Trabalho escravo no Brasil: os riscos de passar de vitrine a vidraça. Entrevista especial com Xavier Plassat

“As formas modernas, contemporâneas de escravidão não são somente um atentado à liberdade, mas levam à degradação da pessoa, transformando-a em uma ‘coisa’”, afirma frei dominicano

Por Patricia Fachin – IHU On-Line

Quase 20 anos depois de terem sido iniciados os trâmites para o julgamento do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, por conta da sua omissão em relação às denúncias de trabalho escravo no Brasil desde o final da década de 1980, o caso foi novamente julgado na CIDH, na Costa Rica, nos dias 18 e 19 de fevereiro deste ano. Entre os representantes da Comissão Pastoral da Terra – CPT e do Centro pela Justiça e o Direito Internacional – CEJIL, os peticionários da ação, esteve presente na audiência Frei Xavier Plassat, que há mais de 30 anos denuncia casos de trabalho escravo no Brasil.

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone no início desta semana, quando retornou da Costa Rica, Plassat contou como aconteceu o processo contra o Estado brasileiro, iniciado em 1998.

Desde essa data, afirma, até 2006, “o Estado brasileiro praticamente não retornou os pedidos da Comissão da Corte Interamericana, não levou esse processo a sério, perdeu os prazos para construir uma solução amistosa”. Segundo ele, em 2011, a Comissão Interamericana fez um relatório final sobre o caso e sugeriu a possibilidade de as partes chegarem a um acordo. “Em uma última tentativa”, diz Plassat, os peticionários aceitaram tentar um acordo com o Estado.

“Nós aceitamos realizar um acordo em 2012 e durante dois anos sentamos com o Estado brasileiro para tentar chegar a esse acordo. Interessava-nos um acordo porque chegaríamos a uma solução mais prática e mais rápida também, mas o Estado não se esforçou para isso”. Com a desistência da negociação por parte do Estado brasileiro, o caso foi julgado novamente no mês passado e a sentença será divulgada pela CIDH nos próximos meses.

De acordo com Frei Xavier Plassat, uma das dificuldades de enfrentar a situação do trabalho escravo no Brasil está relacionada à falta de fiscais para fiscalizar como e onde essas atividades estão sendo desenvolvidas. “O grupo móvel de fiscais hoje tem, nacionalmente, quatro equipes, e teve 10 em certa época. O resultado é que a metade dos serviços é feita por fiscais das superintendências regionais, nem sempre com o mesmo preparo, clareza, independência e vigor”, diz.

E complementa: “Nos últimos quatro anos, temos uma média de duas mil pessoas libertadas, quando em anos anteriores tínhamos quatro a cinco mil pessoas libertadas. Isso quer dizer que o trabalho escravo está recuando? Ninguém se atreve a dizer isso. Podemos dizer que está se reduzindo o número de pessoas libertadas, e, dessas pessoas, em torno de 40% hoje são encontradas em atividades não agrícolas, não pecuárias”.

Frei Xavier Plassat é coordenador da Campanha da CPT de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo ‘De olho aberto para não virar escravo’ e se destaca pela sua atuação na luta contra o trabalho escravo contemporâneo no Brasil. Seu trabalho lhe rendeu o Prêmio Nacional de Direitos Humanos em 2008. Graduou-se em Ciência Política em Paris, em 1970, e ingressou na ordem dominicana no ano seguinte.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que consistem as denúncias de prática de trabalho escravo na Fazenda Brasil Verde, no Pará, que foi julgada na Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH?

Xavier Plassat – Primeiro é preciso entender que a audiência da Corte Interamericana julgou o Estado brasileiro e não julgou o fazendeiro em cuja fazenda foram apurados fatos de trabalho escravo naquela época. Então, é o próprio Estado quem está sendo acusado de violações variadas na Comissão Interamericana de Direitos Humanos em relação a não efetiva repressão e prevenção do trabalho escravo constatado nessa fazenda.

A Fazenda Brasil Verde é uma fazenda grande – de nove mil hectares –, localizada no Pará, e pertence ao Grupo Quagliato, que opera na criação de bois, com uma tecnologia bastante avançada. O grupo tem renome internacional em relação a várias técnicas de reprodução do gado.

Nessa fazenda, é costume – assim como em várias fazendas na região do Pará – recrutar pessoas para realizarem trabalhos braçais, principalmente trabalhos ligados à construção, reparo de cercas, limpeza de pasto etc. Essas fazendas recrutam pessoas em regiões remotas, como Piauí, Maranhão e Tocantins. Contratam trabalhadores que estão em busca de qualquer oferta de trabalho, os quais vivem em locais onde não há a menor alternativa de subsistência. Esses trabalhadores migrantes sazonais são recrutados por meio de “gatos”, que são empreiteiros que circulam no interior e que fazem promessas bastante atrativas aos trabalhadores, oferecendo inclusive adiantamento em dinheiro antes mesmo de as pessoas viajarem para a fazenda.

Os trabalhadores vão para regiões desconhecidas, acreditando que essa oferta de trabalho vai “tirá-los do buraco”. Mas, durante a viagem, eles fazem uma descoberta gradual e, às vezes, brutal de que entre a promessa e o real há uma distância enorme. Basicamente eles chegam a uma fazenda onde não existe a mínima infraestrutura em termos de alojamento. Eles são avisados já durante a viagem e logo na chegada à fazenda, de que tudo o que foi gasto com eles – desde o adiantamento salarial inicial, o próprio transporte, as noitadas, a alimentação durante a viagem e, agora, os instrumentos de trabalho – terá que ser pago. Como eles não têm dinheiro, o valor devido é descontado na primeira remuneração, portanto todos os gastos iniciais feitos por conta do deslocamento deles para a fazenda passam a ser considerados como dívida, ou seja, eles já chegam ao local de trabalho endividados.

Eles também assinam um contrato concordando com a possibilidade de serem removidos, a critério do fazendeiro, para qualquer outra fazenda do grupo. Além disso, os documentos deles são solicitados com a justificativa de que serão consultados por algum motivo de controle, mas não são devolvidos.

Trabalho escravo moderno

Ações como essas são identificadas como um padrão de trabalho escravo moderno, em que a pessoa deixa de ter o controle sobre si mesma. Ela pode até, em certos casos, ter a liberdade formal de ir e vir, mas, nesse caso particular, os trabalhadores não tinham essa opção. Eles só podiam ir embora depois de ter quitado a dívida e realizado o serviço.

Casos como esses têm sido denunciados desde 1986, 1989, 1991. Ou seja, quase todos os anos a Comissão Pastoral da Terra – CPT, que tem um escritório em Xinguara e outro em Marabá, que são duas cidades próximas dessa fazenda, receberam queixa de trabalhadores que fugiram dessa fazenda.

A CPT documentou essas queixas, lavrou denúncias e comunicou às autoridades, e a partir de 1995 o Estado brasileiro havia criado um novo modo de fiscalização. Nosso objetivo era destinar essas queixas ou denúncias à direção do grupo em Brasília, como forma de garantir a imparcialidade e a ausência de interferência de delegacias locais no funcionamento do Ministério do Trabalho local.

No total das visitas e fiscalizações realizadas entre 1989 e 2000, mais de 300 pessoas foram resgatadas, mas isso não gerou nenhum mecanismo efetivo de responsabilização da fazenda e dos “gatos”. Houve, sim, uma ação penal iniciada em 1997, mas em virtude da indefinição na época e da competência para julgar o crime de trabalho escravo, essa ação penal foi como uma “bola de pingue-pongue”, transitando da Justiça federal para a Justiça estadual, voltando à Justiça federal, na qual finalmente chegou em estado tal que a prescrição do caso a ser julgado era incontornável e obrigatória devido à regra da lei penal brasileira.

Ou seja, depois de 11 anos de trâmite caótico, o juiz federal teve como obrigação constatar que o crime estava prescrito. Trata-se, portanto, de uma situação absolutamente inaceitável, inclusive tendo em vista que o Brasil assinou um tratado internacional na Organização dos Estados Americanos – OEA, concordando que um crime de trabalho escravo é imprescritível, mas na lei brasileira não foi transcrita essa imprescritibilidade.

Então, um conjunto de fatos caracteriza situações repetidas de trabalho escravo, nas quais são explorados trabalhadores que têm em comum essa situação de vulnerabilidade. A maioria desses trabalhadores é de Barras, no Piauí, onde há ausência de investigações adequadas, onde acontecem atitudes caóticas por parte do Estado no tratamento e no processamento das informações, além da ausência de medidas de prevenção para evitar que esses mesmos trabalhadores voltem a entrar nessa situação repetidamente. E claro que esses trabalhadores nunca receberão indenização, se eles receberem alguma coisa, será unicamente o que o fazendeiro deveria ter pagado espontaneamente se tivesse respeitado a lei.

IHU On-Line – Como esse caso chegou à Corte Interamericana? Como foi a Audiência na Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH realizada nos dias 18 e 19 de fevereiro em San José, na Costa Rica? Pode nos contar como a ação movida contra o Brasil sobre o caso “Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil” foi tratada?

Xavier Plassat – O caso chegou à Corte Interamericana depois de um trâmite também muito longo. Em 1998 a CPT, junto com o Centro pela Justiça e o Direito Internacional – CEJIL, protocolou na Comissão Interamericana de Direitos Humanos essa denúncia contra o Estado brasileiro. No sistema interamericano, a comissão funciona como um promotor: prepara o processo, verifica se a denúncia tem cabimento, interroga as partes para pedir justificação e explicações complementares e vai construindo sua própria opinião sobre os fatos alegados. Nessa fase a comissão tentará, inclusive, aproximar as partes para chegar a um acordo.

Acontece que de 1998 a aproximadamente 2006, o Estado brasileiro praticamente não retornou os pedidos da Comissão, não levou esse processo a sério, perdeu os prazos para construir uma solução amistosa. Em 2011, a Comissão Interamericana fez um relatório final sobre o caso e nesse relatório sigiloso e comunicado somente entre as partes, ela fez uma análise bastante grave, séria, radical dos fatos alegados pela CPT e pelo CEJIL, concordando que eles constituíram violações em vários artigos da Convenção Americana de Direitos Humanos e que isso justificava, na ausência de um acordo, a ida das partes à Corte, a não ser que, em uma última tentativa, os peticionários aceitassem tentar costurar um acordo com o Estado.

Nós aceitamos realizar um acordo em 2012 e durante dois anos sentamos com o Estado brasileiro para tentar chegar a esse acordo. Interessava-nos um acordo porque chegaríamos a uma solução mais prática e mais rápida também, mas o Estado não se esforçou para isso.

Negociações frustradas com o Estado brasileiro

A nossa ideia era, além de solicitar a reparação imediata e necessária em relação às mais de 300 vítimas, identificar por que haviam ocorrido tantos disfuncionamentos e, sobretudo, criar mecanismos inovadores para que, quando ocorressem situações de trabalho escravo, a coleta das provas fosse feita de forma tão eficiente no momento da fiscalização, que ela facilitasse a ação penal e a sua conclusão em um tempo razoável, a fim de haver a responsabilização dos envolvidos.

Nós chegamos a quase 98% do acordo, com todas as cláusulas aprovadas, quando, de repente, o Estado saiu da negociação no final de 2013, alegando que via um risco à segurança jurídica do Estado.

Um dos argumentos era o de exigir que as vítimas renunciassem explicitamente a qualquer outra forma de ação contra o Estado e a relação dela com os fatos; e a outra era que as vítimas assinassem uma procuração para um advogado único. Essas duas medidas não tinham como ser aprovadas porque criariam um precedente ruim, então o Estado rompeu a negociação alegando que iria concluir unilateralmente todas as cláusulas acordadas.

O Estado nos enrolou por quase um ano, não cumprindo nada de específico, fazendo relatórios “bonitos”, dizendo que ele tinha cumprido muita coisa desde 1995. O caso é que nós não estávamos contestando as ações do Estado brasileiro a partir de 1995; estávamos solicitando o cumprimento de ações em outro momento. Com isso, a comissão acabou se cansando e no meio do ano passado decidiu que o caso retornaria à Corte Interamericana para julgamento em segunda instância.

Audiência na Corte Interamericana

Depois de cada uma das partes ter elaborado o seu pedido e seus argumentos e de ter indicado seus peritos e suas testemunhas, chegamos a essa audiência, que foi realizada nos dias 18 e 19 de fevereiro, em São José, na Costa Rica, que é a sede natural da Corte Interamericana. Durante esses dois dias de audiência o formato foi o seguinte: a Comissão fez o ato de acusação, relatou o que denunciou, depois os peticionários apresentaram quatro testemunhas e os peritos escolhidos declararam, de forma oral, suas observações para serem acrescentadas ao processo.

Nossos peritos e testemunhas foram Leonardo Sakamoto, do Repórter Brasil, Ana de Souza Pinto, educadora e agente da CPT há mais de 30 anos, e Raquel Elias Ferreira Dodge, Subprocuradora Geral da República, criminalista extremamente competente sobre esse assunto.

Os outros peritos que declararam suas informações de forma escrita são pessoas de grande renome, como o Procurador do Trabalho Luís Antônio Camargo de Melo, que foi procurador-chefe do Ministério do Trabalho até o ano passado, Gulnara Shahinian, Relatora da ONU contra o trabalho escravo, Valderez Maria Monte Rodrigues, que foi a primeira coordenadora do grupo móvel de fiscalização, Ricardo Rezende, padre no Rio de Janeiro, que anima o grupo de pesquisa contra o trabalho escravo, e vários outros.

Na segunda parte da audiência, o Estado poderia apresentar suas testemunhas, mas não as apresentou porque não as têm, porém apresentou seus peritos. A Comissão Interamericana fez perguntas aos peritos e assim foi o primeiro dia do julgamento. No segundo dia foram feitas as alegações finais formuladas pelas duas partes. Nós, como peticionários, fizemos, durante cerca de uma hora, um resumo das nossas alegações, das nossas demandas e da nossa posição. Na sequência, o Estado, na boca do representante da Procuradoria Geral da União – AGU, fez as suas considerações negando tudo o que nós havíamos dito. Em seguida, ouvimos também algumas considerações por parte da Comissão Interamericana e dos juízes e assim foi concluída a audiência.

A decisão dos juízes só virá depois de seis meses, mas essa é uma sentença que, ao que tudo indica, tem chances de ser uma sentença condenatória, já identificando violações e obrigando o Estado a determinadas ações, indenizações, medidas, modificações, investigações etc.

IHU On-Line – Como o representante da Procuradoria Geral da União se manifestou durante a audiência na Corte Interamericana de Direitos Humanos em relação às denúncias apresentadas?

Xavier Plassat – Ele foi, eu diria, uma pessoa inteligente, e tentou achar argumentos em defesa do Estado, mesmo em uma situação tão desconfortável. Ele começou dizendo o seguinte: “Tudo o que foi dito é verdade, é um retrato do Brasil, mas é um retrato em preto e branco superado; isso não existe mais, porque nós fizemos muitas coisas de lá para cá”.

Nós nunca negamos que o Estado promoveu algumas ações, mas não era isso que estava em discussão. Um dos representantes da Corte inclusive perguntou se, dado que o Estado havia feito tantas coisas, havia alguém na cadeia. Depois, o representante da Procuradoria foi questionado sobre por que o Estado resgatou trabalhadores se eles não eram maltratados.

Na verdade, é preciso entender que o outro elemento importante da argumentação do Estado é dizer que a Corte é incompetente, porque o Brasil só reconheceu a competência da jurisdição da Corte Interamericana a partir de 1998. Então, podemos concordar que todos os fatos alegados antes existiram, mas eles saem da competência da Corte.

A isso nós respondemos que fatos que continuaram gerando um prejuízo, uma omissão e uma violação posteriormente ao reconhecimento da jurisdição são imputáveis; por exemplo, a ausência de uma investigação ou a ausência de uma reparação às vítimas, ou a ausência de busca de dois adolescentes desaparecidos, dos quais até hoje não somos capazes de apresentar uma certidão de óbito. O Estado é incapaz de provar que eles morreram, porque não se mexeu para isso.

Outro ponto do Estado foi dizer que a Corte é incompetente porque se trata de violações a direitos econômicos e sociais e isso é objeto de outro pacto, o pacto de São Salvador sobre os direitos econômicos e sociais, ou seja, não se trata de uma questão de direitos humanos. Então, na realidade a argumentação é fraca, é uma forma de negar a gravidade de fatos, e o que nos incomoda é a posição que diz que condições degradantes não são uma forma de trabalho escravo.

Nós devemos entender trabalho escravo somente se uma pessoa é submetida à corrente? As formas modernas, contemporâneas de escravidão não são somente um atentado à liberdade, mas levam à degradação da pessoa, transformando-a em uma “coisa”. Essa é a definição mundial do que é trabalho escravo: a escravidão torna a pessoa uma coisa, não necessariamente na forma antiga, afirmando sobre ela um direito de propriedade, mas um direito de uso e de descarte a critério de uma exploração.

IHU On-Line – Quais foram suas impressões em relação à negociação realizada com o Estado nesses dois anos para se chegar a um acordo? Quais foram as maiores dificuldades?

Xavier Plassat – O Estado tem várias caras: a do Ministério das Relações Exteriores, da AGU, da Secretaria da Presidência da República, da Secretaria dos Direitos Humanos, do Ministério do Trabalho e do Ministério do Desenvolvimento Social. Todas essas partes, em algum momento, participaram dessa negociação. Agora, quem tem a última palavra, ao que parece, é o setor internacional da AGU e o Ministério das Relações Exteriores.

Nesses setores não se entende muito sobre trabalho escravo, entende-se, sobretudo, de defesa cega dos interesses do Brasil como Brasil: “não toque no meu Brasil”! Esses setores não escutam muito o que a sociedade civil conhece e tem de expertise sobre essa situação, não escuta muito o que o Ministério Público conhece e tem de expertise nessa situação. Na verdade, encontramos nessa negociação pessoas de boa vontade tanto quanto pessoas com menos boa vontade, porque o Estado é feito, às vezes, desses ingredientes contraditórios.

O que nos frustrou um pouco é que em nenhum momento o Estado chegou fazendo propostas, sugerindo isso ou aquilo; ele somente ficou reagindo às nossas propostas. Então, isso foi uma frustração imensa para nós.

IHU On-Line – Qual é a situação do trabalho escravo em outros países da América do Sul e América Central em comparação à situação do Brasil?

Xavier Plassat – Esse é um paradoxo: o Brasil é o melhor aluno da classe, mas não necessariamente por ser o melhor ele é imune a críticas. E isso também não significa que ele não comete negligências, omissões e violações. Nós não estamos dizendo que em nenhum momento o Brasil não fez nada, mas não queremos que o Brasil passe de vitrine a vidraça, como diz, com palavras bem apropriadas, Leonardo Sakamoto. Agora, os outros países não chegarão a ser vitrine porque poucos deles tiveram a coragem de olhar a realidade crua como ela é, como o Brasil foi forçado a fazer a partir de 1995, depois de 25 anos de negação.

Nós sabemos, por informações da Organização Internacional do Trabalho – OIT, por exemplo, que existem em torno de 21 milhões de escravos no mundo. Esse é um número difícil de se comprovar ao pé da letra, mas é uma estimativa. Pelo menos um milhão e tanto está na América Latina e, possivelmente, a maior parte, não necessariamente no Brasil.

Nós sabemos que as mesmas práticas que existem no interior da floresta amazônica do lado brasileiro existem também do lado peruano ou nas outras fronteiras amazônicas do Brasil.

Sabemos que nas Guianas existem formas de trabalho escravo por conta da mineração de ouro, e casos de prostituição. Estamos vendo que o Suriname também é um foco importante de trabalho escravo, a Argentina tem as mesmas oficinas da Zara, que produzem roupas usando mão de obra peruana e boliviana.

Inclusive o Papa Francisco, quando era arcebispo de Buenos Aires, era militante ativo da ONG La Alameda de combate ao trabalho escravo e ao tráfico. Isso explica por que ele é tão sensível a esse tema, porque ele tem uma experiência pessoal com a Argentina.

Mas a Argentina, a Bolívia e o Peru só recentemente começaram a ter instrumentos e mecanismos de combate ao trabalho escravo. Inclusive, é o Brasil quem ajuda a criar muitos desses instrumentos e dessas políticas. A Organização Internacional o Trabalho – OIT tem atualmente um programa de cooperação com o Peru, que visa intercâmbios de fiscais do trabalho do Peru que vêm observar as práticas no Brasil, e fiscais do Brasil que vão para lá explicar como faz.

Essas ações entre os países são muito boas, mas isso não retira, minimamente, a necessidade de dizer ao Brasil que as ações estão falhando, porque até hoje ainda ninguém foi para a cadeia por crime de trabalho escravo, porque até hoje não tem um programa nacional de prevenção ao trabalho escravo.

IHU On-Line – Qual é a atual situação de trabalho escravo no país? Ele está ligado a quais setores? Quais são as dificuldades de enfrentar essa questão?

Xavier Plassat – A questão é: aonde a fiscalização vai e busca trabalho escravo, ela encontra. Começamos a encontrar escravos nas oficinas de confecção somente nos últimos seis anos. Você acha que é por que não tinha trabalho escravo nas oficinas antes? Não, sempre houve, talvez mais. Só se tem conhecimento desse tipo de trabalho no Brasil porque um belo dia os fiscais de trabalho de São Paulo resolveram “ir a fundo na ferida”.

Você acha que na produção de cana-de-açúcar, antes de 2005, não havia trabalho escravo no Brasil? Havia, só que foi a partir dessa data que começamos a fiscalizar com seriedade. Aliás, na construção civil, será que não havia trabalho escravo antes? Havia.

Então, o problema é que hoje estamos em uma situação na qual o efetivo de fiscais para a fiscalização de trabalho escravo está reduzido: o grupo móvel hoje tem, nacionalmente, quatro equipes, e teve 10 em certa época. O resultado é que a metade dos serviços é feito por fiscais das superintendências regionais, nem sempre com o mesmo preparo, clareza, independência e vigor.

Mas o certo é que para fazer novas fiscalizações, inclusive as que seriam necessárias fazer na pecuária, no desmatamento da Amazônia, precisaria de muito mais fiscais. Há um resultado concreto de que, nos últimos quatro anos, temos uma média de duas mil pessoas libertadas, quando em anos anteriores tínhamos quatro a cinco mil pessoas libertadas.

Isso quer dizer que o trabalho escravo está recuando? Ninguém se atreve a dizer isso. Podemos dizer que está se reduzindo o número de pessoas libertadas, e, dessas pessoas, em torno de 40% hoje são encontradas em atividades não agrícolas, não pecuárias.

IHU On-Line – Quais são os fatores que dificultam o enfrentamento da questão do trabalho escravo?

Xavier Plassat – Eu diria que temos que guardar presente no raciocínio que o trabalho escravo acontece principalmente por um motivo de ganância, de busca de lucro exagerado nas costas do trabalhador e à custa dos concorrentes. É um fenômeno de concorrência desleal, e, quando flagramos escravagistas, nós temos a possibilidade de pôr fim a uma fonte de lucro considerado.

Em 2004, assassinaram quatro fiscais do trabalho em Unaí. Trata-se de um desafio claro e direto ao Estado de direito, por parte de ruralistas e contrabandistas. Hoje, o desafio é na forma de uma contestação no campo da lei, no campo institucional; trata-se de desmontar e desconstruir o sistema brasileiro de combate ao trabalho escravo, começando pela lei 149. Querem aboli-la e tornar inócua a Emenda Constitucional da Expropriação, alterando na lei de regulamentação que poderia dar uma chance de essa emenda vir a ser posta em prática, e eles querem eliminar a lista suja, querem reforçar a utilização da terceirização sem nenhum critério. Enfim, existe todo um conjunto de circunstâncias que demonstra um poder de fogo muito grande e que encontra, em congressistas – geralmente financiados nas suas campanhas por essas mesmas forças –, aliados fiéis e submissos. Essa é uma situação muito difícil para a qual precisamos reagir enquanto sociedade.

Tem uma campanha, e acho oportuno mencioná-la, chamada #somoslivres, que foi lançada pelo Wagner Moura e continuará por alguns meses, a fim de mostrar que a situação relacionada ao trabalho escravo é grave e que não podemos recuar. O Brasil foi apontado como um exemplo no combate ao trabalho escravo, mas não podemos passar a ser o pior dos alunos, retroagindo agora.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Xavier Plassat – Nós falamos como cristãos e para nós é muito importante colocar em prática uma luta que está a serviço da dignidade e da vida, respeitando a todos. Nós, dominicanos, temos que ter a máxima intolerância contra violação de direitos humanos dessa natureza. Como diria Bartolomeu de Las Casas, “todos os direitos para todos”; é isso que nós queremos.

Clique para acessar o Relatório CPT: 30 anos de denúncia e combate ao trabalho escravo. 

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