E por que não os Guarani-Kaiowá?, por Luiz Fernando Caldas Fagundes*

A pergunta acima se refere a um inquietante questionamento que nos temos feito nos últimos dias, a partir de um enquadramento da vida dos coletivos indígenas executado por deputados da bancada ruralista e propositores da CPI da Funai e Incra a despeito de um gravíssimo quadro de violações sistemáticas aos direitos dos povos indígenas no Brasil. Trata-se, aqui, de compreender como esse enquadramento se constrói, a partir da justificativa que consta no Requerimento nº 274/2016 (14/06/2014), de autoria do Deputado Valdir Colatto/PMDB-SC, para que lideranças Xavante sejam ouvidas no âmbito da CPI da Funai e Incra. Cita-se:

“Os trabalhos desta Comissão de Inquérito, de alguma forma, terminarão por produzir efeitos em relação aos brasileiros de etnia indígena, que estão sendo os menos ouvidos até o momento. // Afora isso, a maior parte dos trabalhos estão concentrados em áreas distantes da região Amazônica. // Em face disso, apresenta-se o presente requerimento, para que sejam ouvidos indígenas da etnia Xavante, do Estado do Mato Grosso, que têm revelado excepcional liderança à frente de suas comunidades indígenas”  (AQUI)

Incrédulos, mais uma vez com o conteúdo das justificativas dos deputados que controlam a CPI da Funai e Incra, apresentamos as seguintes considerações. Mas, primeiramente, FORA TEMER!!!!!!

Chamamos a atenção para o dia de apresentação do requerimento: 14 de junho de 2016. Coincidentemente, dia do massacre realizado por produtores rurais (conforme inúmeros relatos e matérias jornalísticas) contra famílias do povo Guarani-Kaiowá, na região de Caarapó, Mato Grosso do Sul, que resultou no assassinato do agente indígena de saúde, Clodiode Aquileu Rodrigues de Souza. Outros cinco indígenas ficaram feridos, entre eles uma criança de 12 anos; todos atingidos por munições letais, de acordo com o hospital onde eles estão internados. O episódio ocorre menos de um ano depois da morte de Semião Fernandes Vilhalva, outro Guarani-Kaiowá, que foi assassinado em circunstâncias parecidas na mesma região (AQUI).

Seria uma significativa coincidência ou uma prática reforçada pela inexistência de criminalização, até o momento, dos responsáveis pela morte de Semião Vilhalva?

Lembremo-nos que no período de 06 a 10/06/2016, semana anterior ao terrível massacre da vez aos Guarani-Kaiowá, ocorreram diligências da CPI da Funai e Incra com a participação da Sub-Relatora, a Deputada Tereza Cristina (PSB-MS), nos Municípios de Amambai, Dourados e Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Não se está aqui afirmando que há uma relação direta das diligências da CPI com o massacre realizado pelos fazendeiros contra os Guarani-Kaiowá, mas recordamos as denúncias das lideranças e comunidades indígenas que consideram esta CPI como mais um instrumento de criminalização do movimento indígena e de seus apoiadores (cf. notícia disponível AQUI), assim como as preocupações quanto às dimensões que vem à tona nas declarações dos deputados propositores da CPI que incitam o acirramento à violência, racismo e ódio existente contra os povos indígenas que vivem em seus territórios tradicionais no país.

Por exemplo, ver vídeo gravado em audiência pública com produtores rurais, em Vicente Dutra/RS, que registra discursos dos deputados Alceu Moreira/PMDB-RS e Luis Carlos Heinze/PP-RS, ambos propositores desta CPI, estimulando que produtores rurais usem de segurança armada para expulsar indígenas do que consideram ser suas terras.

Interessante percebermos a movimentação dos agentes do Estado no sentido de uma criminalização seletiva. Esclarecemos. A morte de Semião Vilhalva e os episódios recorrentes de atuação de forças paramilitares no Mato Grosso do Sul não foram esclarecidas até o momento. Entretanto, monta-se todo um aparato para criminalização de indígenas e de seus apoiadores.

Revivamos as sábias palavras dos rezadores, lideranças e conselheiros Guarani-Kaiowá que repudiaram, no dia 07/06/2016, a “agenda” desrespeitosa da comitiva da CPI da Funai e Incra no Mato Grosso do Sul: “Soubemos que é a deputada Tereza Cristina que está à frente desta comitiva. Ela não gosta de índio, nunca gostou, mas como deputada deve agir de maneira pública e respeitosa e não de maneira privada como as cercas das propriedades que ela defende. Ela estava naquela reunião do sindicato com os ruralistas que atacaram Ñanderu Marangatu. Na mesma tarde, as pessoas que estavam nesta reunião seguiram a fazendeira pra nos expulsar da terra, e ali dentro do tekoha foi assassinado o Simeão Vilhalva, que tinha 24 anos, que levou um tiro na cabeça” (AQUI e AQUI).

Os sábios indígenas em inúmeros documentos e manifestações já demonstraram ter conhecimento e reivindicar o direito garantido pela Constituição brasileira e por diretrizes internacionais de participação em toda e qualquer agenda, programa ou medida que esteja relacionada com suas vidas e interesses. Certamente, referiam-se, principalmente ao direito dos povos indígenas à Consulta Prévia, Livre e Informada (CPLI) que está garantida na Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais, da Organização Internacional do Trabalho/OIT, promulgada no Brasil por meio do Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004.

Trata-se de uma obrigação do Estado brasileiro de perguntar, adequada e respeitosamente, aos povos indígenas sua posição sobre decisões administrativas e legislativas capazes de afetar suas vidas e seus direitos. A CPLI é um direito dos povos indígenas de serem consultados e participarem das decisões do Estado brasileiro por meio do diálogo intercultural marcado por respeito e boa fé. Esse diálogo deve ser amplamente participativo, ter transparência, ser livre de pressões, flexível para atender às temporalidades e à diversidade dos povos e comunidades indígenas e ter efeito vinculante, no sentido levar o Estado a incorporar o que se dialoga na decisão a ser tomada.

Parece, então, que a CPI da Funai e Incra, em andamento na Câmara de Deputados, encontra-se em total desacordo com este instrumento normativo internacional aprovado pelo Congresso Nacional (Câmara e Senado) por meio do Decreto Legislativo nº 143, de 20 de junho de 2002.

Além do requerimento citado acima, há outro, o de nº 275/2016, também apresentado no dia 14/06/2016 pelo Deputado Valdir Colatto/PMDB-SC, destinado a convidar membros da etnia indígena Parakanã, considerando as mesmas justificativas, ou seja, de que os povos interessados “estão sendo os menos ouvidos até o momento”.

Interessante refletirmos para o fato de que os membros da CPI, que tem data certa para encerrar no dia 18/06/2016 (não podendo ser prorrogada), somente agora se lembram do que nos parece ser absolutamente óbvio: o que está sendo discutido ao longo de todos esse meses de funcionamento afeta (E MUITO) os povos indígenas no Brasil, sendo que eles não foram sequer decentemente ouvidos ao longo de todo o funcionamento dessa Comissão.

Agora e somente agora os índios importam? Seria uma estratégia dos deputados para legitimar o processo, contestado no Supremo Tribunal Federal, de “ouvir” os índios? Se sim, por que somente o convite para os povos Xavante e Parakanã? Quais os critérios desta escolha? Será que os deputados consideram que estas lideranças representam a diversidade cultural dos mais de 305 povos indígenas existentes no Brasil? Será que para os deputados ruralistas que controlam a CPI esse único momento de “escuta” significa o cumprimento do processo de Consulta, Prévia, Livre e Informada?

Se o objetivo fosse, efetivamente, compreender os graves conflitos e violações de direitos pelos quais passam os povos indígenas no Brasil, certamente uma escuta franca, respeitosa e de boa-fé deveria ter sido efetivada quando das diligências realizadas em Mato Grosso do Sul. Não para compreender toda a diversidade étnica no país e seus respectivos direitos em conflito, mas certamente teria sido mais republicano do que as agendas realizadas em grau de sigilo (AQUI).

Por fim, a pergunta mais óbvia de todas: por que a diligência da CPI da Funai e Incra que esteve no Mato Grosso do Sul na semana passada não ouviu respeitosamente os Guarani-Kaiowá?

* Cientista Social e Assessor Técnico da Secretaria Adjunta dos Povos Indígenas e Direitos Específicos da Secretaria Municipal de Direitos Humanos, Prefeitura de Porto Alegre.

Imagem: Familiares choram no velório de Clodiode Aquileu Rodrigues de Souza, de 26 anos. Foto: Ana Mendes /Cimi.

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