Caso Kenarik expõe contradição entre o Estado de direito e o policial-penal

Enquanto desembargadora que expediu alvarás a presos que já tinham cumprido suas penas é perseguida, em outras situações do sistema de justiça do país a prisão preventiva é utilizada abusivamente

por Eduardo Maretti, da RBA

O caso da desembargadora Kenarik Boujikian mostra uma contradição do Judiciário brasileiro. Em algumas situações, e dependendo de visões aparentemente subjetivas de juízes, existe um rigor draconiano na utilização das prisões preventivas, por exemplo. Por outro lado, a magistrada Kenarik é objeto de uma representação no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) por ter cumprido a lei, segundo juristas e advogados, ao expedir alvarás de soltura a dez presos que já tinham cumprido suas penas em regime de prisão provisória (ou cautelar). Ela é acusada de ferir o princípio da colegialidade ao mandar soltar os presos.

“O que está acontecendo com ela é um absurdo. A conduta da juíza é liberar os presos quando do efetivo cumprimento de pena. A acusação, oficialmente, é que ela teria liberado esses presos, mas ela não fez nada mais do que sua obrigação. É inexplicável você cumprir seu dever como agente público e ser punido por isso”, diz o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), seção São Paulo, Martim de Almeida Sampaio.

Sampaio considera revelador o paradoxo que, segundo ele, pode ser ilustrado pelos casos de Kenarik e pela Operação Lava Jato. “Esse paradoxo é bastante interessante. Temos uma desembargadora que adota a linha do garantismo legal, cumpre o que a lei determina e está sendo perseguida por isso. De outro lado, o que vejo é a utilização de prisão quando diversas pessoas são inofensivas do ponto de vista de perigo para a sociedade, têm a presunção de inocência e acabam sendo presas preventivamente em situações em que a prisão é utilizada como instrumento de coerção.”

Na opinião do advogado da OAB-SP, esse paradoxo aponta “para a contradição entre o Estado democrático de direito e o estado policial e penal para o qual estamos caminhando”.

O professor de Direito Processual Penal da Universidade de São Paulo Maurício Zanoide de Moraes, autor de parecer encomendado pelos advogados criminalistas Igor Sant’Anna Tamasauskas e Pierpaolo Cruz Bottini, do escritório Bottini & Tamasauskas Advogados, avalia que Kenarik “de fato cumpriu a lei e a Constituição”.

“Se havia pessoas que estavam presas há mais tempo do que o determinado, ela até diminuiu a responsabilidade civil do Estado, na medida em que a Constituição determina que o Estado pague indenização a quem esteja preso além do previsto na sentença”, diz.

Segundo Moraes, quando o caso está submetido ao tribunal, o juiz responsável pela causa penal é o desembargador relator, até que o colegiado se manifeste. Até esse momento, o relator representa o tribunal. Essa é precisamente a posição de Kenarik nos dez casos em que expediu alvarás de soltura. “Quando o caso vai ao tribunal, quem é o ‘juiz da causa’? É o tribunal. Na pessoa de quem? Do relator. Nos casos da juíza Kenarik, a relatora é ela.”

O professor da USP cita ainda outro argumento a favor de Kenarik. O CNJ, há cerca de cinco anos, tem manifestado preocupação de fazer um controle maior sobre as necessidades de encarcerar as pessoas, considerando que o Brasil tem uma taxa de encarceramento cautelar muito alta de pessoas presas sem pena definida. Segundo ele, cidadãos nessa condição chegam a ser aproximadamente 50% de todos os presos.

Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça divulgados em junho de 2015, o Brasil, com 607 mil presos, tem a quarta maior população carcerária do mundo. Fica atrás apenas de Estados Unidos (2,2 milhões), China (1,6 milhão) e Rússia (673 mil).

“O CNJ tem duas preocupações. Primeiro, retirar do presídio as pessoas que estão presas de maneira excessiva, ou seja, além do que foi determinado. Segundo, reduzir a incidência de prisões cautelares. A juíza Kenarik se encaixou em ambas perspectivas do CNJ. Ela verificou que havia pessoas presas além do que a lei permitia, e fez uma análise de desencarceramento, porque não era necessário, já que a pena já estava cumprida.”

Em seu parecer, Moraes diz que Kenarik não feriu o princípio da colegialidade. “A representada não retirou a matéria por ela decidida da esfera de competência do órgão colegiado. Muito ao contrário, informou-o e a ele encaminhou-a para seu amplo conhecimento e debate”, argumentou.

A representação contra Kenarik foi pedida pelo desembargador Amaro Thomé Filho. No final de 2015, o desembargador Xavier de Aquino propôs a instauração de processo administrativo disciplinar contra Kenarik. O processo foi interrompido por pedido de vista dos desembargadores Luis Soares de Mello Neto e Antonio Carlos Tristão Ribeiro, no dia 27 de janeiro.

Imagem: Com mais de 600 mil presos, Brasil é o quarto país que mais encarcera, atrás de EUA, China e Rússia (EBC)

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