A condução coercitiva de Lula e a economia moral de ilegalidades

Por Saled H. Khaled Jr., em Justificando

Não discutirei aqui a legalidade da condução coercitiva do ex-presidente Lula. Penso que o debate em torno dessa questão foi vencido de forma exaustiva por todos que abertamente manifestaram sua posição de compromisso incondicional com os direitos e garantias fundamentais. Não faria sentido fazer aqui um balanço das precisas críticas de Geraldo Prado, Rubens Casara, Lenio Streck, Edson Baldan, Aury Lopes Jr, Pedro Serrano, Gustavo Badaró e tantos outros. Caso o leitor não tenha tido contato com a argumentação dos referidos juristas, sinta-se remetido para as respectivas colunas e perfis nas redes sociais.

Minha estratégia analítica é outra. Discutir o sentido, ou seja, a racionalidade por trás do emprego da medida em questão, seus artifícios discursivos de justificação e a dinâmica midiática de circulação de desinformação sobre o tema. O que refiro como sentido que delineou a ação em questão é relativamente óbvio, uma vez que claramente existia uma intenção subjacente: a condução coercitiva do ex-presidente Lula não visava a sua simples oitiva, já que o convite não foi sequer feito. Ela foi literalmente empregada como recurso para ilegalmente constranger a liberdade de locomoção do ex-presidente durante algumas horas, o que para parcela significativa da comunidade jurídica – surpreendentemente – parece algo justificável e aceitável.

Não é tarefa simples tentar compreender as razões que poderiam ter motivado o emprego de um artifício tão questionável e menos ainda as eventuais justificativas por trás de algo tão flagrantemente ilegal. Seria extremamente fácil reduzir tudo a um desavisado maniqueísmo que pouco poderia contribuir para a compreensão da lógica por trás dos movimentos dos vários atores sociais no tabuleiro em questão.

Reconheço que é inteiramente possível que me falte clareza analítica. Não tenho a pretensão de demarcar de forma absolutamente precisa os atalhos de uma racionalidade que me escapa e, mais do que isso, me causa náuseas. Minhas predileções processuais penais e democráticas me colocam imediatamente no espectro dogmático oposto. E isso talvez baste para que meu texto seja lido com algum nível de suspeita, o que compreendo plenamente.

Dito isso, minha apreciação dos últimos meses indica que estamos presenciando um exercício tático e coordenado, que pela sua complexidade e pluralidade de atores, sugere a existência de uma verdadeira economia moral que favorece a contínua prosperidade de inúmeras ilegalidades, esparramada institucionalmente e midiaticamente em diversos campos de atuação.

Explico o que quero dizer com a expressão economia moral, que tomo emprestada – com certo acréscimo criativo de sentido – de um historiador chamado E.P. Thompson. Não seria razoável simplesmente demonizar os vários atores envolvidos na Operação Lava-Jato. A demonização retrataria tais sujeitos como pessoas deliberadamente engajadas em um empreendimento de desestabilização da República, violação da legalidade e comprometimento da própria democracia. Sinceramente não acredito que é o caso. Os diferentes agentes envolvidos operam no âmbito de um consenso sobre a finalidade eleita e o que são práticas legítimas e ilegítimas para a consecução dessa finalidade. Esse arcabouço ideológico faz com que práticas visivelmente autoritárias sejam percebidas como legítimas e coerentes pelos seus praticantes. Cada passo rumo ao objetivo eleito reforça os laços de solidariedade e gera ainda mais coesão dentro de um grupo que sinceramente trabalha para um objetivo comum, que é o combate à corrupção.

Com o passar do tempo, as convenções sociais que conformam a dinâmica de circulação tática da Operação Lava-Jato fazem com que os laços entre os protagonistas de diferentes funções se estreitem. Surge uma lógica de colaboração e cooperação que inevitavelmente acaba produzindo uma sobreposição de papéis e indistinção de funções que impulsiona o cometimento de ilegalidades em nome do fim nobre eleito como desejável. Finalmente, para a consecução dessa finalidade, os laços entre os participantes da Operação Lava-Jato e a maquinaria midiática de produção da verdade são estreitados de forma até então impensável. A grande mídia funciona como verdadeira aliada da Operação: atua como seu braço publicitário e contribui ativamente para a obtenção de um apoio popular que é tido como elemento essencial para a continuidade da persecução e seu eventual êxito.

A dinâmica cultural que refiro como economia moral de ilegalidades conspira para uma receita particularmente destrutiva: vazamentos seletivos, violações de direitos fundamentais travestidas como artifícios legais, coberturas tendenciosas e instrumentalidade processual do espetáculo são alguns dos algoritmos que demarcam sua assustadora ferocidade. O conjunto de efeitos de sedução e coerção é tão extensivo e abrangente que a compilação de medidas empregadas pelo aparato em questão é tarefa praticamente impossível. Mas tudo indica que ele é propositalmente movimentado e estruturado para a consecução de um objetivo final, que não é outra coisa que a obtenção da joia da coroa: ninguém menos que o próprio Lula. E para isso qualquer medida é aceitável:  pouco importa se ela implica violação explícita da Constituição ou não. Em sua grande maioria, tenho certeza que atuam com a crença de que fazem o certo. E por isso mesmo são tão perigosos. O empreendedor que conduz uma cruzada moral legitimamente crê que faz o que é certo. Pensa que seu arcabouço moral conforma uma expressão de verdades inequívocas e universalmente aceitas, ainda que elas sejam flagrantemente contrárias ao que outros possam assumir como verdadeiro e inclusive constitucional e convencional.

Antes que alguém desqualifique a argumentação como “petralha” digo de forma clara: não, ninguém está acima dos rigores da lei. Todos podem e devem ser investigados. E eventualmente punidos dentro das regras do jogo do devido processo legal. Inclusive o ex-presidente Lula, se for o caso. Isso não significa – não pode significar jamais – que o combate à corrupção possa tornar aceitável o descumprimento da Constituição. O meu horizonte não é nem nunca será de defesa incondicional de um político ou partido político em particular. Jamais fui e provavelmente jamais serei filiado a qualquer partido político. A questão é definitivamente outra. De legalidade. Digo isso sabendo que muitos – cegos pela raiva – insistirão que o que motivou a própria escrita do texto é a defesa incondicional que digo não fazer. Mas evidentemente não posso controlar as interpretações alheias, o que está para além das minhas forças.

Feitos os esclarecimentos, penso que a condução coercitiva do ex-presidente Lula comporta pelo menos três possíveis leituras, que são inteiramente complementares:

a) foi uma espécie de ensaio geral para a estocada final, que visou testar as águas da possível reação popular diante de uma eventual prisão propriamente dita;

b) é uma nítida demonstração de força, cujo sentido consiste na intenção de quebrar o próprio espírito do “inimigo” que é potencialmente o alvo maior da própria Operação;

c) A intervenção direta no corpo do ex-presidente tinha a intenção de criar condições para o sucesso de uma concepção de “interrogatório” que consiste em uma espécie de jogo no qual o inquisidor tem a intenção de extrair a “verdade” do objeto da inquirição.  Nada poderia estar mais distante do que a oitiva como oportunidade de fala para alguém que é objeto de suspeita.

Falarei rapidamente sobre cada uma dessas considerações.

A primeira delas é suficientemente clara. Para uma concepção processual do inimigo que efetivamente integra a “opinião pública” ao exercício da própria jurisdição, é essencial medir a capacidade de reação do adversário, ou seja, testar a sua capacidade de reação no espaço público que é assumido como essencial para a bem sucedida consecução do combate à corrupção. E isso é plenamente justificável ideologicamente, o que autoriza o emprego de força, no sentido concreto e simbólico do termo.

Isso me leva ao segundo ponto e ao efeito que se deseja obter com a espetacular demonstração de poder do aparato. A economia moral que referi anteriormente capacita e possibilita uma verdadeira operação de guerra, que emprega estratégias análogas ao conjunto de diretrizes que norteia boa parte das ações militares contemporâneas. As táticas empregadas no “teatro de operações” da Lava-Jato se assemelham ao Shock and Awe (Choque e Pavor), doutrina militar conhecida pela intenção de domínio rápido sobre o inimigo, cujo sentido consiste no emprego de força avassaladora e mostras espetaculares de poder para paralisar a compreensão do adversário e destruir sua vontade de lutar.[i] Harlan K. Ullman e James P. Wade, autores da tática Shock and Awe, sustentam que o objetivo da dominação rápida é afetar a vontade, percepção e compreensão do adversário através da imposição de um regime de choque e pavor. Com isso é liquidada qualquer possibilidade de resistência.

Para que o sucesso seja alcançado, é preciso impor a quantidade necessária de choque e pavor para tornar o inimigo impotente, o que exige emprego de táticas voltadas para a obtenção de efeitos físicos e psicológicos. O domínio psicológico consiste na habilidade de destruir, derrotar e neutralizar a capacidade de um adversário resistir: o alvo é a sua vontade, percepção e compreensão.

Não é por acaso que a doutrina do Shock and Awe alcançou enorme popularidade: seus autores sustentam que a dominação rápida pode proporcionar de forma mais efetiva e eficiente os objetivos militares ou políticos subjacentes ao uso da força, tornando o adversário completamente impotente. Como referi anteriormente, os efeitos da condução coercitiva de Lula extrapolam o sentido jurídico: visivelmente existe uma intenção política de apreciação de capacidade de reação do adversário e obtenção de apoio junto à população. Não custa lembrar que o juiz Sérgio Moro publicamente sustentou que “[…] esses casos envolvendo graves crimes de corrupção, envolvendo figuras públicas poderosas, só podem ir adiante se contarem com o apoio da opinião pública e da sociedade civil organizada. E esse é o papel dos senhores”.

Eu poderia aqui desenvolver uma argumentação desconstruindo a ideia de que deve existir qualquer enlace entre judiciário e opinião pública, o que é ainda mais grave quando referido por um juiz específico, que conduz um processo em particular. Mas isso fugiria do tópico da coluna. Prefiro me ater ao essencial. O fato é que a economia moral a qual ele adere abertamente permite isso, o que é condizente com o núcleo de pensamento autoritário que faz parte do universo de crenças do juiz em questão.

Foi bem sucedida a ação? Eu não arriscaria um palpite. Examinar a subjetividade do ex-presidente Lula extrapola o propósito desta simples coluna, como também não tenho condições de avaliar qual o efeito sobre a opinião pública. Mas tenho certeza que o leitor consegue perceber a conexão que sugiro aqui como provocação. E ela é ainda mais pertinente quando o enfoque é deslocado para o desenlace midiático da Operação. Existe uma diferença significativa entre as táticas de “Choque e Pavor” militares e as estratégias empregas pelo complexo midiático-jurídico da Operação Lava-Jato.

A doutrina do Shock and Awe indica que o principal mecanismo para obter o domínio é a imposição de condições suficientes de “Choque e Pavor” para convencer ou compelir o inimigo a aceitar metas estratégicas e objetivos militares. Para isso, informações erradas, mentiras, confusão, negação seletiva de informação e desinformação, possivelmente em grandes quantidades, devem ser disseminadas.

De fato, a maquinaria da Lava-Jato emprega táticas análogas, mas com uma diferença substancial: o esforço de disseminação de “informações erradas, mentiras, confusão, negação seletiva de informação e desinformação” é voltado para a opinião pública, que é “produzida” pela opinião publicada que conforma o braço midiático da Lava-Jato e deflagra uma verdadeira operação de inteligência de guerra contra a população que deveria – na medida da objetividade possível – informar. Em última análise isso pode significar que a Lava-Jato trata a própria população como inimiga: como receptáculo de um discurso violento e que vulnera direitos fundamentais, que como se sabe, não são dos “outros”: são de todos nós.

Finalmente, o sentido do interrogatório para a economia moral que explicitei anteriormente. Peço licença ao leitor para recorrer a Foucault: o interrogatório está muito próximo dos antigos desafios germânicos. Ele se liga às ordálias, aos duelos judiciais, aos julgamentos divinos, pois o juiz deve submeter o acusado, deve triunfar sobre ele: no suplício do interrogatório objetiva-se obter um “[…] indício, o mais grave de todos – a confissão do culpado; mas é também a batalha, é a vitória do adversário sobre o outro que ‘produz’ ritualmente a verdade”.[ii] Como conclui Foucault, “a tortura para fazer confessar tem alguma coisa de inquérito, mas também tem de duelo”.[iii] O interrogatório conforma um jogo no qual o inquisidor deve triunfar sobre o inimigo tido como objeto do conhecimento. O que o move não é outra coisa que insaciável ambição de verdade, que provoca uma ardorosa curiosidade analítica experimental, como discuti em “A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial” (Atlas, 2013).

Parece inescapável a constatação de que existe uma intenção clara de sacrifício de Lula como cordeiro no altar da pátria. Mas sem o devido processo legal, ela não salvará a democracia de modo algum. Perdoai-os Senhor, eles não sabem o que fazem? Errado. Eles sabem. E muito bem. Agem por ideologia, legitimados por uma economia moral de ilegalidades que a tudo justifica. Aparentemente a próxima “conversa” será por videoconferência. Inquisidores digitais. Chegamos ao século XXI, finalmente. Quanto mais as coisas mudam, mais permanecem as mesmas. Nero gargalhava enquanto Roma queimava. Estão dispostos a incendiar a República para combater o mal. E com isso, podem estar sendo mais prejudiciais a ela do que o próprio inimigo que incansavelmente combatem. Vivemos em tempos sombrios.

Salah H. Khaled Jr. é Doutor e mestre em Ciências Criminais (PUCRS), mestre em História (UFRGS). Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Escritor de obras jurídicas. Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e Progresso: a Invenção do Brasil e a Gênese do Autoritarismo Nosso de Cada Dia, editora Lumen Juris, 2014 e coordenador de Sistema Penal e Poder Punitivo: Estudos em Homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr., Empório do Direito, 2015.

[i] Harlan K. Ullman e James P. Wade, definem o sentido da estratégia em “Shock and awe: achieving rapid dominance”. Disponível em: http://www.dodccrp.org/files/Ullman_Shock.pdf
[ii] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2008. pp.36-37.
[iii] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2008. p.32.

 

Comments (1)

  1. Já que falamos em ilegalidades:
    – em São Paulo e outros estados, a Polícia Militar não só coage a população mais pobre, como mata covardemente jovens da periferia. Se alguém, por azar, testemunhar a execução, morre também.
    – muitos empresários sonegam direitos trabalhistas a seus funcionários.
    – recentemente, os “nobres” deputados liderados por Eduardo Cunha dispensaram as empresas que vendem produtos transgênicos de alertar os consumidores com o símbolo dos transgênicos em suas embalagens.
    Então, o sequestro do ex-presidente Lula — felizmente a Polícia da Aeronáutica de Congonhas o salvou dos sequestradores da PF — é apenas mais uma ilegalidade dentre as tantas que assistimos.
    Os alvos são sempre os mesmos: os pobres ou aqueles que os defendem. Ou alguém acha que Sérgio Moro vai fazer uma condução coercitiva do FHC? E olhe que ele tem MUITO a explicar: por que usou dinheiro público para pagar o silêncio da ex-amante? Por que ele vendeu a Vale por R$ 3 bi quando ela valia R$ 100 bi? Com que dinheiro ele comprou um apartamento de R$ 30 milhões em Paris?

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