João Havelange, presidente da Fifa entre 1974 e 1998, morreu, na manhã desta terça (16), aos 100 anos, no Rio de Janeiro. Se vão com ele também acusações de corrupção, propinas, desvios, no Brasil e no mundo, que nunca foram devidamente investigados, julgados, punidos.
Mas, para muita gente, tudo isso é justificável por conta da “profissionalização” e da “popularização” do futebol que sua gestão teria trazido. Sabe qual o problema da máxima “os fins justificam os meios”? É que os concordam com ela raramente são os mesmos que terão que amargar suas consequências.
Preciso confessar que me interesso cada vez menos pelos grandes palcos do futebol, onde estão as principais estrelas, os holofotes e as sacanagens, e cada vez mais por anônimos que nunca terão seu nome gritado por uma multidão ensandecida, mas amam o futebol mesmo assim.
Quando soube que Havelange se foi sem ter respondido pelos seus crimes, após uma vida longa e confortável e até ovacionado pelo presidente interino Michel Temer (“O esporte mundial perdeu hoje um dos seus mais expressivos líderes. João Havelange se dedicou com afinco ao desenvolvimento do esporte e, principalmente, do nosso futebol”), pensei quantos desses anônimos nunca terão uma chance por conta da ação de pessoas como ele, que escravizam o futebol para seus interesses.
Daí lembrei de Jonas, resgatado do trabalho escravo em uma operação da qual participei anos atrás, cuja história contei aqui.
Cerqueiros perfuravam o chão, plantando mourões e passando arame por quilômetros a fio sob o sol forte da Amazônia. O serviço era pesado: dependendo do relevo, a cabeça ardia por dias até que se completasse um quilômetro de cerca. O pequeno açude, turvo e sujo, servia para matar a sede, cozinhar e tomar banho. Um perigo, pois a pele ficava impregnada com o veneno borrifado para tratar o pasto. Dessa forma, a terra vai se dividindo – não entre os cerqueiros, que continuarão sonhando com o dia em que plantarão para si, mas em grandes pastos para os bois. Dentre os trabalhadores, olhos claros e pele queimada, ele, Jonas, de 14 anos.
Analfabeto, me contou que morava em uma favela no município com a família adotiva e ia ao campo para ganhar dinheiro. Trabalhava desde os 12 para poder comprar suas roupas, calçados, fortificantes e remédios – até então, já tinha pego uma dengue e cinco malárias. Com o que ganhava no serviço, também pagava sorvetes e lanches para ele e seus amigos. E só. Segundo Jonas, a adolescência não era tão divertida assim: “brincadeira lá é muito pouca.”
A mãe, uma prostituta abandonada grávida por um viajante francês, teria dado Jonas de presente para um “gato” de fazenda. Gato é como são chamados os contratadores de serviços, que arregimentam pessoas e fazem a ponte entre o empregador e os peões. Porém, isso não lhe garantiu nenhum tratamento especial: teve que descontar do salário a bota que usava para trabalhar. Perguntei para o padrasto se isso era justo. Ele, de pronto, me respondeu que não considerava a venda do calçado para o próprio filho errado e justificou: “como vou sustentar a minha mulher?”
O alojamento que Jonas dividia com os outros era feito de algumas toras fincadas no chão, um pouco de palha e uma lona cobrindo tudo. O sol transformava a casa improvisada em forno, encurtando, assim, a hora do almoço. Redes faziam o papel de camas, penduradas aqui e ali para embalar, entre um dia e outro de trabalho, os sonhos das pessoas.
O de Jonas, como vários outros rapazes da sua idade, era ser jogador de futebol.
Presença garantida nos times dos mais velhos, participava de jogos e campeonatos quando eles aconteciam. Queria ser profissional, mas apesar de gostar dos times do Rio de Janeiro e de São Paulo, preferia ficar lá mesmo no Pará – quem sabe, algum dia, vestindo as camisas do Paysandu ou do Remo.
Centenas de crianças e jovens no Brasil abandonam a escola e trabalham desde cedo para ajudar as finanças em casa ou mesmo se sustentar. A situação melhorou muito nas últimas décadas, mas um grande número delas ainda estão sujeitas a condições degradantes, como Jonas. Catam latinhas de alumínio nos lixões das grandes cidades, ajudam a família em colheitas de fazendas alheias. Em casos extremos, são obrigados a trabalhar só por comida e impedidos de sair enquanto não terminarem o serviço.
Muitos deles, como Jonas, queriam ser jogadores de futebol. Talvez porque gostem do esporte como nós. Ou talvez porque vejam nele a possibilidade de se verem livres daquela vida, com a bola carregando-os para bem longe, longe o bastante para nunca mais voltar.
Jogos são usados para distrair, alienar e conduzir a plebe há muito tempo. O pessoal que sangrava no Coliseu, em Roma, que o diga.
Mesmo ao longo de nossa história, o futebol foi utilizado com fins políticos. E João Havelange, que dirigiu a Confederação Brasileira de Desportos, soube se aproximar e lucrar com a ditadura militar, que via no futebol a possibilidade de mostrar sucesso, harmonia e união. Afinal, éramos “90 milhões em ação”, muitos dos quais não faziam ideia que o país vivia um período sombrio de sua história. Por isso era necessário usar a Copa para empurrar “pra frente Brasil, no meu coração”. Sem divisões, sem questionamentos, apenas um sentimento de “todos juntos, vamos pra frente Brasil”. E deixando de lado mortes, torturas e perseguições políticas, gritar: “Salve a seleção”.
Não faltam livros, teses e documentários para quem quiser se informar sobre a ditadura militar e a Copa de 1970, na qual ganhamos o direito de derreter a Jules Rimet.
Por isso, o futebol é uma idiotice? Não, o futebol é fantástico, é sensacional, é indescritível. Imbecil é quem o usa politicamente – seja um governo que quer se promover através do futebol ou de seus opositores que querem desgastar o governo com futebol.
A gente pode passar a vida inteira tentando entender o esporte e, ainda assim, se surpreenderá. Como na história de um escravo de 14 anos que encontrava tempo para sonhar com uma bola.
Antítese dos dirigentes da Fifa e da CBF, como Havelange, que têm todo o tempo do mundo, mas ao invés de incentivar o esporte como instrumento de liberdade, escravizam-no para enriquecer às suas custas.
Agora, me digam: quem ama realmente o futebol? E quem ama só a si mesmo?
Por isso, tenho cada vez mais a certeza que os estádios são um simulacro.
A realidade está nas várzeas. Na forma de bolas bem surradas, que conseguem amolecer a dureza áspera do dia a dia e carregar consigo todos os sonhos do mundo.