Um elefante na sala do Brasil

Na Lista Odebrecht, retrato da democracia sequestrada. A Lava Jato só pode prosseguir como farsa. Reforma Política nunca foi tão necessária – mas governo parece não compreender

Por Antonio Martins – Outras Palavras

O que é o assalto a um banco, comparado à fundação de um banco?, perguntou certa vez Bertolt Brecht. O que são dois singelos pedalinhos – ou, vá lá, a ajuda da construtora Odebrecht na reforma de um sítio frequentado por Lula – diante de uma lista em que a mesma empreiteira revela financiar 316 políticos de praticamente todo o arco ideológico, destinando a cada um deles somas que chegam a vários milhões de reais e tratando-os por apelidos típicos de quadrilheiros, como “Caranguejo, “Viagra”, “Drácula”, “Avião”, “Bruto” ou “Nervosinho”?

A revelação de que se apreendeu uma superplanilha de financiamento de políticos, nos apartamentos de um executivo do Grupo Odebrecht; e de que é apenas a ponta do iceberg, no sequestro da democracia pelos grandes conglomerados econômicos [entra nota de rodapé?], tem imenso potencial transformador. Ela mostra como são pueris as hipóteses do juiz Sérgio Moro e do procurador-geral da República, que veem em Lula e na esquerda o foco – a ser abatido – da corrupção no Brasil. Ao expor (e popularizar, graças às cifras e codinomes) um mecanismo muito mais sofisticado de controle de República, a descoberta implode as bases morais da campanha pelo impeachment;desnuda seu caráter de golpe; começa a esvaziar as ruas que haviam se pintado de amarelo, alimentadas por um sentimento mórbido. Aqueles que viam em Lula e Dilma os bodes expiatórios em que descarregar suas frustrações, começam a perceber que acreditaram numa fábula simples demais.

Seria de esperar uma contra-ofensiva – e há amplas condições para iniciá-la. Em 18 de março, nas manifestações anti-golpe, dezenas de cidades viveram algo que não se dava ao menos desde a primeira eleição de Lula. Em resposta aos riscos de retrocesso e à espiral de ódio, reuniram-se centenas de milhares de pessoas e – igualmente importante – um arco social, político e cultural que vai muito além do PT e dos partidos de esquerda no governo. As mobilizações, em que um velho militante detectou “quinhentos tons de pele”, abrigaram também centenas de bandeiras transformadoras, de direitos a ser defendidos e conquistados, de expressões de gênero, de sensibilidades contrárias à lógica do capital.

A onda não estancou no dia 18. Cresce, multiplica-se e se capilariza em novas mobilizações; e em centenas de articulações antigolpe. Surgem em categorias profissionais e sindicatos, no mundo da cultura, em universidades, em grupos informais despertos pelo risco de regressão. Brotam movidas pela ideia de que o Brasil não está condenado à deriva conservadora. Articulam-se em páginas da internete grupos no Telegram e Whatsapp. Desejam agir.

Para transformar sua energia em força capaz de influir no cenário político, são necessários sinais. O primeiro é a reabertura do debate sobre Reforma Política. Para enfrentar a narrativa primitiva da Lava Jato – trincada pela superplanilha, mas ainda muito viva, porque repetida incessantemente pelo oligopólio da mídia – não basta afirmar que “não vai ter golpe.” É preciso dialogar de fato com as maiorias, que enxergam nitidamente o caráter farsesco da “democracia” em crise. Isso requer uma agenda ao mesmo tempo contestadora e viável.

Alguns itens possíveis: a) Mobilização para assegurar que se cumpra, já nas eleições de 2016, a proibição do financiamento empresarial das campanhas políticas. Embora decretado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), este veto será facilmente contornado, sem pressão e fiscalização popular. A superplanilha revela que o grande poder econômico pode transitar facilmente entre o financiamento legalizado e o clandestino, o que pode se repetir este ano. Novas tecnologias podem, porém, assegurar controle público, quando há – como é o caso – vontade política coletiva. b) Retomada, por meio de uma Conferência Nacional sobre Reforma Política (que o Executivo pode convocar independentemente do Congresso) da pauta proposta pelos movimentos sociais. Ela inclui, entre muitos itens, facilitação dos plebiscitos e referendos, mecanismos de democracia direta via internet, revogabilidade dos mandatos, direito a candidaturas independentes de partidos; c) Mecanismos de controle social sobre os Orçamentos da União, Estados e Municípios. Tais orçamentos são hoje, junto com oslobbies permanentes que atuam para mudança da legislação, o mecanismo principal de submissão da política ao poder econômico. Há, porém, mecanismos extremamente viáveis para torná-los mais transparentes. d) Elementos de uma pauta plebeia, capaz de tocar o sentimento jacobino que emerge das ruas. Por exemplo: redução dos vencimentos dos parlamentares a dez ou quinze salários-mínimos; fim do auxílio-moradia, carro oficial, semana de três dias de trabalho, férias de três meses ao ano, auxílio para pagamento Saúde e Educação privadas.

Mas o compromisso com a Reforma Política é apenas a ponta de lança de um vasto programa de mudanças estruturais, que a mobilização social retomada autoriza a abrir. Deveriam fazer parte do leque de propostas: a) Reforma Tributária (sobre a qual também é possível abrir debate imediato); b) Democratização dos Meios de Comunicação (que pode ser facilmente iniciada interrompendo-se a escandalosa propaganda governamental nas publicações que incentivam o golpe); c) Fim do Ajuste Fiscal, cujo fracasso é evidente; anúncio da redução acelerada das taxas de juros, que reduza a transferência brutal de recursos públicos para a aristocracia financeira; início de um plano de investimentos maciços em infra-estrutura, baseado especialmente na garantia de dignidade material para as periferias (saneamento, urbanização, revolução nos transportes públicos) e na atenção à agenda pós-desenvolvimentista (demarcação das terras indígenas e quilombolas, promoção da energia eólica e solar, apoio à agricultura orgânica etc); d) Retomada da Política Externa Independente, apequenada desde o início do governo Dilma, mas cada vez mais necessária para fazer frente à nova ofensiva dos Estados Unidos na América Latina e à onda conservadora na região.

Por paradoxal que pareça, o governo Dilma não dá nenhum sinal nesta direção. Houve até um brevíssimo lampejo, às vésperas de Lula ser nomeado ministro. Falou-se numa reformulação vasta do ministério, na convocação de auxiliares como Celso Amorim, Ciro Gomes e Franklin Martins – que sinalizariam compromisso com a agenda de reformas efetivas. Alvoroçado, o presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, que pediria demissão, para não comprometer sua fidelidade aos mercados. A presidente não esperou, sequer, que o ministro Gilmar Mendes bloqueasse a posse de Lula. Naquela mesma tarde, reafirmou em entrevista coletiva o compromisso do governo com o “ajuste” fiscal desajustador e favorável à banca.

Desde então, o governo segue na mesma toada. Em pleno transcurso do processo de impeachment, Dilma sancionou a lei “anti-terror”, que, a depender de interpretação judicial, pode voltar-se contra movimentos sociais. O ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, tem rédea solta para propor ao Congresso lei de (contra)-”reforma” fiscal prevendo congelamento de salários nominais e demissão em massa de servidores públicos. O governo não enfrenta os riscos da lei de concessão do Pré-Sal a petroleiras globais (patrocinada por José Serra). Muito menos dispõe-se a falar em Reforma Política real.

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Parece acreditar na velha fórmula das composições no Congresso, nas trocas de favores, no loteamento de postos no governo. Não se dá conta de que, após a divulgação da superplanilha, a tática do golpe mudou As revelações bombásticas da Lava Jato sumiram temporariamente das manchetes, para que não fique clara a inconsistência da hipótese de Moro e Janot. É conveniente que o assunto caia, por enquanto, no esquecimento.

Nesse ínterim, as capas dos jornais e as manchetes dos noticiários exploram outra debilidade do governo: a crise econômica, causada pelo (des)”ajuste” fiscal. Demissões, fechamento de centenas de indústrias, inadimplência. O clima pessimista favorece o desembarque dos partidos que poderiam evitar o impeachment – neutralizando, aparentemente, até mesmo a tentativa de trocar votos no Congresso por postos no governo. Num momento propício aos golpistas, poderá vir o golpe final. Novas “bombas” da Lava Jato, repetidas exaustivamente e sem direito de resposta pelo oligopólio da mídia, quando o impacto dasuperplanilha estiver esquecido? Articulação precisa entre as “denúncias” e as votações decisivas, sobre o mandato presidencial, na Câmara e Senado?

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Enquanto houver mobilização, a esperança não estará esgotada. Em 31 de março – 52º aniversário do golpe do início da ditadura de 1964 – novos protestos rebeldes tomarão as ruas de dezenas de cidades. Denunciarão a tentativa de golpe. Que possam, além disso, esboçar uma agenda alternativa. Nela, parecem viver as esperanças de evitar o impeachment e o retrocesso. Nela estarão, caso se consume o golpe, as ideias de resistência e de novo país.

Foto: Willian Bonner lê, no “Jornal Nacional”, texto sobre a “superplanilha”. Emissora tenta abafar documento, que demonstra como é pueril ideia de Sérgio Moro e Rodrigo Janot sobre corrupção brasileira

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