Indústria da seca: novos discursos para velhas práticas

O jogo político que alimenta a indústria da seca esteve presente ao longo dos anos. Como consequências o êxodo, campos de concentração e o coronelismo no Nordeste. Para romper com 500 anos de negação de direitos e garantir as bases do modelo da convivência com o Semiárido a sociedade civil luta por novas relações entre Estado e sociedade

Por Ylka Oliveira – Asacom

O ano era 1877. O imperador Dom Pedro II fez a promessa de que venderia até as joias da coroa na tentativa de minimizar os efeitos da seca que assolavam a região Nordeste. A verdade é que as joias não foram vendidas e estima-se que mais de 500 mil pessoas perderam a vida pela escassez de água. Na travessia do século 19 ao século 21, os povos da região Nordeste enfrentaram uma trajetória de perdas em ciclos de secas (1875 – 1881, 1901 – 1907, 1927 – 1933, 1953 – 1959, 2005 – 2013). 

Essa especificidade climática, aliada à falta de vontade política em pensar, planejar e executar medidas estruturantes, ao mesmo tempo em que se investia nas chamadas grandes obras, conhecidas por mobilizarem um alto volume de recursos financeiros e com um alto impacto social e ambiental, originaram a indústria da seca.

A roda viva da indústria da seca sempre girou pelas mãos dos coronéis do Sertão, filhos das oligarquias representativas de famílias com o controle da terra e, consequentemente, da água. O coronelismo com toda a sua detenção do poder e de fazer política a sua maneira, tem na figura do coronel aquele que sempre obrigou um povo a lhe fazer favores/serviços sob o uso da força, de ações truculentas e até de mortes.

Durante o período da República Velha no país, as eleições eram manipuladas por coronéis com a compra de votos a partir da troca por mercadorias, alimentos ou emprego. Capangas dos coronéis intimidavam eleitores na hora do voto. Era o chamado voto de cabresto. O coronelismo somente se extinguiu em algumas regiões do país após a Revolução de 1930 e a ascensão de Getúlio Vargas à presidência da República.

Para o assessor de pastorais e movimentos sociais Roberto Malvezzi (Gogó), o coronelismo da atualidade não é o coronelismo clássico, imortalizado na literatura ou em outras formas de arte. É um coronel moderno, eletrônico, que sabe controlar os meios de comunicação, veste-se modernamente, mora em lugares sofisticados, etc.

“Porém, a essência do coronelismo de ‘afagar com uma mão e oprimir com a outra’, ainda subsiste. Hoje, aqui em nossa região [Bahia], quem não comunga explicitamente com os mandos e desmandos de quem está no poder, não tem lugar nos espaços públicos. Outra forma é a transferência de pai para filho dos cargos públicos, seja como vereador, prefeito, deputados, senadores, governadores, mas também no Judiciário. Terceiro ainda vale o velho lema do Coronel de Jeremoabo [além de latifundiários, o coronel João Gonçalves de Sá e família perpetuaram-se no poder exercendo cargos de prefeito, deputado e governador no município de Jeremoabo, Bahia], isto é, colocar um candidato em cada partido com a intenção de “ou dá na cabeça, ou na cabeça dá”.

Esse jogo político que alimenta a indústria da seca sempre esteve presente ao longo dos anos, gerando graves consequências, como o êxodo dos nordestinos para Amazonas e São Paulo, os campos de concentração no Ceará, as frentes de emergência, saques, perdas na agricultura, na criação animal e altos índices de mortalidade infantil. E tudo isso está marcado não apenas na memória do povo, como também na literatura, pintura, canções, vídeos, teses e dissertações acadêmicas. Em 1902, o livro Os Sertões do autor Euclides da Cunha narrou o conflito em Canudos, na Bahia, onde a comunidade liderada pelo beato Antonio Conselheiro foi dizimada pelo exército no período da recém-instaurada República brasileira.

Quando latifundiários enfrentavam a seca e a crise econômica, viram em Canudos a prosperidade acontecer de 1896 a 1897. A reação dos grandes proprietários de terra foi de se juntar à Igreja para fazer pressões. A máxima atual de que “não há provas, mas sobra convicção” também valeu para a destruição de Canudos. Assim, estima-se que 20 mil nordestinos e nordestinas foram mortos e a comunidade foi apagada do mapa do Semiárido brasileiro.

Em 1944, Portinari pintou a obra Os Retirantes, onde se vê o semblante de uma família em êxodo, homens, mulheres e crianças magros carregando trouxas de roupa na cabeça. Do mestre Luiz Gonzaga, com músicas que falam do pau-de-arara e da vaquinha só o couro e o osso com o chocalho no pescoço à escritora cearense Rachel de Queiroz, que escreveu o livro O Quinze, publicado em 1930, que explorava as questões do êxodo do povo sertanejo em migração para Fortaleza, capital cearense. São os aspectos culturais que acabam contribuindo com a perpetuação da história do povo sertanejo, revelando toda sua força e altivez, mas também com a estigmatização da região como um espaço de sofrimento, penúria e morte.

O sistema capitalista vigente no país sempre se apropriou das lutas e resistências dos povos e contribuiu para cristalizar essa imagem de fome e morte na opinião pública. Na visão de Gogó a indústria da seca alimenta não somente os donos de terras, mas aqueles que detêm o poder econômico, político, judiciário. Para ele, a seca sempre foi um mecanismo fundamental para reivindicar verbas com a justificativa de combatê-la. “Quando a obra não era feita diretamente em terras de coronéis e latifundiários, a verba raramente chegava ao seu destino. “Uma vez, vi uma estatística que, de cada R$ 100,00, somente dois chegavam ao seu destino final aqui na região [Bahia]. Era uma calamidade”, revela.

Era uma época em que a região Nordeste não era designada como Semiárido. O Nordeste era visto como um lugar inóspito, de solo rachado, gado morto, de povo pobre e ignorante. O termo Semiárido foi adotado somente na década de 1990, quando a sociedade civil organizada passou a lutar por políticas públicas que garantissem a população o acesso a direitos básicos e fundamentais à vida. Organizações não governamentais, sindicatos, as comunidades eclesiais de base, fóruns e movimentos se estruturaram e passaram a pressionar governantes na tentativa de garantir novas relações entre Estado e sociedade, e assim exercer o controle social. A mudança no modelo de Nordeste precisava nascer do povo, e não das elites. Essa foi uma conquista fundamental da sociedade civil para trazer um novo olhar para um lugar rico em vida. O surgimento da Articulação Semiárido Brasileiro e documentos como a Declaração do Semiárido, de 1999, e a Carta de Princípios da ASA (2001) são instrumentos políticos representativos nesta transição.

“Começamos a assumir o termo Semiárido brasileiro a partir de 1999, na constituição da Rede ASA Brasil. Antes tinha a pauta muito do Nordeste, com várias lutas, articulações e mobilizações feitas pelo estado do Nordeste que discutiam a questão da seca e as ações de convivência. A partir de 1999, a sociedade civil entende que o Semiárido é uma região mais ampla que o Nordeste, incluindo Minas Gerais. É quando Minas Gerais também passa a participar dessa compreensão e unidade de território”, explica a coordenadora da ASA pelo estado de Minas Gerais, Valquíria Lima.

Segundo a coordenadora o termo Semiárido passa a ser utilizado também pelo governo federal, estaduais e municipais em 2003. “A ASA contribuiu significativamente com essa compreensão mais ampla e assumimos com muita força através de nossas proposições, de nossas ações e intervenções a construção de políticas públicas para a convivência com o Semiárido”, afirma.

Embora a sociedade civil tenha avançado muito nos últimos 15 anos, a indústria da seca parece dá novos sinais de ressurgimento neste atual governo Temer. O discurso de ‘combate à seca’ se materializa em ações emergenciais, como no mês de julho, quando o Governo Temer autorizou, através de uma medida provisória, um crédito extraordinário de R$ 789,9 milhões destinados à construção de adutoras, perfuração de poços e distribuição de água através de carros-pipa. Os recursos serão administrados pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) comandando na maioria dos estados pelo PMDB.

No Ceará, campos de concentração e prosperidade
No estado do Ceará durante a seca de 1932, primeira fase da Era Vargas, ocorreram os Campos de Concentração como o Campo do Patu no município de Senador Pompeu. Com as dificuldades da seca, camponeses deixavam suas casas em busca de trabalho e alimento e para evitar a entrada deles nas cidades, o Estado os colocava nos chamados “currais do governo”. Eram atraídos por promessas de emprego, mas o que ocorria era a perda da liberdade. Só saíam quando chamados para trabalhar nas obras de emergência do governo.

Os campos foram construídos às margens das linhas férreas, pois era por onde as famílias seguiam do interior rumo à capital Fortaleza. Os campos eram assim denominados: Campo do Buriti (Crato); Campo de Concentração de Cariús (em São Mateus, hoje atual município de Jucás); Campo de Concentração de Quixeramobim (Quixeramobim); Campo de Concentração de Ipu (Ipu); Campos de Concentração do Urubu, do Tauape e do Matadouro (Fortaleza). Ao todo foram 73.718 pessoas aprisionadas nestes campos. Uma romaria anual homenageia os mortos no campo.

Paralelo às situações de fome, doenças e desemprego que aconteciam nos campos de concentração, a indústria da seca seguia seus projetos de construção de grandes obras com a promessa de combater a falta de água no Nordeste. De 1919 a 1923, criou-se no Ceará a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), que em 1945 foi instituído Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS). A proposta era construir a Barragem do Patu. Ingleses que vieram para construção da barragem ergueram uma vila para moradia no local. A vila desativada virou moradia para os migrantes de 1932. Assista a vídeo produzido pela TV Folha.

“Os campos de concentração ficaram por muito tempo esquecidos na história. Isso só veio à tona porque um grupo de estudantes da universidade [outros pesquisadores também como o advogado de movimentos sociais Valdecí Alves] fez um levantamento. Na época da construção da barragem de Patu, houve um surto de cólera. As pessoas que estavam doentes não podiam sair e os que estavam fora não podiam visitar. Fizeram grandes valas para enterrar pessoas mortas”, relembra o coordenador da Escola de Formação Política e Cidadania (Espaf), Elviro Bezerra da Silva. Segundo ele, em Senador Pompeu, havia uma população de em média dois mil habitantes, mas na época da construção da barragem o número de pessoas mais que duplicou, foram quase cinco mil habitantes. Não havia estrutura para suportar essa população.

Embora o cenário fosse de seca, algumas histórias de prosperidade brotaram de territórios e comunidades do Semiárido, apesar de terem sido caladas pelas mãos de coronéis. Foi na década de 1930, no Crato, região do Cariri cearense, onde a comunidade Caldeirão de Santa Cruz do Deserto prosperou em meio à seca. Liderada pelo beato Zé Lourenço (José Lourenço Gomes da Silva), um discípulo do Padre Cícero Romão Batista, duas mil pessoas viviam em coletividade a partir da agricultura, comercializavam o excedente da produção para armazéns da região e dividiam o lucro.

Sobrevivendo num período de seca, chamaram a atenção dos coronéis que pediram ao governo Getúlio Vargas para tomar providências. Os coronéis decidiram por espalhar em jornais que o povo do Caldeirão era formado de fanáticos religiosos e comunistas perigosos. Perseguidos, homens, mulheres e crianças foram mortos durante uma invasão comandada pelo tenente José Góis de Campos Barros, no ano de 1936. A plantação foi dizimada. Até os dias atuais o exército nega o massacre.

Hoje, próximo ao Caldeirão, existe o Assentamento 10 de abril, no distrito de Monte Alverne, no Crato (CE), onde moram cerca de 50 famílias agricultoras. Dona Maria Ana da Silva, agricultora, conta que vivia no município de Nova Olinda quando soube que bem próximo ao antigo Caldeirão havia militantes do MST em processo de ocupação de terras. Animada com a notícia falou com o marido e resolveu deixar os seis filhos e filhas na companhia dele. Saiu de casa a pé, às 13h, levando consigo uma trouxa de roupa e o filho mais velho como companhia. Só chegou às 23h no assentamento. “Andei por dentro do mato porque a polícia não podia saber do assentamento. Meu marido não queria que eu fosse, tinha medo, dizia que ia ter morte. Mas toda vida fui atirada, toda vida fui decidida”, orgulha-se.

Ela conta que um padre acabou expulsando as pessoas do assentamento alegando que a terra era de propriedade da Igreja. Em resistência, os ocupantes acamparam por 22 dias no Parque de Exposição do Crato, quando o governo estadual comunicou que compraria as terras para que as famílias pudessem trabalhar e morar na terra. Para a agricultora, o conjunto resistência e ocupação está também associado à trajetória da gestão do governo federal nos últimos 15 anos. “A terra hoje é comum, é nossa. A gente planta feijão, milho, fava. Todo mundo mora em casa com energia, água e cisternas. Hoje, a vida é completamente diferente de antes, quando o trabalhador não tinha acesso nem a entrar num banco e tinha coronel que mandava em tudo”.

Novo cenário em meio às secas
Em artigo do sociólogo e coordenador do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), Antônio Barbosa, é dito que a última grande seca em que houve um grande impacto negativo na vida das pessoas ocorreu no período de 1991 a 1993. “A não existência de estruturas ou políticas de estoque (água, alimentos e forragem para os animais) tornava os efeitos das secas drásticos e com grandes proporções. A partir desta [1991 a 1993], o que se viu foi um forte movimento da sociedade civil no intuito de não mais permitir tamanhas tragédias. Essa é a gênese do Programa de Formação e Mobilização para a Convivência com o Semiárido”, observa.

Na década de 1990, os movimentos sociais, sindicatos e pastorais começam a pautar a seca como uma questão política e não uma tragédia do ponto de vista da natureza. Entre os pontos altos deste avanço dos movimentos está a ocupação da Sudene. “Ali juntam três questões de grande relevância: a denúncia de total ausência do Estado; negava-se a aceitar a naturalização da seca e da tragédia humana decorrente dela; e a elaboração de uma proposta pautada na vida e nas soluções construídas localmente. Um passo importante para a posterior formação da ASA e do programa de convivência com o Semiárido”, avalia Barbosa.

A atual seca que intensificou em 2011 não teve mortes, nem saques. As perdas foram de criação animal – estima-se 40% do rebanho da região desapareceram. Para Gogó, o paradigma da convivência com o Semiárido trouxe um impacto devastador na indústria da seca. A proposta de conviver bem com a região, entendendo bioma, clima, a partir de saberes do povo e sua organização, acabou por fazer, em pouco mais de 15 anos, o que os coronéis não fizeram em 500 anos de negação de história. “Acontece que essa disputa de paradigmas é uma disputa de poder. Agora, com a volta de um governo retrógrado, novamente se fala no “combate à seca”. Portanto, a indústria da seca não morreu, mas agora ela [a indústria da seca] tem outra visão que se confirmou correta. O que é justo tem sua própria força”, conclui.

Foto: Thiago Ripper/Arquivo Asacom

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