Seis dias e 170 quilômetros a pé em terrenos pisados por Riobaldo e Diadorim, na maior jornada feita por projeto que celebra a genialidade do escritor mineiro cuja obra-prima completa 60 anos
Alexandre Guzanshe – Estado de Minas
As luzes de Chapada Gaúcha despontam ao longe. Sugerem o fim de uma longa, doída, sofrida, mas reveladora jornada: nada menos que 170 quilômetros caminhando pelo sertão imortalizado na obra do escritor mineiro João Guimarães Rosa. “É uma miragem, só pode ser”, pensei, enquanto olhava para frente, com a sensação de que elas não se aproximavam. Estavam ali, mas nunca chegavam. Após seis dias de peregrinação, eram os últimos cinco quilômetros. Depois de andar quase cinco vezes mais desde a manhã, aqueles últimos passos talvez fossem os piores dessa que se tornaria a maior jornada já cumprida pelo projeto Caminho do Sertão – em extensão e em número de participantes: 91. Eu carregava o já inseparável cajado, uma câmera no pescoço, uma mochila com água, canivete, algum remédio, uma segunda câmera. Na bagagem, também uma sacola com outros sacos plásticos. Dentro de cada um, um pouquinho de terra. Terras coloridas: amarela, roxa, vermelha, branca… A poeira do sertão; a terra de Rosa.
O desafio de repisar o chão empoeirado batido pelos imortais personagens roseanos nasceu de um grupo de ativistas regionais, com a intenção de prestar tributo a Guimarães Rosa, à sua obra e ao povo sertanejo. Promove um mergulho social, ambiental e literário – até espiritual, diria – no universo de Rosa e no cerrado do Noroeste mineiro, passando por parte do caminho realizado por Riobaldo, Diadorim e a jagunçagem, personagens do livro Grande Sertão: Veredas. Neste ano, a caminhada teve um gostinho especial. Três obras do autor celebram datas importantes: o livro de contos Sagarana completa 70 anos de publicação; o livro de novelas Corpo de Baile e a obra maior, Grande sertão, ambos lançados em 1956, chegam aos 60 anos.
Mas não é fácil se lembrar disso enquanto Chapada Gaúcha não chega. Via-se de longe, bem muito longe, queima de fogos. Estavam esperando os caminhantes. A Festa do Encontro dos Povos do Grande Sertão Veredas iria nos receber. Eu, um dos 67 participantes, e nossos oito guias estávamos andando havia seis dias, já loucos para completar aquela travessia. Continuava caminhando, com os pés doloridos e algumas bolhas. Estava tudo muito pesado e só conseguia pensar em chegar.
O motoqueiro que nos dava apoio passou perguntando se estava tudo bem com aquele pequeno grupo. Ajudou a nos encorajar, contando que estávamos perto da entrada da cidade. Nós éramos os últimos. Todos já haviam chegado. Essa turma, ou melhor, a galera do fundão, foi à que me adaptei melhor naqueles dias. A caminhada tem sua dinâmica e, como precisava fotografar e filmar, preferi seguir mais lento com aquele pessoal. Bravos caminhantes.
Carros passam acelerados para a festa. A poeira na cara. O tempo, já nem sabia qual era. A hora, pouco importava. Era noite. A poucos metros, um carro vai desviar de um buraco e quase atropela o grupo. Gritos e depois xingamentos. Mais alguns minutos de caminhada e enfim as luzes chegam mais perto. Já não são uma miragem. Os outros companheiros estavam lá, esperando. Os últimos quatro peregrinos chegaram abraçados. Sentei-me no meio-fio, segurando fortemente meu cajado de todo dia. Chorei. Chorei de felicidade. O sertão de Rosa é inesquecível. Como o próprio definiu: “Aquela Travessia durou só um instantezinho enorme. Digo: o real não está nem na saída nem na chegada; ele se dispõe pra gente é no meio da Travessia”. O diário dessa jornada pelo conhecimento – das veredas, do sertão, do cerrado, das gentes, do mestre, mas acima de tudo, o autoconhecimento.
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Trilhas entre morros e vales representam desafio para caminhantes, mas a vista compensa cada passo (foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press)
Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.