembrar que há diferenças raciais”, sublinha. Afirma: “Não sei se existe racismo. Existem algumas pessoas estúpidas. Torna-se cliché que todo o mundo bate na cena do preto e do branco. Eu não penso assim, o mundo hoje não pensa assim. Nós vamos encontrar branco estúpido, preto estúpido, chinês estúpido.”

Em suma: “Dizer ao povo ‘tu foste escravo’ não vai ajudar o meu país. Sou a primeira pessoa a apagar na mente do meu povo e a dizer: ‘Esquece essa merda, anda para a frente.’ Estar a remontar a merda da escravatura não ajuda a nada. O caminho para andarmos para a frente, para fazer o país crescer não passa pelo nosso passado. Não façam esse povo lembrar que foi filho de escravo. Não nos faz falta.”

Assim como “não é útil lembrar aos africanos que eles são inferiores”. “Falar de racismo, só o simples acto de falar, já é prejudicativo. Não me lembres quem eu sou, deixa-me ser quem eu quero ser. A ideia de que nós, africanos, somos inferiores não veio da nossa cabeça: alguém veio e tum-tum-tum.”

Inocência Mata, doutora em Letras e com pós-doutoramento em Estudos Pós-Coloniais, está de visita a São Tomé e Príncipe para as comemorações dos 40 anos da independência a 12 de Julho. Nasceu na ilha, onde fez quase todos os estudos até 1974 — depois viveu em Angola, em Portugal, agora está provisoriamente em Macau. Tem uma agenda preenchida com reuniões e encontros, conversamos num final de tarde no hotel onde está hospedada, junto ao mar azulíssimo.

 Diz que é preciso notar que mais de metade da população de São Tomé e Príncipe nasceu depois do 25 de Abril — é um país muito jovem. Dos cerca de 190 mil habitantes, mais de 64% tem até 24 anos, segundo os últimos dados, de 2014. É por isso normal que as marcas do colonialismo estejam “sobretudo na ideologia”, “não no quotidiano”. “É um país em que as memórias do colonialismo não estão presentes. E isso é bom e é mau. É bom, porque o país quer estar a olhar para a frente; é mau, porque é um país que assimila valores que são coloniais, mas não tem consciência que são coloniais.”

Ideologia da subalternidade

Os portugueses foram mais brandos porque se miscigenaram? “Quero lá saber com quem é que o colono dormia”, comenta Inocência Mata. “Dormia com a negra e ia-se casar com a branca”, diz, quando falamos da ideologia do luso-tropicalismo, que vingou e vinga entre muitos estudiosos e são-tomenses. “O colonialismo é abominável. Não faço esse discurso de que o colonialismo é mau, mas. Não, o colonialismo é mau, ponto. Porque é a sujeição de uma comunidade por outra. É dominação, espoliação, apropriação dos recursos naturais. É também um sistema em que existe a dominação cultural. Isto é porventura a parte mais negativa, na medida em que ela é perene, cria uma ideologia de subalternidade.”

Lembra-se bem do sistema colonial e da forma como era exercido. Em nova ia percebendo a injustiça do regime, porque o pai era “muito politizado”: apesar de altamente qualificado e de ser da elite, não podia ascender na profissão por ser negro, “trabalhava num sistema em que tinha de ensinar o metropolitano branco que vinha para mandar nele”.

Hoje, é uma professora (na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa) que faz questão de saber de cor os nomes dos alunos, porque nos anos 1970 tinha uma professora que nunca sabia os nomes dos alunos negros. “Lembro-me que ela me chamou Helena e eu disse-lhe: [‘Não sou Helena.’] Ela [respondeu]: ‘Vocês são todos iguais, não vos distingo.’”

A cor das pessoas contava durante o colonialismo, defende, “e quem disser o contrário está a dourar a pílula e a fazer do colonialismo uma contradição e um encontro de culturas”. Ora, “o colonialismo não é um encontro de culturas, o colonialismo estabelece uma relação de poder de uma cultura sobre a outra”. E “é a instrumentalização da cultura do colonizador para a dominação do colonizado: não que a cultura do colonizador seja, per se, uma cultura de dominação —  não, ela é instrumentalizada”.

Por outro lado, para muitos são-tomenses como Isaura Carvalho, a imagem do colonialismo não tem o peso que tem noutras ex-colónias. “Basta pensar que sou filha de um português, e neta de português, que a ideia do colono se suaviza automaticamente. Quando saímos de São Tomé, um dos destinos preferidos é Portugal. A nossa relação com o colonizador nunca foi de agressividade. Se nos perguntar: ‘Gostavam de voltar a ser colonizados?’ É claro que não. Não há nenhuma colonização que seja boa. O que fica das relações é que podem ser menos boas, no nosso caso com Portugal temos uma relação muito equilibrada.”

Essa “suavização” também tem sido a imagem passada na escola, nomeadamente na que dirige, o Instituto Diocesano de Formação, conhecida como “Escola Portuguesa” e frequentada “em 90% por são-tomenses”. Apesar de ter currículo português, também aborda a História de São Tomé e Príncipe. “A imagem não é do colono suave, a relação é que é suave”, esclarece. “É um passado que ficou, não podemos apagar. Mas temos o presente e o futuro.”

A luta pela independência nunca foi contra o indivíduo, mas contra o sistema, lembra. Isso explica também a ausência de conflito agora. “Se tomarmos como termo de referência a miscigenação, não acredito que o meu pai era racista. Mas o sistema era racista, estabelecia que os negros não tinham determinado tipo de capacidades e competências.” São Tomé e Príncipe foi uma colónia criada com o objectivo de produzir — açúcar, café, cacau. A relação com o colonizador foi “um bocado ambígua”, porque em determinadas situações os são-tomenses queriam ser parecidos com o colonizador, noutras rejeitavam. “Havia coisas no quotidiano em que reflectíamos essa vontade de sermos mais próximos. Se no período colonial não era bem visto que se falasse o forro, os nossos pais e avós também não queriam que falássemos.”

São Tomé e Príncipe é um país de fundação colonial, lembra Inocência Mata. Quando os portugueses chegaram, as ilhas estavam desabitadas. O primeiro são-tomense, “vamos chamar assim”, é mestiço — não apenas em termos de branco e negro, mas de mestiçagem interafricana. “É aquele indivíduo que nasceu aqui tanto filho de africanos que vinham de regiões diferentes, como filho de escravos e de senhores.”

A primeira carta de alforria que o rei concede a pessoas nascidas em São Tomé e Príncipe é em 1520, diz. E durante 300 anos o país torna-se entreposto de escravos. “Uma sociedade que nasce a partir de relações de escravidão, de uma estrutura escravocrata, é obviamente uma sociedade que traz na sua génese um problema racial.”

O estatuto do indigenato, que dividia as populações de Angola, Moçambique e Guiné-Bissauentre indígenas e assimilados e colonos, estes com mais direitos, e que vigorou até 1961, não se aplicava aos naturais de São Tomé e Príncipe e Cabo Verde. “A conferência de Berlim não terá tido o impacto que teve noutros países continentais, em que houve a partilha a esquadro e régua dos territórios. Mas quando as roças aceitam os contratados de Angola, Moçambique e Cabo Verde, as relações complexificaram-se, porque passou a haver não o grupo de negros e brancos, metropolitanos e naturais, mas um grupo de metropolitanos, naturais e um outro grupo que estaria na base da pirâmide, os contratados. Entre os contratados havia os cabo-verdianos que vinham voluntariamente para as roças por causa da fome — havia diferenciações mesmo dentro do grupo dos contratados. Os naturais de São Tomé e Príncipe [os chamados ‘forros’] interiorizavam essas diferenças, essa hierarquia. Ainda durante o colonialismo temos relações internas entre os africanos de grande discriminação.”

A ideia de forros como um grupo superior tem assim as suas raízes na história. “Os forros não participaram nos trabalhos forçados [nas roças] no século XX — era mão-de-obra importada. Quando são introduzidas as culturas do cacau e do café, as terras desses forros são expropriadas pelos brancos que começam a chegar às ilhas para fundar as grandes companhias. As grandes roças são fundadas no século XIX e os forros são expropriados, perdem essas terras que lhes são retiradas. As roças eram verdadeiros Estados. Há relatos de pessoas que não saíam de lá, havia tudo, hospitais, etc.”

A recusa de são-tomenses trabalharem nas roças dá origem ao massacre de Batepá em 1953, quando, seguindo ordens do coronel Carlos Gorgulho, mais de mil são-tomenses (calcula-se, não há dados exactos) foram mortos por se recusarem a trabalhar — este é um episódio que espelha a violência do colonialismo português, mas pouco divulgado em Portugal.

“Tratados como cães”

Teotónio Torres, 88 anos, economista, tinha 25 anos quando se deu o massacre de Batepá. “Foi a pior fase da minha vida”, conta, sentado no sofá da sua sala de estar, num bairro de moradias baixas e cores de terra. “Um dia saía eu de casa, quando me dizem: ‘Morreram 29 homens na cadeia.’ Presos da Trindade chegados à cadeia, encerrados numa cela e de madrugada, depois de muito gritarem, abriram a porta, caíram mortos 26 ou 27. Eu fiquei como louco: como era possível que se matasse tanta gente?”

Crítico do sistema colonial, Teotónio Torres diz que até hoje não acredita “na comunidade lusófona”. Não se lembra de qualquer convívio mais próximo com os portugueses — dava-se bem com o chefe, mas ele nunca o convidou a ir a sua casa, “nunca”, nem se lembra de um europeu tratar os são-tomenses de “igual para igual”. “Havia sempre preconceito, e até hoje há. Europeu supõe-se superior aos outros.” E comove-se, pede desculpa: “Se me passasse pela cabeça deixar de ser independente, morria. Só de pensar nisso me vêm as lágrimas aos olhos. Não trocaria um minuto de vida para voltar ao tempo colonial. Éramos tratados como cães e hoje somos homens, quer queiram, quer não queiram. Nós somos donos disto.”

Os portugueses estiveram em São Tomé e Príncipe com duas grandes prerrogativas, lembra o escritor Albertino Bragança: “O direito de resgate da costa africana e ‘o direito a uma mulher negra para dela se servir e a dita ilha povoar’, na linguagem daquele tempo.” Um dos contos que Albertino Bragança escreveu chama-se Preconceito, baseado no preconceito contra os descendentes dos contratados nas roças. “As relações amorosas entre um filho da terra e um contratado eram impensáveis e eu pus isso no fim do conto.”

Ex-futebolista amador, 78 anos, Albertino Bragança viveu em Portugal para onde foi em 1964 jogar na Académica de Coimbra — estudou Engenharia e regressou em finais de 1975-76 a São Tomé e Príncipe. Em casa tem fotos dos seus tempos de jogador. É uma moradia no centro da cidade onde tem um escritório com livros seus e de outros autores. Fundador do Partido de Convergência Democrática, foi deputado até 2014 — e foi ministro da Defesa, ministro dos Negócios Estrangeiros, ministro da Educação, Cultura e Desporto.

“O combate que se fez a línguas nacionais e a alguns aspectos da cultura nacional foi completamente despiciente e foi tão forte que hoje, 40 anos depois da independência, não somos capazes de assumir alguns aspectos da nossa cultura que a meu ver são essenciais para afirmar a nossa identidade”, critica.

Lembra que o racismo chegou muito ao desporto, sobretudo depois da guerra em Angola em 1961, e que havia grande tensão nos jogos de brancos contra pretos: “Os clubes eram o único espaço onde brancos e negros podiam estar em contacto.” Na assistência os brancos sentavam-se de um lado, os negros do outro.

“Em São Tomé e Príncipe nunca se esteve habituado a confrontos directos entre negro e branco.” Não havia leis a separar oficialmente as pessoas, mas a verdade é que os espaços estavam delimitados, recorda, a vincar a “ideia de supremacia do branco sobre o negro, da discriminação no emprego, dos lados opostos nos campos de futebol”.

“Campos de concentração”

Damos uma volta na Roça Agostinho Neto com a historiadora Nazaré Ceita, 50 anos, que nos mostra como eram verdadeiras “regiões autónomas”. Estamos na Casa Grande e ao fundo vemos o hospital, até há pouco tempo o lugar onde muitos são-tomenses nasceram. Está completamente abandonado, com água a escorrer no chão, buracos, gente deitada à porta.

À beira da estrada que une os dois edifícios há casebres e muita gente em grupo, pessoas que ficam debaixo das árvores a protegerem-se do calor, miúdos a brincar. Há uma escola e o terreno é imenso, com casas que foram sanzalas e outras construídas depois da independência — aqui vivem milhares de pessoas. Um dos trabalhadores leva-nos a ver cacau fresco e indica-nos a estrada por onde apenas os patrões brancos podiam passar. As roças são hoje uma espécie de metáfora do colonialismo português, grandes edifícios, estruturas imensas, que um dia simbolizaram a imponência do poder imperial, mas que hoje têm bolor, estão a cair — abandonadas, ninguém lhes pega. São também bolsas de pobreza onde crianças descalças e com camisolas sujas e rotas lutam por um lápis de cor.

“Nas roças as pessoas sentem-se mal, porque sabem que foi aí que a população serviçal sofreu bastante — essa marca do castigo, dos maus tratos fica”, explica Nazaré Ceita. A historiadora está neste momento a fazer uma investigação para a qual entrevistou mulheres que foram serviçais. “A primeira coisa de que falam são os vários castigos que sofreram — corporais, humilhação sexual, a utilização do corpo pelo patrão. Há vários relatos desses entre as trabalhadoras rurais — algumas delas eram vítimas de assédio sexual pelos seus pares e pelos patrões.”

Fernanda Pontífice (n. 1955), reitora da Universidade Lusíada desde 2006, ex-ministra da Educação e Cultura, acha que o que se “passava nas roças deixou uma memória muito má dos brancos”, comenta numa das salas de aula da universidade. “Porque havia o pelourinho onde as pessoas eram chicoteadas, quer homens, quer mulheres — embora já se tivesse abolido, a escravatura era um regime serviçal quase escravo. O homem branco era identificado com tudo isso, com racismo e repressão. Quando olhamos para o panorama do que hoje são as antigas roças, uma das leituras que faço foi uma espécie de mandar cá para fora toda a raiva, uma reacção violenta à violência a que foram sujeitos ao longo dos anos. As casas grandes foram todas destruídas.”

João Carlos Silva, fundador da Cacau, chefe de cozinha, autor e protagonista dos programas de televisão Na Roça com os Tachos e Sal na Língua, cresceu numa roça. É na roça onde agora tem um restaurante e pousada, São João dos Angolares, um edifício colonial recuperado, que nos recebe. A varanda enorme de madeira tem vista para o mar e para a enorme mata, os livros numa mesa à entrada convidam ao lazer. A cozinha está à vista: os tachos e as papaias, o cacau, a cajamanga, o peixe usados no menu tropical que será servido.

A vida nas roças durante o tempo colonial de que se lembra era bem diferente desta enorme tranquilidade e exotismo. Nasceu e cresceu numa roça ali perto, depois o pai seria transferido para outra, mais próxima da cidade. “A minha infância foi feita quase toda no meio de cabo-verdianos”, comenta. As roças, descreve, faziam lembrar “campos de concentração nalgumas situações”: “Eram fábricas a céu aberto. O meu avô trabalhou num dos hospitais e tinha indicações muito claras: um trabalhador só podia ficar [internado] três dias, porque senão a máquina deixava de dar rendimento.”

Essa memória, e o que ouviu contar, fá-lo pensar que São Tomé foi das “coisas mais terríveis do império colonial”. “O meu pai conta-me histórias terríveis de justiça privada nas roças, o abuso descontrolado e ilimitado dos patrões em relação aos próprios trabalhadores” — algumas delas o próprio João Carlos presenciou, como sevícias, maus tratos, abuso. Por exemplo, não era possível sair de uma roça para outra sem uma guia. “As pessoas estavam reféns.” Quando se fazia a contagem de pessoal às cinco da manhã, já havia capim apanhado “que não entrava na conta do trabalho”. Os trabalhadores saíam de manhã cedo e voltavam às 17h-17h30; a partir das 18h-18h30 “já não podiam falar”.

Isto são coisas que deviam constar nos livros de História e que não constam, considera. “Os próprios são-tomenses ainda não estão a escrever a sua história. A história ainda é escrita pelos colonizadores, feita por gente que tinha interesses que não os nossos. Um autor são-tomense dizia que os portugueses estiverem entre nós, não estiveram connosco. Claro que temos de ter a capacidade de redesenhar o nosso país e nunca se parte do zero”, comenta.

Os frutos proibidos

A geração de João Carlos Silva, como a de Fernanda Pontífice, é a que aprendeu nas aulas de História mais sobre Portugal do que sobre São Tomé e Príncipe. Como diz a reitora: “Na 4.ª classe tínhamos de ter um conhecimento de toda a geografia [de Portugal] e, paradoxalmente, não sabíamos nada da história de São Tomé e Príncipe, também não sabíamos nada da geografia do país — sabíamos que o pico mais alto era o pico de S. Tomé na ilha de São Tomé.” “Era como se as nossas coisas não tivessem dignidade para serem estudadas.” Conta este episódio: “Veja só, os nossos professores mandavam fazer redacção sobre os frutos. E os frutos que nós conhecíamos era manga, cajamanga, mamão, abacate, jaca, anona. Mas se puséssemos esses frutos os professores riscavam, tínhamos de pôr uvas, maçã, pêra, coisas que nunca tínhamos visto! Era uma espécie de negação que levava a negarmos a nossa própria cultura.” E, já adulta, teve um professor que dizia: “Não sei o que andam cá a fazer, porque a raça negra vai desaparecer.”

Fernanda Pontífice foi uma espécie de discípula da poeta Alda Espírito Santo — um dos rostos femininos do nacionalismo africano que conviveu na Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, com Amílcar Cabral, Agostinho Neto ou Mário Pinto de Andrade. Lembra-se dos livros que leu por sua influência, muitos deles clandestinos, muitos deles “tinham que ver com a questão da negritude”.

A sala de aula onde conversa fica em frente ao Liceu Nacional, um edifício enorme de arquitectura do Estado Novo. O bairro onde está implantada a universidade era “só habitado por portugueses” e “os cães intimidavam”, assustavam as crianças que iam apanhar frutos das árvores. “Havia uma espécie de segregacionismo velado. Havia empregados negros, mas não os víamos como nossos.”

O racismo manifestava-se através das notas, por exemplo. “Uma das razões por que o meu pai me acompanhava nos estudos era porque dizia que eu tinha de estudar para ter mais do que 10.” Fernanda tinha uma colega de carteira branca a quem fazia os trabalhos de casa que conseguia ter nota 15, enquanto ela tinha 11 valores, “uma injustiça muito grande”. “Muitos de nós não éramos vítimas directas de racismo. Ao mesmo tempo havia uma política de assimilacionismo que se fazia através de instituições como a Mocidade Portuguesa, o liceu. Portugal era tido como multirracial e nós fazíamos parte desse multi. Estávamos integrados, havia uma tentativa de nos assimilar com esses valores.”

A imposição dos valores e culturas deixou marcas. Quando se deu a independência, adoptou-se um regime socialista, de partido único (o MLSTP, que durou até 1990), e todas as plantações de cacau foram nacionalizadas. Depois distribuíram-se as terras, mas não se sabia “o que fazer com as roças, porque eram muito grandes”: “Já estavam a cair antes no tempo colonial, foi um modelo que não deu”, comenta Jorge Coelho (n. 1958), candidato à Presidência da República em 2011, e a preparar um romance histórico sobre a escravatura.

Para este homem, que viveu anos nos Estados Unidos e tem um sotaque em que isso se nota, os são-tomenses ainda carregam a “marca para obedecer, uma marca da escravatura”: ao mesmo tempo que “a discriminação e maus tratos criaram revolta contra esforços, sacrifícios, geraram também o hábito de esperar que alguém faça, conduza”. Um dos efeitos da opressão racial foi ter deixado “um complexo de inferioridade” em alguns, “a tendência para achar que tudo o que um branco faz é melhor e o que vem de fora é melhor”.

Também para Isaura Carvalho essa é uma das grandes marcas deixadas pelo colonialismo. “Continuamos a ser uma sociedade mais servil do que civil”, observa a historiadora sentada na Fundação Cacau, um armazém enorme onde há restaurante com música ao vivo e uma ala grande com exposições — nas paredes vemos fotografias antigas das roças, uma extensão imensa de trabalhadores a descaroçar o cacau, por exemplo. “Estamos muito dependentes do Estado e do exterior [quase 100% do Orçamento do Estado vem da ajuda externa], como se estivéssemos sempre à espera que alguém desenhasse o percurso do país”, continua.

A historiadora passou parte da vida a conviver com pessoas de outras origens, viajou, confirmou que era uma pessoa igual a outra qualquer: “Fui experimentada em várias situações, trabalhei fora de São Tomé e Príncipe e pude constatar que eram as minhas capacidades que prevaleciam relativamente à minha cor da pele. Isso, quer se queira, quer não, ajuda-nos na luta pela afirmação. Considero-me privilegiada, mas grande parte da população vive esta realidade que é confrangedora: somos livres, mas continuamos a ter a postura servil que ainda é muito inconsciente.”

Advogado e sócio de uma empresa de prestação de serviços de segurança, Filinto da Costa Alegre (n. 1952) acrescenta: “Na senda do que foi o colonialismo continuamos com desigualdades profundas, cada vez maiores.” “A classe política é muito pouco eficaz e tem sérios problemas — não se identificam com os interesses dos são-tomenses em geral, por isso as desigualdades aprofundam-se.” Lembra que a pobreza em São Tomé e Príncipe tem origem no colonialismo, quando as terras foram usadas para produzir café e cacau e pertenciam sobretudo aos colonos. “Os nativos só muito dificilmente tinham acesso a esta produção de produtos de exportação — tinham sido espoliados e isso excluía os sectores mais produtivos”, comenta.

Não tem dúvidas: “O fundamento do colonialismo era o racismo. A linha de fractura era a raça e nós éramos a raça inferior que precisava de ser civilizada — nós estávamos fora do mundo civilizado, era através do colonialismo que podíamos aspirar a ser cidadãos. Sendo um fenómeno histórico, social, não é algo que se varra com a proclamação da independência: o racismo criou um sistema desigual, discriminatório e, mesmo quando o poder que o sustentava foi erradicado, os seus efeitos perduram. Essa situação prevalece.”

Mas “a memória dos homens é muito curta”. Eduardo Malé, 42 anos, artista plástico e professor no liceu, conta que já teve uma obra sua censurada, Os Comedores de Dinheiro, sobre a corrupção em São Tomé e Príncipe. A trabalhar num projecto para a comemoração da independência a 12 de Julho, Eduardo Malé encontra-se connosco na inauguração da exposição de outro artista com a t-shirt pintalgada. Conversamos depois em sua casa, um espaço junto ao mar num dos bairros periféricos da cidade. Ouvimos as ondas, enquanto conta que se lembra de ter ideias muito diferentes das dos seus pais sobre o colonialismo, que lhe diziam muitas vezes: naquele tempo “não havia liberdade, mas havia comida”. “Aquilo feria-me: então mais importante não é eu poder ter liberdade, dizer o que penso?!”

Quarenta anos passados, porém, nota que continua a haver “uma espécie de neocolonialismo nos dois sentidos”. “E aqui não acuso só Portugal, mas os europeus, os americanos, os chineses.” Por exemplo, a questão dos vistos: “Fala-se muito de que o mundo é global: é mentira. O mundo é global só para a Europa, para a América. O africano vai para a Europa e é logo: ‘Tem visto? Tem autorização? Quem mandou vir?’”

Bisneto e tetraneto de angolanos, de gente que veio de Angola, Eduardo Malé lembra-se de a mãe se juntar com as irmãs e falar “a língua de Angola”. “Lembro da minha mãe contar que perante uma situação de incumprimento ou falta o branco punha o preto a andar em cima da casca de caroço — que é tipo lâmina. Isto é uma raça sobrepor-se a outra. A raça é uma questão mental. É tão simples. Gostamos dos cães, independentemente de serem brancos, castanhos ou cinzentos, às pintas ou malhados. Podíamos fazer isso a um cão: ‘És preto, sai daí.’ Então, porque é que fazemos isso com o ser humano?”

 

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