À sombra da história, a memória de Ji-Paraná vira pó

Por Coletivo Preserva, Ji-Paraná

Não foi necessário muito mais do que uma hora para soterrar, de uma vez por todas, parte valiosa da história de Ji-Paraná. Por volta das 22 horas de ontem (25 de julho de 2016), uma solitária escavadeira destruiu a Catedral São João Dom Bosco e a Praça Central, que compunham o núcleo original de povoamento e urbanização da saudosa Vila Rondônia.

A trágica demolição de uma das últimas edificações que marcava a transição entre o “tempo dos seringais” e o “tempo da colonização” explicita a deliberada destruição da memória de um povo em franco processo de construção de sua identidade cultural.

A repentina destruição da Catedral limitou gravemente o potencial de um município que poderia tornar-se uma referência histórica e turística para a região.

Arruinad@s estamos.

Cabe a pergunta: qual a intenção por trás desse ato, executado na calada da noite, sem aviso prévio à população?

Em tempos de democracia golpeada, não seria difícil apontar o medo da reação popular como um dos motivos para esconder a intenção – agora tornada ação – que prejudicará nossa história para sempre. A informação sonegada é sinal do reconhecimento da covardia do ato por parte de seus autores.

Lastimamos profundamente a destruição desse símbolo de Ji-Paraná, cidade que tem sido construída sob o árduo suor de tanta gente empobrecida que aqui fixou moradia na esperança de dias melhores.

Assistimos perplex@s o desrespeito à memória e ao lamento dos mais velhos, que sequer tiveram oportunidade de se despedir de forma digna.

Perguntamos o que foi feito do material que ainda poderia ser aproveitado. Familiares dos “pioneiros” que construíram a Catedral já haviam manifestado sua intenção em ter ao menos uma recordação do esforço de seus antepassados. Coube a eles alguma parte deste legado?

Sem chão, desenraizad@s ficamos.

Repudiamos a forma desonesta como foi soterrada, sob os escombros da igreja tombada, a valorosa história dessa gente que merece nossa reverência.

Em sentido oposto ao acordado em reuniões no Ministério Público Federal[1], quando o Coletivo Preserva Ji-Paraná afirmou que contribuiria em um “trabalho de memória” prévio caso a demolição da Catedral fosse inevitável por motivos de segurança, a Diocese de Ji-Paraná omitiu seu calendário de destruição e inviabilizou qualquer trabalho sério de valorização da memória local.

O compromisso do Preserva Ji-Paraná em colaborar neste processo foi reafirmado publicamente durante o Fórum e Seminário sobre Patrimônio Histórico e Cultural de Ji-Paraná, realizado em 1 de junho de 2016 no Teatro Dominguinhos e que contou com a presença do representante da Diocese. Qualquer pretenso “Museu” dedicado à história da igreja nascerá dessa omissão.

Lamentamos que nem o IPHAN nem o MPF – instituições que confirmaram o valor da Catedral como patrimônio cultural, ao contrário do que tem noticiado a Diocese e a mídia local – tenham estipulado como condicionante à autorização para demolição da Catedral a realização de um trabalho PRÉVIO e contínuo de Educação Patrimonial junto à sociedade ji-paranaense.

Destruíd@s estam@s.

Denunciamos o silêncio da Prefeitura de Ji-Paraná, que abriu mão, nesse caso, de sua responsabilidade na proteção do patrimônio histórico cultural, conforme prevê a Lei Orgânica do município. Do mesmo modo, a Câmara de Vereadores da cidade sequer dispôs-se a ouvir o Coletivo Preserva Ji-Paraná, a despeito de nossos pedidos, sinal claro dos limites de nossa democracia representativa, em que só há espaço para os poderosos e interesses eleitoreiros.

Apontamos ainda o constrangedor papel da mídia local que, sob raras exceções, recusou-se a fazer um bom jornalismo. Em diferentes momentos, ouvimos que nossa causa não “era assunto interessante” para sair no jornal, logo desmentido pelo grande interesse público pela situação. Em geral, ao invés de buscar conhecer os argumentos e a opinião mais ampla da sociedade, a mídia local comportou-se como mero porta voz da Diocese, reproduzindo suas alegações, sem informar de fato a população.

É preocupante o comportamento de parte da comunidade católica, que ao longo deste processo compactuou com posturas autoritárias e arbitrárias, a ponto de reproduzir discursos que contrariam as práticas democráticas e ecumênicas professadas pelo Papa Francisco, hostilizando diferentes manifestações religiosas. Lamentamos que ao desfecho desta polêmica, no ano em que a Campanha da Fraternidade nos convida a vivenciar a “Casa Comum, Nossa Responsabilidade”, a Igreja siga reforçando o equívoco de que a Catedral não tinha história, a fim de justificar sua ação. Isso só demonstra seu frágil entendimento sobre o que é cultura e o que é patrimônio cultural no âmbito dos direitos coletivos.

Desabamos tod@s.

A Catedral se foi. Mas a ampla repercussão de nossa luta em defesa de “uma igreja velha” e “sem história” demonstra a urgência e a necessidade de que o patrimônio cultural seja levado a sério nessas fronteiras amazônicas, antes que o monstro feroz da modernização soterre não apenas os tijolos, mas qualquer possibilidade de sobrevivência de nossa própria cultura.

“Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca”. Amós 5,24

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Nota:

[1] Tais acordos estão registrados nas atas do Inquérito relativo à Catedral no MPF: “Em sentido semelhante, os representantes do Movimento Preserva Ji-Paraná consignaram, durante a reunião de 17/122/2015: se a questão da segurança está comprometida, pede-se que seja realizado um trabalho de memória da igreja (fl. 637, verso). Portanto, é necessário um trabalho de resgate da memória da igreja como compensação pela demolição do atual prédio, o que, por lógica, deve ficar ao encargo da sociedade, pela Diocese, Movimento Preserva Ji-Parana e outros interessados, e da Prefeitura Municipal, sem prejuízo da participação de outros órgãos de patrimônio histórico.” (MPF RO, 2 de maio de 2016, p. 4).

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Lediane Felzke.

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