O impeachment não é culpa do povo

Por Camila Sposito, em Justificando

Hoje é um dia triste na história do nosso País, mas não é culpa do povo brasileiro. Não devemos culpabilizar as vítimas mais uma vez. Culpar o povo é a saída mais fácil para repetirmos o que acontece hoje dentro de poucos anos.

Se concebermos como “povo” a maioria da população, em sua acepção antropológica, esta votou, participou devidamente, com a pequena parte que lhe cabe em nosso latifúndio democrático. Não obstante, sua vontade não foi respeitada.

Com a consolidação do impeachment, sem qualquer crime, triunfa, mais uma vez, a vontade de uma pequena parcela da sociedade brasileira

Não só a vontade dos que votaram na Dilma – afinal, quem assume agora não é Aécio. Todo o processo democrático da eleição, formada por vencedores e perdedores, está sendo sistematicamente pisoteada pelo “processo de impeachment”, que de processo jurídico só tem um verniz.

Trata-se de um conjunto de impropérios proferidos por quem tem teto de vidro, já completamente destroçado, diga-se, utilizando palavras e conceitos místicos e inacessíveis, exceto por poucos técnicos. Estamos sendo escarrados, subestimados pelos jornais, desrespeitados até nesse mínimo de civilidade que nos foi legado. O problema não é o povo, não é a maioria, a população.

Com a consolidação do impeachment, sem qualquer crime, triunfa, mais uma vez, a vontade de uma pequena parcela da sociedade brasileira. A mais retrógrada e moralmente questionável de todas, formada por uma elite preguiçosa no papel e incompetente em sua função capitalista de empreender (vide resultado da desoneração da folha de pagamento). Medíocre intelectualmente, porque incapaz de enxergar o avanço democrático, econômico e político como um progresso e ganho para si mesma; e mesquinha, porque prefere comungar com ricos estrangeiros, com quem acredita que se equipara, do que com as outras classes de seu próprio país.

Essa parcela é representada por uma casta de políticos impopulares, que só se elege aos cargos parlamentares justamente por isso, abusando da falta de informação em relação à importância desses cargos, combinada com campanhas caras feitas de mentiras, jingles horríveis e brindes baratos, que vencem pelo cansaço.

A vitória dessa casta não seria possível sem alguns outros setores sociais. No discurso de vitória, créditos devem ser dados:

– À grande mídia (Globo, Grupo Abril, Estadão, Folha, Record), a qual sistematicamente inverteu os papéis dos atores, transformando uma presidenta inocente em culpada, embora não tenha cometido qualquer crime que justificasse seu impedimento. Transformando também os verdadeiros ladrões e principais acusados da Lava-jato em julgadores, simplesmente porque a verdade sobre eles não serve aos seus interesses – os ladrões estão dispostos a vender a Petrobrás e até a mãe para salvarem suas peles, a presidenta não;

– Aos falsos profetas, os quais, não contentes em explorarem a fé nas suas igrejas, decidiram explorar a máquina pública munidos de seus discursos de ódio travestidos de palavras divinas, que viam no avanço democrático conquistado ameaça aos seus interesses também;

– Parte da classe média que evoluiu em seu poder de consumo, mas não em seu poder de raciocínio, e deu um baita tiro no pé ao bater panela contra Dilma –  quem viver verá;

– Parte da esquerda brasileira, a qual, cega em suas críticas descoladas de uma análise de conjuntura realista, engrossou o coro dos golpistas na gênese do Golpe (a exemplo da crítica à escolha da Kátia Abreu, cuja participação no governo Dilma se revela agora como das únicas políticas que não se aliou à sanha golpista).

Tais setores não podem ser considerados “o povo” nem mesmo em seu sentido político, visto que não integram as camadas mais pobres da sociedade. O povão, os pobres, que serão de fato afetados pela ofensiva de Temer aos direitos trabalhistas, permanece silenciado e negligenciado desde o Brasil-colônia.

Quando o povão organizado se manifesta através do MST, das centrais sindicais, da arte periférica, normalmente é ridicularizado pela crítica e pelos formadores de opinião mais seguidos e aplaudidos. Os jornais até concedem espaço para poucas vozes dissonantes, geralmente intelectuais da elite de esquerda, ilustrada, mas nunca aos do povão.

O povão foi às ruas contra o golpe em atos e manifestações por todo país, mas sua manifestação não recebeu metade da atenção que os protestos vazios e manipulados “contra a corrupção”, cujo recorte de classe foi ostensivamente pautado pela mídia independente e pelos memes da internet.

Em qualquer acepção da palavra que você use, não, o problema não é o povo.

Ironicamente, a saída dessa situação vergonhosa na qual se encontra a nossa república só poderá vir pelas mãos dele.

O povo é o único que poderá dar um passo além nesse jogo político e superar sua concepção de cidadania, compreendendo que ela vai além do voto. Esse dia é triste porque o bonde da democracia burguesa partiu, mas abre-se uma janela valiosa – a oportunidade histórica de inaugurarmos uma democracia mais profunda e participativa, tomando ruas e instituições à força dessa corja de ratos que nos dominam.

Hoje é um dia triste, sem dúvida. Não deixemos que essa tristeza retire as cores do futuro pelo qual tão bravamente lutamos. Não permitamos que cegue nossa visão para todas as potencialidades que se abrem nesse momento. O Pacto institucional foi rompido, a Constituição foi servida no jantar das aves de rapina PMDBistas.

Vamos responder à altura desse desafio histórico e despertar do sonho legalista. Vamos entender a nossa força e usá-la bravamente a nosso favor, como Dilma fez durante a ditadura.

Camila Sposito é advogada e mestranda em direito econômico pela USP, integrante da Rede Feminista de Juristas DeFEMde.
 

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