A resolução das crises contemporâneas depende da mudança do paradigma econômico. Entrevista especial com Thomas Fatheuer

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Apesar do “consenso geral de que a continuidade do modelo econômico atual não é mais viável”, o debate sobre a solução das crises econômica e climática tem seguido, preponderantemente, uma mesma via, a das mudanças climáticas, critica Thomas Fatheuer na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line. “A economia verde formula uma resposta a um dos aspectos da crise, que é o aspecto das mudanças climáticas. Os defensores da economia verde argumentam que não se pode continuar emitindo poluentes do modo como é feito hoje, e isso requer uma mudança na economia, o que é importante, mas é uma mudança parcial porque ela só reage à crise do clima. Nós, que temos uma visão mais crítica, defendemos que a crise global tem mais de um aspecto e não somente o aspecto climático”, pontua.

Nessa perspectiva, explica, defende-se a substituição dos recursos energéticos fósseis pelos renováveis, a partir da defesa de uma economia descarbonizada, mas, acentua, “não se questiona o paradigma econômico vigente nem as relações de poder. Portanto, temos que sair um pouco desse consenso de que certas políticas são importantes, para aceitarmos que é preciso uma mudança na economia”.

Uma das questões centrais que ficam “arroladas” ao paradigma das mudanças climáticas, frisa, é o “direito das pessoas e das populações, como os povos tradicionais e quilombolas. É importante, então, assegurar os direitos dessas populações, ao invés de assegurar somente a manutenção da economia”. A solução dessas questões que não são consideradas na discussão do enfrentamento das mudanças climáticas, diz, “requer que se faça uma discussão e se tenha um processo de educação que repense o modelo de economia, ou seja, não se trata mais de pensar em crescer e distribuir, mas pensar de que maneira crescer”. E acrescenta: “Temos que perceber que muitas vezes o discurso da economia verde tem justificado a instalação de hidrelétricas sem se pensar quais são as questões sociais e ecológicas que estão implicadas nesses modelos”.

Thomas Fatheuer é um sociólogo alemão, que viveu no Brasil entre 1992 e 2010, onde foi diretor do escritório da Fundação Heinrich Böll no Rio. Antes, trabalhou em projetos de proteção das florestas na região amazônica para o Serviço Alemão de Cooperação Técnica e Social e para a Agência Alemã de Cooperação Técnica.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como e em que contexto surgiu a hipótese e a aposta de que a economia verde poderia ser um modelo para resolver as atuais crises ecológica e econômica? Quais são os pressupostos da economia verde que sustentam essa possibilidade?

Thomas Fatheuer – Existe um consenso geral de que a continuidade do modelo econômico atual não é mais viável e nesse contexto, o ponto decisivo para a fundamentação da economia verde é a questão das mudanças climáticas, ou seja, da crise do clima. Nos últimos 20 anos há um consenso de que precisamos fazer alguma coisa para reverter essa situação, porque, do contrário, as mudanças climáticas terão efeitos graves e perigosos. Mas esse consenso não gerou políticas que estivessem à altura do próprio consenso, ou seja, políticas que pudessem dar conta da atual situação. Os acordos internacionais também não conseguiram responder da forma que se esperava a essa situação de crise. Na Rio 92 começou uma série de iniciativas envolvendo instituições internacionais mundiais, como o Banco Mundial e a ONU, mas isso não resultou em políticas de reversão desse quadro. Portanto, temos que pensar melhor em como transformar a economia.

Essas iniciativas internacionais resultaram numa série de estudos em que se usou a nomenclatura economia verde, em que a ideia é substituir o paradigma da economia sustentável pelo paradigma da economia verde. Nesse contexto também foi definido o que quer dizer economia verde, e aceitou-se uma definição de uma economia que visa à descarbonização da economia, ou seja, uma transição de uma economia baseada em recursos fósseis para uma economia baseada em energias renováveis. Mas não se questionou o paradigma econômico vigente, nem as relações de poder. Portanto, temos que sair um pouco desse consenso de que certas políticas são importantes, para aceitarmos que é preciso uma mudança na economia.

IHU On-Line – Se a intenção da economia verde não é resolver as crises, quais diria que são as intenções dela?

Thomas Fatheuer – A economia verde formula uma resposta a um dos aspectos da crise, que é o aspecto das mudanças climáticas. Os defensores da economia verde argumentam que não se pode continuar emitindo poluentes do modo como é feito hoje, e isso requer uma mudança na economia, o que é importante, mas é uma mudança parcial porque ela só reage à crise do clima. Nós, que temos uma visão mais crítica, defendemos que a crise global tem mais de um aspecto e não somente o aspecto climático. Ou seja, há um aspecto da crise alimentar, um aspecto da crise de biodiversidade, mas a economia verde formula apenas uma “batalha” contra as mudanças climáticas, e por isso essa foi a discussão que começou a dominar o debate internacional. No entanto, isso cria uma resposta que gera outros problemas. Por exemplo, ao se sugerir que se invista mais em agrocombustíveis ou etanol, se cria um problema em relação à produção de alimentos e à disputa pelo uso da terra, ou em relação aos povos tradicionais.

IHU On-Line – Então, quais são as demais pautas que deveriam estar em discussão para resolver outras perspectivas da crise que vivemos hoje, que não somente a questão climática?

Sem questionar o nosso paradigma de crescimento e de consumo, achamos que será difícil enfrentar a crise ecológica.

Thomas Fatheuer – Uma delas, por exemplo, é uma questão que fica arrolada a esse paradigma das mudanças climáticas, como o direito das pessoas e das populações, como os povos tradicionais e quilombolas. É importante, então, assegurar os direitos dessas populações, ao invés de assegurar somente a manutenção da economia. Esse tipo de população existe no Brasil, mas também na África e na Ásia, e eles têm que ter o direito de poder trabalhar na terra deles, sem que suas terras e suas vidas sejam objeto de discussão de governos que sugerem novos modelos agrícolas para produção de agrocombustíveis.

Outra discussão, que fizemos mais especificamente na Europa e na América do Norte, é a de que é muito difícil enfrentar as crises ecológicas atuais sem rediscutir a questão do crescimento econômico. Isso, para nós que vivemos na Europa, é um ponto central do debate. Como vamos reverter a questão atual se a economia cresce, cresce, e se aumenta o número de carros, e se aumenta a demanda por consumo? Sem questionar o nosso paradigma de crescimento e de consumo, achamos que será difícil enfrentar a crise ecológica.

IHU On-Line – Mas como o senhor acha que tem que ser feita essa discussão em países subdesenvolvidos como o Brasil ou outros da América Latina, onde ainda não se atingiu o nível de desenvolvimento e de crescimento dos países europeus, por exemplo? Que tipo de economia seria preciso para esses países especificamente?

Thomas Fatheuer – Primeiro, essa é uma discussão que está acontecendo especialmente na Europa, e realmente essa discussão não pressupõe que os níveis de desenvolvimento dos países sejam iguais, mas o ponto é que o modelo de crescimento europeu não é replicável. Esse é um aspecto importante. O outro ponto é que países que têm pobreza, ou países como o Brasil, precisam fazer um debate sobre que tipo de país querem, ou seja, não podemos mais pensar em um modelo econômico sem pensar como a economia pode servir à sociedade. Isso requer que se faça uma discussão e se tenha um processo de educação que repense o modelo de economia, ou seja, não se trata mais de pensar em crescer e distribuir, mas pensar de que maneira crescer.

O Brasil, por exemplo, investiu muito em energia hidrelétrica, justificando que se trata de uma energia limpa, mas esquece que esse modelo implica um custo social muito grande para os povos que vivem na Amazônia, por exemplo. Portanto, o caminho é o de discutir a descentralização da energia, com mais participação dos municípios, por exemplo. Ou seja, sair de um modelo centralizado de energia coordenado por grandes empresas é um debate que existe no Brasil e que pode ser aprofundado. Temos que perceber que muitas vezes o discurso da economia verde tem justificado a instalação de hidrelétricas sem se pensar quais são as questões sociais e ecológicas que estão implicadas nesses modelos.

IHU On-Line – Alguns economistas defendem que a solução das crises atuais depende de uma transição energética. O senhor também concorda com essa perspectiva, ou essa ainda é uma visão que dá muita ênfase para a questão ambiental?

Thomas Fatheuer – Essa mudança é necessária se levamos a sério o debate sobre mudanças climáticas. Esse é um caminho difícil, mas o modelo atual de desenvolvimento não irá mudar a base social. Vou dar um exemplo: na Alemanha muitos setores da economia reduziram as emissões de CO2 na agricultura e na indústria, mas isso não foi possível no trânsito, porque a cada dia existem mais carros, mais velozes e mais pesados. Além disso, a indústria automotiva tem um lobby muito forte. Então, se chegou a um consenso de que não seria mais possível ter um modelo de trânsito baseado em carros, e de que era necessário ter outro tipo de carro, como os carros elétricos. Mas, mesmo com essa mudança, se reproduz o modelo de transporte individual. O problema é que esse tipo de perspectiva não muda o modelo de trânsito e não discute a questão das matérias-primas que são necessárias para manter esses sistemas. Ou seja, não nos damos conta da quantidade das transformações, portanto, somente discutir a mudança energética não é suficiente, embora ela seja necessária.

IHU On-Line – Os chefes de Estado têm compreensão da crise em suas múltiplas facetas ou elas ainda tratam das crises apenas na sua dimensão climática?

Thomas Fatheuer – Eu colocaria a questão de outro modo: a política não dá conta das crises atuais. Há, portanto, uma crise profunda da política e esse é um tema mundial. Há o crescimento de uma nova direita na Europa, na França, na Alemanha e mesmo nos EUA, com a imagem de Trump, que é um antipolítico e que está perto de ganhar a eleição, e no Brasil também há uma crise profunda do sistema político como um todo. Essa situação abre uma perspectiva de se pensar que a política não resolverá nossos problemas e que quem vai resolvê-los, portanto, é a economia. Mas mesmo diante dessa crise política, penso que é a política e os cidadãos que podem intervir nos caminhos do futuro, porque se deixarmos isso para a economia, quem decidirá são os mercados. Se perdermos esse espaço de decisão política, vamos ter crises ainda mais profundas. Se o mercado decidir qual é o tipo de energia mais adequado para o futuro, ele vai escolher a energia mais barata.

No passado, na Alemanha, foi dito que não se queria energia nuclear, mesmo ela sendo mais barata, ou seja, foi uma decisão que deve ser tomada nos espaços de decisão política. No entanto, hoje esses espaços estão abandonados e isso é um grande problema. Mesmo que a Alemanha tenha essa fama de ser mais sustentável e de investir em energias renováveis, ainda não se conseguiu enfrentar o lobby do setor automobilístico. Esta é a grande questão: a política ainda tem um poder de implementação de uma outra economia que leve em conta questões sociais e ecológicas.

IHU On-Line – O senhor mencionou o avanço da direita em vários países, contudo, a esquerda, de outro lado, consegue entender melhor esse momento de crise e a natureza dessas crises, ou também não?

Thomas Fatheuer – Essa não é uma pergunta fácil (risos).

IHU On-Line – É que na América Latina em geral há uma crítica ao modo como os partidos de esquerda lidam com a discussão ecológica, por exemplo. Então, não parece haver tanta diferença entre esquerda e direita sob esse aspecto.

Thomas Fatheuer – É verdade, mas essa é uma crítica a uma esquerda mais tradicional, porque em outros locais do mundo se observa uma esquerda mais esclarecida, influenciada por posições de ecologistas, e uma esquerda que aprendeu algumas questões sobre relações sociais e adota isso para si. Portanto, não existe a esquerda; existem várias vertentes, mas no mundo inteiro há uma esquerda que passou pelos esclarecimentos do feminismo e da ecologia e de reconhecer os direitos das diversas populações, e essa esquerda passou a constituir espaços de debate político considerando os direitos dessas populações. Essa é uma nova esquerda que existe no mundo inteiro, que pensa menos em partidos.

Na Europa há um crescimento da direita, mas a esquerda ainda mantém um certo poder e influência no debate político. No mundo inteiro se veem iniciativas de movimentos que ocupam espaços nas cidades, sem necessariamente depender dos partidos, como o movimento agroecológico, que quer outro tipo de agricultura. Ou seja, são movimentos da sociedade que rompem com essa esquerda dogmática e tradicional.

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