Bento Rodrigues sob a ótica de Nelson Rodrigues: Um ano de lama e caos no Rio Doce

Por Alenice Baeta[i], para Combate Racismo Ambiental

Em dezembro do ano passado logo após a tragédia que causou o derramamento de lama e rejeitos de mineração oriundos do rompimento da barragem de Fundão da empresa Samarco sobre a comunidade de Bento Rodrigues, em Mariana, e demais municípios do Vale do Rio Doce, incluindo o litoral, o cineasta pernambucano Jura Capela que filmava na mesma ocasião no interior do Rio de Janeiro o longa-metragem “A Serpente” inspirado no texto  teatral de Nelson Rodrigues (escrito em 1978), julgou pertinente filmar também algumas cenas da película em Bento Rodrigues, buscando registrar a paisagem de caos e horror que ali se instalou.

Muito interessante este tipo de registro visual e documentário da situação de Bento Rodrigues no contexto de uma obra do dramaturgo Nelson Rodrigues, ainda mais agora que há sério risco de se alterar parte desta paisagem, mais uma vez, devido implantação de uma nova área de alagamento, a partir da construção de um dique, conforme informações amplamente noticiadas nos últimos meses. Inclusive, parece que os órgãos licenciadores do estado teriam permitido a construção do tal dique, visando conter a lama à montante, impedindo mais despejos no rio Gualaxo do Norte. Ainda pairam dúvidas e muitas incertezas se não haveria mesmo outra solução técnica no que se refere à contenção dos tais rejeitos remanescentes. Por isto, a Promotoria de Justiça de Mariana (MPMG), por meio do competente promotor Guilherme de Sá Meneghin, ajuizou semanas atrás ação civil pública solicitando estudos sobre a real eficácia do dique e alternativas a esta obra. O Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) denunciou, inclusive, que não há indicação de limite claro da área do alagamento proposto.

Causa espanto imaginar que parte de Bento Rodrigues, possivelmente um dos lugares mais impactados de toda a bacia possa ainda sofrer outro tipo de intervenção desta magnitude. O lugar tornou-se símbolo e referencial de muitas questões e sentidos… memórias e vivências. O “Museu da Tragédia”. Foi a terra natal de crianças com um futuro pela frente, mas que já se foram no dia 5 de novembro de 2015.

É preciso entender com muito critério e cuidado o que ainda deve (e pode) ser realizado e proposto em Bento Rodrigues, que também se tornou ícone da luta ambiental e da reflexão sobre a questão da sustentabilidade e do investimento urgente em novas tecnologias[ii] e tratamentos dos recursos naturais… Muito importante apreender as percepções dos antigos moradores de Bento e suas opiniões sobre como lidar agora com a sua cultura material tangível e intangível, com a profundidade e debate patrimonial que o assunto e a sociedade exigem, a partir dos parâmetros normativos e legais em vigência. Muito preocupante a proposição redutora e superficial de se “estocar a lama” sobre os “destroços” e as consequências deste gravame. Trata-se, todavia, de um importantíssimo sítio arqueológico e arquitetônico oriundo do século XVIII que sofreu muitos danos, mas somente em parte do distrito com o derramamento de inúmeras camadas de lama em 2015. O debate também deve ter em seu âmago este nível de reflexão e de compreensão histórica.

Bento Rodrigues está parecendo neste momento, após um ano da tragédia, um filme escuso, do qual não sabemos ainda as próximas cenas, as que ficam ou as que vão ser mesmo cortadas… tão pouco como planejam o seu desfecho e edição. O que deve ou não permanecer, e como. Onde. Mas quem está mesmo com o script? Em “A Serpente” os registros visuais foram feitos em preto e branco, com inspiração do “Film Noir”, expressão do cinema que predominou nos anos 40 pós-guerra, composta por uma linguagem que destaca a alienação humana, o obscurantismo das intenções, os conflitos e as cruezas do homem moderno. Este é o estilo da bonita obra que ali foi filmada sob as lentes sensíveis e críticas de Jura Capela.

Mas Bento Rodrigues não é um produto videográfico, com início, meio e fim. É obra aberta e seus personagens locais são reais e têm demandas, histórias, ideias. Qualquer semelhança entre a ficção e a realidade não parece mesmo ser mera coincidência.

Artigos principais consultados:

Samarco planeja estocar rejeitos em cima de destroços de Bento Rodrigues (Brasil de Fato, 30/09/2016)
https://www.brasildefato.com.br/2016/09/30/samarco-planeja-estocar-rejeitos-em-cima-de-destrocos-de-bento-rodrigues/

MPMG pede estudo sobre dique em Bento Rodrigues (Jornal Estado de Minas, 29/09/2016).
http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2016/09/29/interna_gerais,809104/mpmg-pede-estudo-para-comprovar-necessidade-de-construcao-de-dique-em.shtml

Governo de MG autoriza obra da Samarco que alagará parte de distrito de Mariana (Agência Brasil, 21/09/2016).
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-09/governo-de-mg-autoriza-obra-da-samarco-que-alagara-parte-de-distrito-em

Notas:

[i] Historiadora e Arqueóloga

[ii] No 1º Seminário Internacional sobre Direito Ambiental e Minerário, organizado pela OAB em fevereiro de 2016, na sede de Mariana, foi indicada por vários palestrantes a premente necessidade da mudança de paradigmas no trato dos ‘rejeitos’ ou ‘restos’ de mineração, que na verdade deveriam ser considerados ‘subprodutos industriais’, e portanto, reaproveitados de forma sustentável (e, no caso da sua disposição, devidamente compactados). Indicaram urgência em investimentos tecnológicos aliados a marcos regulatórios inovadores condizentes com os protocolos internacionais firmados na esfera ambiental e com os últimos acordos climáticos.

Imagem: Cena do filme “A Serpente” dirigido pelo cineasta Jura Capela em Bento Rodrigues (dezembro de 2015) baseado em peça teatral do dramaturgo Nelson Rodrigues. Fonte: http://lulacerda.ig.com.br/mariana-filme-no-local-da-tragedia-mineira/

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