Por Terra de Direitos
Com 48 anos de idade, dos quais 16 foram vividos nas ruas, Maria Lucia Santos Pereira da Silva, da coordenação do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), levará à cúpula da mais alta organização de direitos humanos do planeta – o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), a voz e a experiência de quem sabe o que é não ter direitos.
Membro do Conselho Nacional para o Acompanhamento e Monitoramento da Política de Pessoas em Situação de Rua, Maria Lucia foi eleita como representante pelo próprio MNPR para comentar as recomendações da Relatoria Especial de Moradia Adequada, que traz nessa edição a discussão relacionada ao homelessness (termo inglês que equivale ao que compreendemos por ‘população em situação de rua’), no próximo dia 4 de março, em Genebra.
Militante desde 2008, a liderança se prepara junto ao movimento para reunir o material que levará à ONU. Segundo Maria Lucia, a visibilidade que a oportunidade traz é crucial para fortalecer o movimento e fomentar a discussão acerca dos direitos da população em situação de rua invisibilizada em todo o mundo. “Não é exclusividade do Brasil”, como destaca.
O objetivo maior, segundo a liderança, é conquistar a articulação política necessária para a realização de um seminário que fomente o debate a nível internacional. “Com todos esses imigrantes fugindo de guerras, é melhor começarmos a pensar no que fazer, porque as ruas não vão suportar tanta gente”, ressalta Maria Lucia.
Os homeless e a questão da moradia adequada
O relatório produzido pela relatora especial Leilani Farha analisa como a falta de moradia adequada se configura como uma violação de direitos humanos. O material foi construído a partir das respostas de 25 representantes dos Estados-parte e da sociedade civil, durante encontro realizado em Buenos Aires, em 2015. A Terra de Direitos contribui para a construção do documento.
O relatório aponta que o aumento da população em situação de rua – constatado no mundo todo – está diretamente relacionado com a crise global de direitos humanos e com o aumento da desigualdade na riqueza e propriedade. O documento perpassa questões de gênero, etnia, saúde mental e relata diversas violações as quais essa população está submetida.
Além da evidente situação de violência e insalubridade, a população em situação de rua não acessa diversos outros direitos básicos e essenciais à vida digna devido à falta de moradia adequada. Segundo o relatório de Farha, mesmo nos Estados em que existem recursos adequados para solucionar a situação dos homeless, o problema é raramente tratado como uma violação dos direitos humanos que exige medidas positivas para eliminá-lo e para prevenir a sua recorrência.
“A questão da habitação é central por que dela depende várias outras. Não se tem acesso a saúde ou trabalho sem que se tenha pra onde retornar no fim do dia”, avalia Maria Lucia. Contrariando o estigma de que as pessoas estão na rua por opção, a liderança do MNPR resgata sua própria vivência nas ruas e afirma que o problema está na falta de políticas públicas específicas para essa população.
“Os governos precisam se mobilizar pra fazer a inclusão desta população em habitações adequadas, por que é um público diferenciado”, destaca. A afirmação, ela explica, se deve ao fato de que muitas pessoas são tiradas das ruas e realocadas em locais que não compreendem suas necessidades, como no caso de pessoas com necessidades especiais e problemas de saúde.
Segundo Maria Lucia, a indiferença do Estado é generalizada já que quem efetiva as leis e as faz chegar de fato às populações mais vulneráveis são as prefeituras, que preferem devolver verbas a investir em políticas necessárias, o que demandaria estudos e análises específicas nos quais o governo não parece interessado.
“É muita vergonha que ainda encontremos tantas pessoas dormindo na rua, violentadas, espancadas, assassinadas, sofrendo todo tipo de preconceito cotidianamente. A única coisa que queremos é garantir minimamente a vida de cada um, e o governo não pode virar as costas pra isso”, declarou.
No Brasil, não existem dados oficias que indiquem a quantidade de pessoas que dormem nas ruas do país – a população em situação de rua não é considerada no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A falta de números prejudica o repasse de verbas para políticas públicas voltadas para esse grupo.
Política Higienista
Maria Lucia conta que a violação de direitos da população em situação de rua se acentua em momentos próximos à realização de grandes eventos. Agressões, assassinatos, ou a remoção à força são alguns dos episódios que puderam ser observados durante a Copa do Mundo. Não raro, as pessoas que estão nessa situação são colocadas dentro de ônibus e são levadas a outras cidades. Em paralelo à realidade vivida por mais de 5 mil pessoas em situação de rua na capital fluminense, a cidade se prepara para sediar em 2016 as Olimpíadas, maior evento esportivo do planeta.
Prioridade atual dos governos municipal e estadual do Rio, os preparativos para as Olimpíadas de 2016 evidenciam o interesse do Estado em “limpar” as ruas para receber os turistas. A lógica higienista, racista e genocida presente na história da política de segurança pública do estado pretende excluir a populações em situação de rua numa tentativa de maquiar a cidade.
Vítimas do abandono social e totalmente invisibilizadas, muitas pessoas relatam abusos de autoridades e de agentes das casas de acolhimento. A prefeitura, grande anfitriã, segue com o recolhimento compulsório, prática ilegal, onde muitas crianças, idosos e pessoas portadoras de doenças mentais têm direitos básicos violados em nome da arrumação da casa.
Em Curitiba, práticas semelhantes foram observadas durante a época da Copa do Mundo. No centro da cidade, os pertences das pessoas em situação de rua foram retirados pelas equipes de limpeza pública ou por agentes da Fundação de Ação Social.
A lógica higienista na capital paranaense também vem ganhando grandes proporções. A Associação Brasileira de Bares e Casas Noturnas (Abrabar) se manifestou publicamente no fim de janeiro, pedindo a retirada dessas pessoas das ruas da cidade – nem que fosse necessário a utilização da força. Uma semana após o episódio, a Associação Comercial do Paraná (ACP) manifestou insatisfação com a presença da população em situação de rua no centro da capital. Para a ACP, essas pessoas causariam prejuízo ao comércio local.
Em reação a isso, o MNPR de Curitiba emitiu nota pública repudiando às declarações. “Não é de espanto receber notícias provenientes dos setores patronais do comércio da cidade, pois realmente a gestão pública, a respeito da Política Nacional para a População em Situação de Rua não vem sendo efetivada de maneira integral e intersetorial”, aponta o documento. “Observamos, no entanto, que o caminho para resolver tais problemas não é, e nunca foi, o caminho do higienismo e da violência”.
Dados disponibilizados pela prefeitura revelam que, nos últimos três meses, a Central Telefônica 156 recebeu quase quatro mil ligações relativas a pessoas em situação de rua. A maior parte das ligações esteve relacionada a situações no centro da capital. O MNPR de Curitiba estima que ao menos 5 mil pessoas estejam em situação de rua na cidade.