A CPI da Funai/Incra contra o povo indígena e as/os sem-terra, por Jacques Távora Alfonsin

Em DomTotal

“Destruamos a árvore em seu vigor. Arranquemo-la da terra dos vivos, e que seu nome caia no esquecimento”. Assim o profeta Jeremias interpretou, quase sete séculos antes de Jesus Cristo, a perseguição que estava sofrendo, promovida pelos opressores econômicos e políticos de então, contrariados por ele denunciar a injustiça social muito ativa contra gente pobre e indefesa, já naquela época.

Embora pareça incrível, depois de tanto tempo e tanta interpretação dessa queixa, o povo indígena e todo contingente de pessoas com direito de acesso à terra, por meio da reforma agrária, no Brasil, estão padecendo do mesmo mal, sofrendo como Jeremias sofreu. Como suas próprias vidas, culturas, costumes e religiões são reconhecidas, em mais de uma disposição da Constituição Federal, mas tudo isso dependendo de terra, só muita ingenuidade impedirá de constatar-se que, em vez de verem garantidos o exercício e o gozo desses direitos, estão sendo muito mal vistos pela CPI exatamente por isso: o bem terra, por eles reivindicado por imposição de lei, é disputado por gente com muito maior poder econômico e político, suficiente para “arrancá-los da terra dos vivos e o seu nome cair no esquecimento.”

A CPI foi criada para investigar os critérios utilizados pela FUNAI e pelo INCRA na execução das suas funções. Essas, como as leis disciplinadoras do seu trabalho deixam bem claro, devem executar políticas públicas de defesa dos povos indígenas e da reforma agrária, não havendo jeito, logicamente, de cumprir essa missão, sem afetar, de alguma forma, a tão reclamada “segurança jurídica” de outros interesses e ou direitos. Proibi-las de sequer tentar, como parece estar acontecendo, equivale a negar eficácia, por mínima que seja, a todos os preceitos constitucionais derivados da palavra reforma. Re-formar é mudar, alterar, modificar o que está de-formado, mas a CPI parece convencida de que a Constituição Federal está enganada e, em matéria de terra, aí ela não vale, tudo deve permanecer como se encontra.

Quem não assistiu a sessão desta Comissão, no dia 10 deste março, pode fazer um juízo próximo de como Funai e Incra, índias/os e sem-terras estão sendo tratadas/os, acessando o vídeo gravado sobre ela, disponível no portal da Câmara dos Deputados – atividade legislativa, CPI Funai-Incra. Ali aparece mais de uma reclamação de parlamentares presentes insistindo com o presidente e demais integrantes da mesa regente dos trabalhos, sobre o modo como esses estão sendo realizados e a manifesta parcialidade com que estão sendo tomados os depoimentos e recolhidas as provas, em prejuízo da defesa dos dois órgãos públicos e da porção de povo que servem.

Ela dá sinais de estar sendo orientada com a visível intenção – pelo menos ao que se pode deduzir até agora dessas reclamações sobre os trabalhos já realizados – de transformar índias/os e sem-terras, da sua condição de vítimas em réus, nisso comprometendo consequentemente as instituições destinadas à sua defesa, como são o Incra e a Funai.

Deve ter sido por essa razão que parlamentares integrantes da Comissão nos convidaram para prestar depoimento nesta sessão do dia 10. Como o vídeo referido mostra, tentamos contribuir com os trabalhos da CPI, cuidando de juntar ao inquérito em tramitação, bem mais do que o registro de uma opinião, as provas documentais das causas históricas do permanente conflito sobre terra existente no país, gerando consequências sociais dolorosas, predominantemente sobre o povo indígena e o sem terra.

Entre outros dados, pedimos fossem integradas ao inquérito as estatísticas oficiais sobre a extraordinária concentração da propriedade da terra, conferida periódica e estatisticamente no Brasil; a extensão da grilagem sob a qual ela é explorada, bem maior do que a área toda do Estado de São Paulo; a grande defasagem dos índices de mensuração de produtividade dos imóveis rurais, não atualizados desde 1975, um fato notório da superioridade do poder latifundiário sobre o Poder público; o volume, em dinheiro, da sonegação de impostos praticada por grandes proprietárias/os de terra, em direto prejuízo dos serviços públicos devidos, entre outros órgãos da administração, pelo Incra e pela Funai, justamente os alvos da CPI; os efeitos humanos decorrentes das violentas execuções judiciais sobre aqueles conflitos; a extrema dificuldade, não só do Poder público, mas principalmente de brancas e brancos endinheiradas/os reconhecerem as diferenças abissais que separam a sua concepção de terra com a do povo indígena; a consequente certeza de esse problema não ter qualquer possibilidade de solução enquanto o respeito a interculturalidade não abrir chance de convivência pacífica entre essas etnias.

Fomos interpelados por vários parlamentares, apontando alegados vícios de atuação do Incra em assentamentos rurais e da Funai em terras indígenas, mas a crítica mais aguda partiu de um professor de Direito constitucional que ocupou a mesa dos trabalhos em lugar do relator… Como se vê no vídeo, em tom indignado, ele contestou os efeitos jurídicos da nossa interpretação de interculturalidade, baseada no artigo 231 da Constituição Federal e 68 do Ato das disposições constitucionais transitórias; em dois recentes despachos do presidente do Supremo Tribunal Federal, suspendendo execuções possessórias, em favor de brancos, sobre áreas indígenas; e na opinião do sertanista falecido Orlando Vilas Boas, segundo a qual índias/os e brancas/os constituem “duas humanidades” diferentes, não havendo como, consequentemente, de as/os primeiras/os preservarem sua dignidade, enquanto as/os brancas/os pretenderem “civilizá-lo” a custa de lhes impor uma lei branca, em tudo e por tudo incompreensível para elas/es.

O professor impugnou essa argumentação, durante um demorado discurso, cuja réplica a mim permitida, não poderia passar de um minuto. Sobre o fato de o Ministro presidente do Supremo ter determinado a suspensão das execuções de duas possessórias contra povos indígenas, baseado na razão de o direito desses à terra ser preexistente ao do branco e do próprio ordenamento jurídico vigente, o professor igualou esse argumento à uma derrogação de todo o texto constitucional. Sob não disfarçada irritação, lançou um exemplar da Constituição sobre a mesa, como prova de que nós – e a decisão do presidente do Supremo, consequentemente, já que nela se baseara nossa argumentação – tínhamos rasgado o seu texto. Ele não se deu conta de como o seu gesto comprovou o pouco que essa Constituição “branca”, “liberal”, carregada de influência europeia colonialista, deve muito da ineficácia das suas disposições sobre o povo indígena e sobre a reforma agrária, à infidelidade manifesta de gente como ele interpreta o seu conteúdo jurídico.

Ao nível de obrigar um magistrado, integrante de um Tribunal superior a todos os outros do Brasil, ter de proclamar o óbvio: esse povo estava aqui antes de nós, sendo mais justo do que legal, portanto, pararmos de vez com a sua extinção, pela qual nos toca assumirmos nossa exclusiva responsabilidade. Cabe-nos cessar de fingir, inclusive pelos paradigmas de interpretação das nossas leis, que os respeitamos e defendemos. Aliás, essa hipocrisia trágica ficou provada por um ato falho dos próprios deputados signatários do pedido de instalação dessa CPI. Para “justificar” a necessidade dela, lembraram a insignificância numérica do povo indígena: 0,30% da população do país, comparada com a extensão de terra que reclama (14% do território), embora não tenham esclarecido de onde tiraram esses dados. Não viram que o número de índias/os foi reduzido assim por força da dizimação sobre ele imposta pelo povo branco. Só faltou dizer o quanto se lamentava ainda existirem índias/os por aqui.

Não se pode perder a esperança dessa CPI tomar outro rumo, pelo menos ao nível da dignidade das pessoas vítimas prováveis das suas conclusões. Assim, quem sabe, a árvore de Jeremias não seja arrancada, a vida do povo pobre indígena e sem-terra seja garantida, e o seu nome, em lugar de esquecido, seja lembrado como a própria libertação do injusto preconceito branco sobre eles.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Gustavo Guerreiro.

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