Comunicação e mulheres negras: no centro da epidemia do Zikavirus

Por Naiara Leite* e Emanuelle Goes**, em População Negra e Saúde

Historicamente as mulheres negras têm buscado se aproximar dos direitos constituídos para todos no Brasil. Uma busca que tem custado humanidade, existência e continuidade de vida para uma população, que em toda sua história conhece apenas o lado reverso do direito. Se fossemos escrever um roteiro de filme com narrativas de jovens e mulheres negras sobre vivências ainda a partir das histórias que pais e mães contam perceberíamos a interferência do racismo em níveis dinâmicos para nossas construções de humanidade e de existência.

Assim iniciamos as narrativas para histórias compartilhadas nas mazelas, miséria e sobrevivências de milhões de mulheres e jovens negras, ditamos agora atos, cenas e roteiros de vidas:

“sou a terceira de cinco filhos; meu pai era pedreiro e minha mãe tinha acabado de chegar do interior pra tentar a vida na capital; minha mãe não tinha plano de saúde; meu nascimento não foi planejado; minha mãe não teve acompanhamento médico durante toda a gestação porque tinha que trabalhar; na época meus pais estavam preocupados em como criaria mais uma criança; não tínhamos casa própria, estavam construindo uma casa pequena no quintal cedido pela minha avó; com a chegada de mais uma criança e pouco recurso foram obrigados a mudar para casa que só tinham paredes, mas não tinha reboco, pintura e encanamento de água adequado; quando nasci dormíamos todos os cinco filhos no mesmo quarto, normalmente quando um ficava doente todos ficavam; minha mãe nunca gostava quando ficávamos doentes por dois motivos: não tinha dinheiro pra pagar os remédios e não gostava do tom que os médicos falavam com ela, segundo ela ficavam culpando-a por trabalhar durante o dia e a noite e nunca ter tempo para acompanhar os filhos; crescemos no subúrbio perto do esgoto que caia direto na maré que tomávamos banho e pegávamos, na maioria das vezes, o alimento; quando era época de chuva não conseguíamos dormir porque precisava tirar a água que caia dentro de casa e inundava tudo, quando a água da chuva se misturava com a água parada nos enormes buracos na rua, que ainda não era asfaltada e não tinha saneamento algum; antes de dormir colocávamos papelão atrás da porta pra evitar que ratos calungas entrassem em casa. Eles eram muitos e viam da rua, sempre que demorava de passar o carro de lixo, que na maioria das vezes levava 15 dias; sempre que tinha uma folga minha mãe costurava os mosquiteiros, pois se tivesse furado não conseguiríamos dormir com a quantidade de mosca e muriçoca que tinha em casa”.

Se as histórias das mulheres negras ultrapassassem suas vidas e subjetividades e, entrasse nas telas de cinema desde o seu nascimento até a vida adulta não teríamos papel suficiente para enumerar as violações cotidianas provocadas pela intersecção do racismo, do sexismo e da pobreza. Provavelmente, esse seria um daqueles filmes intermináveis, que ultrapassaria a expectativa de um longa-metragem, maior tempo de produção caracterizado pelo cinema.

Em outubro de 2015, fomos inseridas em mais cena de violências, violações e desumanidades. Foi noticiado neste mês e ano pela imprensa brasileira a chegada do Zika Vírus no Brasil. Nas diferentes chamadas dos noticiários vimos e sofremos com a história de mulheres e jovens negras grávidas em filas de espera nos postos de saúde pública sendo entrevistadas para falar do vírus, que é transmitido pelo mosquito Aedes Aegypti.

Ao iniciar a entrevista o repórter logo pergunta se estavam fazendo o controle e prevenção da chegada do mosquito em suas casas, se sabiam que ao engravidar estavam sentenciando seus filhos a microcefalia e quais os procedimentos e medidas estavam sendo tomadas. Um show de horrores, que pode chegar na casa, na família, nas amigas, na rua, na comunidade de qualquer mulher e jovem negra. Naquele momento todas viam em uma mesma cena.

Para pensar nas violações de direitos humanos é importante traduzir o direito à comunicação. A comunicação se tornou elemento central para a constituição de uma sociedade democrática, mesmo que, na prática a democracia seja direcionada para uma minoria da população brasileira.

Na teoria, o direito humano à comunicação significa que todas as pessoas devem poder e ter condições para se expressar livremente, ser produtoras de informação e  ter acesso a diversas fontes de informação, ou seja, exercer plenamente esse direito. Na busca pela garantia de direitos a comunicação deveria servir como representação dos processos de transformação. Porém, romper com o monopólio da fala em coberturas  midiáticas de assuntos e casos como o do Zika Vírus, significa construir uma abordagem que verse a partir das narrativas das mulheres negras, por exemplo.

Neste momento, o Zika vírus faz emergir o quanto existe negação de direitos fundamentais, humanos e constitucionais para as mulheres negras jovens, sobretudo da Região Nordeste. A epidemia Zika Vírus é o resultado dos impactos do racismo que vulnerabiliza e expõe a população negra as condições de vida mais precárias. As violações históricas dos direitos humanos, desde o nascimento dessas mulheres, que sofrem diretamente o impacto da ausência de direitos sexuais e reprodutivos, do submundo do esgoto, da falta da política de saneamento e da exclusão no acesso as informações e atendimento digno aos serviços de saúde, reflexo do racismo institucional, que estrutura as políticas públicas no Brasil.

E a responsabilização da epidemia recai sobre as mulheres negras que passaram a ser vista como as mães que condenaram seus filhos a nascerem com microcefalia e como as mulheres sem preocupação e cuidado com a faxina e higiene de suas casas, sendo a responsável em garantir o bem estar da família e da comunidade. Tal abordagem vem retirando do Estado brasileiro e do poder público toda e qualquer responsabilidade, bem como, criminalizando essas mulheres. Outra abordagem utilizada pela mídia tem sido a de visibilizar a imagem das crianças com microcefalia, na perspectiva sensacionalista de provocar sofrimento e sensibilização da sociedade para a criança com crânios deformados, porém, deixando nas entrelinhas a responsabilização e invisibilidade do sofrimento das mães, que sem a menor estrutura, apoio, solidariedade e assistência deverão cuidar de seus filhos.

Até o momento essas mulheres não tiveram o direito de falar sobre suas preocupações, inquietações e dramas, sendo a elas negado o direito de ser colocadas no centro dos debates e das abordagens, ou seja, são apenas reprodutoras e culpadas.  Estamos falando, mais uma vez, de mulheres destituídas do seu direito a maternidade e tudo que ela implica: amor, felicidade, expectativas e sonhos.

Os diferentes movimentos de mulheres negras sempre questionaram a forma abusiva e estereotipada como a mídia tradicional trata questões relacionada ao racismo e sexismo. Há tempos esses movimentos discutem a necessidade de mudanças no sistema midiático em nosso país de forma a garantir a liberdade de expressão e o direito à comunicação de todos e todas, e não apenas daqueles que detêm o poder político ou econômico e a propriedade dos meios de comunicação em massa.

São lutas históricas contra a mercantilização dos corpos, a coisificação das mulheres negras, da imagem preconceituosa, da visibilização sensacionalista e tendenciosa dos sofrimentos das perdas dos milhares de jovens negros assassinados, da supervalorização estigmatizada do perfil e imagem sobre homens e mulheres negras perpetuadas nas novelas de época e escravistas e da invisibilidade seletiva da nossa diversidade de viver e estar no mundo e pluralidade das nossas lutas.  Somos a imagem personificada carregadas de preconceito compartilhadas nos meios de comunicação.

É importante destacar que à comunicação enquanto direito ela precisa legitimar estereótipos positivos e ressaltar valores que contribuam para o combate o racismo e todas as formas de discriminação e desigualdades.  Com experiências tão negativas no campo dos direitos humanos o enfrentamento a epidemia do Zika Vírus não é tarefa apenas das mulheres e da população negras, mas sim, de toda uma sociedade que precisa desnudar-se dos seus preconceitos e dos seus privilégios.

*Jornalista, Coordenadora de Comunicação do Odara Instituto da Mulher Negra

**Enfermeira, Coordenadora de Saude do Odara Instituto da Mulher Negra

 

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