Não precisava…

Por Lara Schneider

Ontem, no mercado, conheci um senhor: chapéu de palhinha, negro, rosto comum, pessoa comum, com história não tão comum assim… Enquanto a gente estava na fila, começamos a conversar (e eu achei que iria cair naquela conversa do tempo, do calor… aquelas conversas impessoais com verniz de civilidade). Mas, não.

Ele me falou que estava vendendo a casa dele, e narrou toda a luta que foi a construção dessa casa, que fica em bairro pobre, periférico, que fica junto a um monte de outras casas que misturaram cimento, sonho e suor. Quem acha que casa sai se erguendo sozinha, nunca viu a luta que isso significa… E ele seguiu dizendo do quanto gostava, desde sempre, de colocar a cadeira dele na calçada e tomar a ‘fresca’ até umas onze da noite… e falou do quanto a mulher dele era ‘amigueira’ e de como eram solidários os vizinhos dele.

Eu escutava, assentia, educada, aquela coisa meio previsível de quem escuta narrativa alheia e nem sabe muito aonde a conversa vai levar, e fica pulando entre a atenção à fila que demora (será que andou?!) e a história do senhorzinho. Pergunto: “mas, se o senhor e sua mulher gostam tanto do bairro, do lugar, por que o senhor quer vender a casa?”. Justo aí, a história passa a me dizer respeito, porque tragédia diz respeito a todos (mesmo que muitos neguem a sua participação nelas). “É que mataram meu filho, dona. Demos um de tudo… menino novo. Gostava de tocar o tal de sax. Quis celular e eu e mãe economizamos pra dar de presente. A gente fez tudo o que podia: vestimos, demos comida, dava conselho…”. E ele me olha, buscando ombro, compreensão: porque é duro um pai questionar se fez o melhor que podia, é duro ter um filho morto no colo e tentar entender o que houve, quais curvas foram feitas, em que encruzilhada (será?!) que se errou em algo.

“Dona, é difícil. Perdi o gosto do lugar, perdi o gosto da casa. Foi eu e mãe tentando lutar contra o mundo pro meu filho não fazer bobagem, o mundo é muito ‘brilhoso’ e não é todo desse brilho que pobre pode pensar em ter… um dia, umas amizades que a gente não gostava, chamaram ele… e ele tava com uma arma de brinquedo. Ele fez bobagem, queria essas coisas de brilho… Pegaram e deram quatro tiros e mataram o menino. Não é questão, dona, de se o menino estava certo, pois sou temente a Deus e sei que ele fez errado… mas, precisava darem quatro tiros no menino? Morri junto, dona. Vou vender a casinha.”

Minha vez na fila chegou. Dei um abraço, que era o mínimo que eu poderia dar além das lágrimas que eu disfarcei. Lembrei de todos os meus por quês. Lembrei de tudo. A gente também se resgata na dor. Mas, não precisava ser assim.

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