O Alienista e a Operação Lava Jato, por José Ribamar Bessa Freire

“Dos passos que foram dados / nem marcas restam no chão.
E de seus sonhos alados? / Nem as asas restarão.
Pois foram todos sonhados / No espaço de um porão”.
Ernesto Penafort (1936-1992), poeta amazonense

No Taqui Pra Ti

Dizem as crônicas de Pindorama que em tempos remotos vivera ali um certo juiz, o doutor M. y Cristiano, que mergulhou fundo no estudo da transgressão às leis. Cursou doutorado em Propinologia na Harvard Law School, nos Estados Unidos, onde defendeu tese sobre um dos principais recantos do crime: a lavagem de dinheiro. Descobriu que em Pindorama se pagava propina para concessão de todo e qualquer contrato público. Entendeu que se caçasse e punisse os corruptos, poderia impedir a continuação de tão pernicioso costume.

Obteve autorização do Tribunal Supremo para trancafiar todos os pilantras desonestos do país num presídio a ser construído na capital. Para isso desapropriou a fazenda Papuda, assim chamada porque sua proprietária, depois de contrair caxumba, ficou com as glândulas muito mais inchadas dos que a papada do Ricardo Berzoini. Lá seria erguida a casa de detenção, mas antes era preciso resolver três problemas: a escolha da construtora, o dinheiro para a construção, alojamento e manutenção dos presos e o nome do presídio.

Um novo imposto não era tarefa fácil, pois tudo estava taxado em Pindorama, salvo o ar. A saída foi criar, para esse fim, o TSAR – Tributo Sobre o Ar Respirado. Mais difícil ainda era selecionar construtora idônea, cujos donos não fossem presos ao terminar a obra. Encontraram em Bossoroca (RS) o idôneo consórcio uruguaio-gaúcho Mujica, Dutra & Cia que edificou, sem mutretas, o Presídio batizado de Papuda.

Foi aí que, inspirado na Operação Mani Pulite (Mãos Limpas) da Itália, o juiz M. y Cristiano criou as operações Farol da Colina e Lava-Jato. Prendeu suspeitos de evasão de divisas, sonegação, suborno, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro, entre eles grandes empresários, doleiros, tecnocratas, políticos, ministros. As prisões diárias cresciam de forma assustadora, sob os aplausos da turba. Os mil cubículos da Papuda logo foram ocupados por delinquentes de colarinho branco. Seis anexos foram construídos no Complexo Penitenciário para receber os novos hóspedes.

A Matraca

Os presos pertenciam quase todos ao grupo Petralha, cuja recente ascensão ao poder só fora possível pela fama de honestidade adquirida quando denunciavam os Coxinhas que governaram Pindorama durante cinco séculos. Na gestão Coxinha, cada tijolo escondia propina – berravam os Petralhas – citando obras recentes do aeroporto em fazenda particular, o metrô, a máfia da merenda escolar e até o antigo Forte de Bertioga erguido em 1549 pelo Coxinha Tomé de Souza que superfaturou cal de sambaqui e óleo de baleia.

Foi com promessas de moralidade que os Petralhas ganharam as eleições. Mas uma vez no poder, passaram a governar usando o propinoduto herdado que tanto combateram, destroçando sonhos alados e uma trajetória de lutas. Os Coxinhas protestaram, não por serem contrários à prática secular da distribuição de “acarajés” que afinal fora por eles criada, mas porque quem agora comia os “acarajés” eram os neopraticantes que sequer lhes pagavam direitos autorais. Exigiram o impeachment dos Petralhas porque queriam reocupar o lugar no banquete que privatizava o que era público e não porque “Marx e Hegel ficaram envergonhados”.

Os dois grupos vomitavam ódio e se digladiavam com “argumentos” passionais que derrotavam o pensamento e a razão, enquanto um terceiro grupo assistia a “guerra do acarajé” sem nada entender: eram os Perplexos. Acusados de Petralhas pelos Coxinhas e de Coxinhas pelos Petralhas, os Perplexos desconfiavam dos dois grupos e duvidavam de tudo, considerando a forma como os fatos eram seletivamente divulgados.

É que o juiz M. y Cristiano usou com êxito o instituto da prisão preventiva e da delação premiada para facilitar a investigação criminal e desarticular quadrilhas, bandos e organizações. Os presos começaram a bater com a língua nos dentes para terem a pena diminuída. No entanto, a “Matraca”, que mantinha relações promíscuas com os Coxinhas, só anunciava trechos que comprometiam os Petralhas.

A “Matraca” funcionava assim: um homem contratado desfilava pelas ruas de Pindorama, tocando uma matraca na mão para atrair a atenção das pessoas que se reuniam em torno dele. Aí, quando tinha bastante gente, ele anunciava trechos escolhidos dos depoimentos confidenciais dos delatores aos quais tivera acesso não se sabe como. Suspeitas, suposições, conjecturas, antes mesmo de serem confirmadas ou descartadas pelas investigações da polícia, já eram matraqueadas como verdades, mesmo se fossem falsas ou parciais.

– O povo não é babaca, abaixo a Matraca – gritava a turba para quem a única mensagem confiável ali era a previsão meteorológica anunciada por Juma, uma matraqueira bonita e inteligente, que quando previa chuvas e trovoadas era para todos e não apenas para um grupo. O resto era de procedência duvidosa.

Cegueira deliberada

“A ocupação mais digna de um juiz é a moralidade” – bradou M. y Cristiano que classificou os presos em furiosos, mansos, delirantes, cagões, exibidos e cegos. Entre os exibidos estava o casal de marqueteiros que fascinou Pindorama pela forma com que mascava chiclete, num movimento sincronizado da mandíbula, repassando a goma – importada, é claro –  com a língua para ambos os lados da boca como só se faz nos Estados Unidos. Já os cegos surgiram com a teoria da cegueira deliberada inventada pelos americanos – a Willful Blindness Doctrine – quando a pessoa não quer ver o crime para não se comprometer.

A luta contra a corrupção era sincera? Há controvérsias. Parece que tal cegueira deliberada atingia também quem estava prendendo e julgando, pois nenhum Coxinha citado pelos delatores era preso. O juiz, que continuou a fazer novas prisões, começou a investigar parlamentares, presidentes das casas legislativas e mandatários de diferentes níveis. Soou o alarme. Políticos e empresários que nunca distinguiram fronteiras, não sabiam onde a honestidade terminava e onde começava a corrupção.

As investigações ainda em curso podem ter três finais à escolha do leitor.

O primeiro: os Petralhas vão todos em cana. Os Coxinhas, paladinos da honestidade, retomam o poder que sempre lhes pertenceu, mandam demolir alguns anexos da Papuda e tudo voltar a ser como dantes no quartel de Abrantes. “Vitória na Guerra, Irmão”.

O segundo: o juiz descobre que não adianta só extirpar os corruptos, se o sistema que os cria continua a reproduzi-los. Corrupção se combate punindo os transgressores, é verdade, mas especialmente transformando o sistema. Acontece que quem vota as reformas são precisamente aqueles que no exercício da atividade política se beneficiam dele e por isso impedem as mudanças. Daí a necessidade de entender como funciona tal organismo para não se deixar manipular como um trouxa. Só assim é possível mobilizar a sociedade para exercer pressão efetiva e mudar “as regras do jogo” e não servir de massa de manobra para interesses inconfessáveis.

O terceiro: o juiz M. y Cristiano depois de prender todos os delinquentes – petralhas, coxinhas e alguns perplexos – verifica nas estatísticas do IPGE que 75% da população de Pindorama estava encarcerada. Descobre que o suborno não é um desvio da norma, mas a própria norma e que comportamento desviante tinham aqueles que não subornavam, nem se deixavam subornar. “Em Pindorama – concluiu o juiz – todo mundo é corrupto, exceto quem não é”. Dito isto, o juiz deduziu que ele era a única pessoa “anormal”, liberta os presos, incluindo Zé Maria, o novo chefe da facção, e para assombro de todos se tranca num cubículo da Papuda.

P.S, Agradecemos ao Bruxo do Cosme Velho, Joaquim Maria Machado de Assis, o conto inspirador “O Alienista”.

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